HOMEM-ARANHA 3
Sam Raimi, Spider-Man 3, EUA, 2007

Após o rito de iniciação (o primeiro filme) e de amadurecimento (o segundo), só restava ao Homem-Aranha tornar-se adulto. E ninguém pode dizer que ele não tenta. Uma vez resolvido o dilema com Mary Jane, que já sabe que Peter Parker e Homem-Aranha são a mesma pessoa, ele sente que é hora de pedi-la em casamento. Acontece que nem ele nem seu público estavam preparados para isso. Sair da adolescência, para ele, seria abandonar a carreira de herói, logo agora que todos o amam e tratam-no como o novo xerife da cidade (acolhido nas suas funções prática e simbólica), que sua imagem não sai dos jornais, dos cartazes, dos painéis eletrônicos – logo agora que ele é superstar! O que ocorre então – e nisso reside a maior graça do filme, que emerge principalmente do talento de Sam Raimi – é a confecção espalhafatosa de uma miríade de tramas, motivações, espasmos visuais e narrativos menos acomodados por uma “forma” do que nos dois filmes anteriores, sobretudo no segundo. O bacana de Homem-Aranha 2 estava na sua tão bem sucedida união de drama social-urbano e aventura romântica adolescente, na invenção de um novo prazer visual através do incrível poder de elasticidade e aceleração das suas imagens, amparadas por proposições reais de mise en scène, sem exagerar nos significantes psicanalíticos mas sem abrir mão de um certo peso moral do enredo. Se os sobressaltos da ação, os vôos e os mergulhos da imagem eram exclamativos o suficiente para condenar a narrativa à dissolução, provocando uma entrega à pura descarga e recarga de adrenalina, um enredo de base psicológica e fundo melodramático empostava a voz e dizia que, sim, havia muita história a contar. Era o aguardado casamento ideal do roteiro forte, de ênfase romântica e humanista, com a aquisição de novas dinâmicas e velocidades da imagem-ação. Da emoção de massa ao retrato íntimo de um personagem conflitado, passando pelas vertiginosas seqüências de confronto físico, o filme transitava com uma fluidez impressionante.

Muito dessa fascinação apenas se repete em Homem-Aranha 3, como mera reedição de efeitos estéticos. Ou se desfaz, pela ausência de uma espinha dorsal narrativa que, a um só tempo, era o que anteriormente garantia a coesão da obra e permitia um campo seguro para o exercício de criatividade. Apesar desse discreto retrocesso, contudo, é muito difícil não se deixar seduzir por Homem-Aranha 3, divertido e intrigante em doses mais que justas. E é preciso também dar atenção ao escopo da empreitada de Sam Raimi e dos demais criadores do filme: por pressões ficcionais, artísticas, mitológicas e, claro, econômicas, a série não podia acabar tão precocemente, o herói não podia virar adulto nem viver em lua-de-mel eterna com sua namorada e sua cidade. Um impasse se mostrou oportuno. A estratégia, ou melhor, o ardil foi prender o herói num labirinto, retardar sua passagem à vida adulta como medida de sobrevivência da série. O sucesso e a fama do Homem-Aranha lhe sobem então à cabeça; um toque de soberba, inédito para o personagem, deixa-o vulnerável às forças antagônicas, que se somam em bloco: namoro com Mary Jane em crise, Harry disposto a manter seu projeto de vingança pela morte do pai, disputa no trabalho (a chegada de um inescrupuloso fotojornalista ao Daily Bugle), queda do meteorito que traz uma ameaça de outra dimensão (a gosma preta que se move como uma aranha e causa distúrbios malignos nos seus hospedeiros humanos), retorno de assombrações do passado (o assassino de seu tio foge da prisão e adquire superpoderes ao cair num tanque de aceleração de partículas).

Embora os agentes de antagonismo se multipliquem, o grande mote da trama é aquele, singular e interno ao protagonista, que estava já explicitamente ilustrado no cartaz publicitário do filme, ou seja, o Homem-Aranha duplicado, sua imagem colorida espelhada em preto e branco. Esse espelhamento de forças opostas (quer dizer, cúmplices), essa crise de heroísmo e de personalidade repercute menos na metafísica do bem e do mal do que na bricolagem de composições visuais caras a Raimi. No aspecto gráfico, o destaque fica com o homem de areia em seu polimorfismo muito bem construído digitalmente. Marginal por excelência, criatura atormentada, nem vilão nem mocinho, esse personagem intervalar dita o tom do filme. Já o trabalho com a imagem do Homem-Aranha está mais contido: do ponto de vista visual, ele é dessa vez um coadjuvante, os verdadeiros esforços criativos claramente se verificam em Venom e no homem de areia. Ao protagonista cabe a reflexão, antiga mas sempre válida, sobre a manipulação e a disseminação de uma imagem. Assim como a suástica, a coca-cola ou o Mickey Mouse, o Homem-Aranha é um dos signos mais presentes no imaginário contemporâneo. O próprio Peter Parker comenta o contexto de realização de Homem-Aranha 3: ele vê crianças fantasiadas do super-herói, fotos e desenhos seus por todos os lados, bonequinhos sendo vendidos aos borbotões, e fica abismado com essa incontrolável circulação simbólica de sua imagem. Partindo disso, Raimi empurra o filme para um terreno espinhoso, que avalia o Homem-Aranha não só como personagem de ficção, mas também como fenômeno sociológico-midiático que extrapola a diegese – se o diálogo entre o campo e o fora-de-campo é um elemento quase extinto nos blockbusters atuais, por outro lado existe um diálogo cada vez mais forte entre o filme e seu extra-filme. O que fazer para que o Homem-Aranha não vire apenas mais um clichê em meio a tantos outros, apenas um signo de fácil reconhecimento que, no decorrer do tempo, tenderia a se desgastar? Simples: torná-lo irreconhecível – mesmo para Mary Jane, que, no fim da briga no restaurante, assustada com a demonstração de agressividade e espírito vingativo de Parker, pergunta para ele: “Quem é você?”. Um gel no cabelo, um Armani, lápis sob os olhos: reforma cosmética, exatamente.

