Após o rito de iniciação (o
primeiro filme) e de amadurecimento (o segundo), só
restava ao Homem-Aranha tornar-se adulto. E ninguém
pode dizer que ele não tenta. Uma vez resolvido o dilema
com Mary Jane, que já sabe que Peter Parker e Homem-Aranha são a mesma
pessoa, ele sente que é hora de pedi-la em casamento.
Acontece que nem ele nem seu público estavam preparados
para isso. Sair da adolescência, para ele, seria abandonar
a carreira de herói, logo agora que todos o amam e tratam-no
como o novo xerife da cidade (acolhido nas suas funções
prática e simbólica), que sua imagem não sai dos jornais,
dos cartazes, dos painéis eletrônicos – logo agora que
ele é superstar! O que ocorre então – e nisso reside
a maior graça do filme, que emerge principalmente do
talento de Sam Raimi – é a confecção espalhafatosa de uma miríade de tramas,
motivações, espasmos visuais e narrativos menos acomodados
por uma “forma” do que nos dois filmes anteriores, sobretudo
no segundo. O bacana de Homem-Aranha 2 estava
na sua tão bem sucedida união de drama social-urbano
e aventura romântica adolescente, na invenção de um
novo prazer visual através do incrível poder de elasticidade
e aceleração das suas imagens, amparadas por proposições
reais de mise en scène, sem exagerar nos significantes psicanalíticos mas
sem abrir mão de um certo peso moral do enredo. Se os
sobressaltos da ação, os vôos e os mergulhos da imagem
eram exclamativos o suficiente para condenar a narrativa
à dissolução, provocando uma entrega à pura descarga
e recarga de adrenalina, um enredo de base psicológica
e fundo melodramático empostava a voz e dizia que, sim, havia muita história a contar.
Era o aguardado casamento ideal do roteiro forte, de
ênfase romântica e humanista, com a aquisição de novas
dinâmicas e velocidades da imagem-ação. Da emoção de
massa ao retrato íntimo de um personagem conflitado,
passando pelas vertiginosas seqüências de confronto
físico, o filme transitava com uma fluidez impressionante.
Muito dessa fascinação apenas se repete em Homem-Aranha
3, como mera reedição de
efeitos estéticos. Ou se desfaz, pela ausência de uma
espinha dorsal narrativa que, a um só tempo, era o que
anteriormente garantia a coesão da obra e permitia um
campo seguro para o exercício de criatividade. Apesar
desse discreto retrocesso, contudo, é muito difícil
não se deixar seduzir por Homem-Aranha
3, divertido e intrigante
em doses mais que justas. E é preciso também dar atenção
ao escopo da empreitada de Sam Raimi e dos demais criadores
do filme: por pressões ficcionais, artísticas, mitológicas
e, claro, econômicas, a série não podia acabar tão precocemente,
o herói não podia virar adulto nem viver em lua-de-mel
eterna com sua namorada e sua cidade. Um impasse se
mostrou oportuno. A estratégia, ou melhor, o ardil foi
prender o herói num labirinto, retardar sua passagem
à vida adulta como medida de sobrevivência da série.
O sucesso e a fama do Homem-Aranha lhe sobem então à
cabeça; um toque de soberba, inédito para o personagem,
deixa-o vulnerável às forças antagônicas, que se somam
em bloco: namoro com Mary Jane em crise, Harry
disposto a manter seu projeto de vingança pela morte
do pai, disputa no trabalho (a chegada de um inescrupuloso
fotojornalista ao Daily
Bugle), queda do meteorito
que traz uma ameaça de outra dimensão (a gosma preta
que se move como uma aranha e causa distúrbios malignos
nos seus hospedeiros humanos), retorno de assombrações
do passado (o assassino de seu tio foge da prisão e
adquire superpoderes ao cair num tanque de aceleração de partículas).
Embora os agentes de antagonismo se multipliquem, o
grande mote da trama é aquele, singular e interno ao
protagonista, que estava já explicitamente ilustrado
no cartaz publicitário do filme, ou seja, o Homem-Aranha
duplicado, sua imagem colorida espelhada em preto e
branco. Esse espelhamento de forças opostas (quer dizer,
cúmplices), essa crise de heroísmo e de personalidade
repercute menos na metafísica do bem e do mal do que
na bricolagem de composições visuais caras a Raimi. No aspecto gráfico, o destaque fica com o homem de
areia em seu polimorfismo muito bem construído digitalmente.
Marginal por excelência, criatura atormentada, nem vilão
nem mocinho, esse personagem intervalar dita o tom do
filme. Já o trabalho com a imagem do Homem-Aranha está
mais contido: do ponto de vista visual, ele é dessa
vez um coadjuvante, os verdadeiros esforços criativos
claramente se verificam em Venom
e no homem de areia. Ao protagonista cabe a reflexão,
antiga mas sempre válida, sobre
a manipulação e a disseminação de uma imagem. Assim
como a suástica, a coca-cola ou o Mickey
Mouse, o Homem-Aranha é um dos signos mais presentes
no imaginário contemporâneo. O próprio Peter Parker
comenta o contexto de realização de Homem-Aranha
3: ele vê crianças fantasiadas do super-herói, fotos
e desenhos seus por todos os lados, bonequinhos sendo
vendidos aos borbotões, e fica abismado com essa incontrolável
circulação simbólica de sua imagem. Partindo disso,
Raimi empurra o filme para
um terreno espinhoso, que avalia o Homem-Aranha não
só como personagem de ficção, mas também como fenômeno
sociológico-midiático que
extrapola a diegese – se o
diálogo entre o campo e o fora-de-campo
é um elemento quase extinto nos blockbusters atuais, por outro lado existe um diálogo
cada vez mais forte entre o filme e seu extra-filme.
O que fazer para que o Homem-Aranha não vire apenas
mais um clichê em meio a tantos outros, apenas um signo
de fácil reconhecimento que, no decorrer do tempo, tenderia
a se desgastar? Simples: torná-lo irreconhecível – mesmo
para Mary Jane, que, no fim da briga no restaurante,
assustada com a demonstração de agressividade e espírito
vingativo de Parker, pergunta
para ele: “Quem é você?”. Um gel no cabelo, um Armani,
lápis sob os olhos: reforma cosmética, exatamente.
Em Homem-Aranha
2, há aquela cena magnífica,
a melhor do filme, em que o super-herói lança teias e usa todas as suas forças para
frear o trem desgovernado e impedir que ele chegue no
precipício. Espetacular combate entre a mecânica de
um ícone da primeira revolução industrial, o trem que
caminha em linha reta, e a performance enérgica de ferramentas
mais flexíveis, multidirecionais, as teias que parecem se adaptar tão bem
às novas leis de dinâmica da era digital. No clímax
de Homem-Aranha 3, uma reafirmação desse processo
de substituição de forças e materiais ocorre de maneira
não tão brilhante, ainda que no meio de uma cena de
espantoso virtuosismo: presa naquele táxi que está à
iminência de despencar do alto da grande teia, Mary
Jane assiste à briga, num “andar” abaixo, de Homem-Aranha
com Venom. Tomada pelo desespero,
ela joga um tijolo de construção civil para acertar
o inimigo. Mas sua atitude de nada adianta. Esse bloco
maciço, metáfora da antiga função desempenhada pela
imagem no cinema de narrativa clássica, nada pode frente
às potências digitais que o universo cinematográfico
hoje manipula. A dificuldade de Raimi
(um mestre dos detalhes, como sempre) em grande medida
é essa: como fazer suas imagens liquefeitas por CGI
continuarem a funcionar também como imagens-tijolo,
que somadas a outros tijolos conseguem construir um
edifício narrativo. Em apenas cinco anos, lá se vão
três filmes com o super-herói mais cativante da Marvel.
Será possível manter essa articulação entre os atributos
de síntese/unidade da narrativa
romântica e a propensão ao fluxo desembestado e à sensação
de queda livre que as novas imagens possuem?
Ao tornar a estrutura narrativa mais poliédrica, o filme
a tornou também – desenho interessante – mais achatada
e prosaica, e abriu ao herói a possibilidade de criar
um novo repertório de movimentos. Isso é surpreendente
em Homem-Aranha
3: um filme fendido por
imensas lacunas de leviandade, bobeira, por danças tresloucadas,
reboladinhas ao ar livre, clipes bem-humorados, cenas
de perambulação debochadas e vazias de enredo. Enquanto
o herói degringola em movimentos e poses (a franja emo de Peter Parker é clássico instantâneo),
o filme assume que sofre de uma doença da imagem. É
possível que o Homem-Aranha tenha sido afetado por uma
síndrome-Coringa: se tornar o difusor e propagandista
de uma única imagem, a sua. Ao se descobrir um ator
social, o herói aracnídeo resvala na paródia de si mesmo,
desencadeada por uma espécie de contágio narcísico.
Para se livrar da doença, ele vai precisar buscar o
que está dentro de seu corpo e não se limita a uma função
exclusiva de imagem: a força moral, a convicção de que
“há sempre uma escolha a ser feita”. Venom,
por sua vez, encarna uma outra patologia audiovisual:
um vírus ou demônio vingador que vem de muito longe,
de um lugar que a esmagadora maioria dos espectadores
do filme sequer conhece, sequer tomou contato: o cinema
em preto-e-branco e, como o embate derradeiro confirma,
mudo. Ele vem lembrar essa passagem mortificante, essa
violência inerente a uma arte que tão cedo se associou
à indústria. A cor promoveu o genocídio quase completo
dos filmes em preto-e-branco, o som aniquilou as virtudes
do silencioso. As vibrações sonoras, os decibéis da
indústria são a única arma eficaz contra Venom.
Sam Raimi
não está interessado em voltar atrás na sua marcha rumo
ao futuro do cinema de ação, mas sabe que a interrogação
moral se faz sempre necessária, a cada passo. Ele sabe
que avançar na tecnologia do cinema, contribuir para
sua reformulação de materiais, catalisar a passagem
para novos regimes de imagem, tudo isso tem como revés
um imperioso instinto de destruição. A cena final, no
enterro de Harry, é filmada
em negativo colorido mas só
vemos o preto dos ternos, o branco das lápides, o cinza
do céu nublado: a imagem de cinema ainda precisa convocar
seus primórdios. Raimi aproveita
esse terceiro episódio de
Homem-Aranha para fazer certas pausas digressivas,
para avaliar o destino de um cinema que ele mesmo está
ajudando a se transformar.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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