Em Homem-Aranha 2, há aquela cena magnífica, a melhor do filme, em que o super-herói  lança teias e usa todas as suas forças para frear o trem desgovernado e impedir que ele chegue no precipício. Espetacular combate entre a mecânica de um ícone da primeira revolução industrial, o trem que caminha em linha reta, e a performance enérgica de ferramentas mais flexíveis, multidirecionais, as teias que parecem se adaptar tão bem às novas leis de dinâmica da era digital. No clímax de Homem-Aranha 3, uma reafirmação desse processo de substituição de forças e materiais ocorre de maneira não tão brilhante, ainda que no meio de uma cena de espantoso virtuosismo: presa naquele táxi que está à iminência de despencar do alto da grande teia, Mary Jane assiste à briga, num “andar” abaixo, de Homem-Aranha com Venom. Tomada pelo desespero, ela joga um tijolo de construção civil para acertar o inimigo. Mas sua atitude de nada adianta. Esse bloco maciço, metáfora da antiga função desempenhada pela imagem no cinema de narrativa clássica, nada pode frente às potências digitais que o universo cinematográfico hoje manipula. A dificuldade de Raimi (um mestre dos detalhes, como sempre) em grande medida é essa: como fazer suas imagens liquefeitas por CGI continuarem a funcionar também como imagens-tijolo, que somadas a outros tijolos conseguem construir um edifício narrativo. Em apenas cinco anos, lá se vão três filmes com o super-herói mais cativante da Marvel. Será possível manter essa articulação entre os atributos de síntese/unidade da narrativa romântica e a propensão ao fluxo desembestado e à sensação de queda livre que as novas imagens possuem?

Ao tornar a estrutura narrativa mais poliédrica, o filme a tornou também – desenho interessante – mais achatada e prosaica, e abriu ao herói a possibilidade de criar um novo repertório de movimentos. Isso é surpreendente em Homem-Aranha 3: um filme fendido por imensas lacunas de leviandade, bobeira, por danças tresloucadas, reboladinhas ao ar livre, clipes bem-humorados, cenas de perambulação debochadas e vazias de enredo. Enquanto o herói degringola em movimentos e poses (a franja emo de Peter Parker é clássico instantâneo), o filme assume que sofre de uma doença da imagem. É possível que o Homem-Aranha tenha sido afetado por uma síndrome-Coringa: se tornar o difusor e propagandista de uma única imagem, a sua. Ao se descobrir um ator social, o herói aracnídeo resvala na paródia de si mesmo, desencadeada por uma espécie de contágio narcísico. Para se livrar da doença, ele vai precisar buscar o que está dentro de seu corpo e não se limita a uma função exclusiva de imagem: a força moral, a convicção de que “há sempre uma escolha a ser feita”. Venom, por sua vez, encarna uma outra patologia audiovisual: um vírus ou demônio vingador que vem de muito longe, de um lugar que a esmagadora maioria dos espectadores do filme sequer conhece, sequer tomou contato: o cinema em preto-e-branco e, como o embate derradeiro confirma, mudo. Ele vem lembrar essa passagem mortificante, essa violência inerente a uma arte que tão cedo se associou à indústria. A cor promoveu o genocídio quase completo dos filmes em preto-e-branco, o som aniquilou as virtudes do silencioso. As vibrações sonoras, os decibéis da indústria são a única arma eficaz contra Venom. Sam Raimi não está interessado em voltar atrás na sua marcha rumo ao futuro do cinema de ação, mas sabe que a interrogação moral se faz sempre necessária, a cada passo. Ele sabe que avançar na tecnologia do cinema, contribuir para sua reformulação de materiais, catalisar a passagem para novos regimes de imagem, tudo isso tem como revés um imperioso instinto de destruição. A cena final, no enterro de Harry, é filmada em negativo colorido mas só vemos o preto dos ternos, o branco das lápides, o cinza do céu nublado: a imagem de cinema ainda precisa convocar seus primórdios. Raimi aproveita esse terceiro episódio de Homem-Aranha para fazer certas pausas digressivas, para avaliar o destino de um cinema que ele mesmo está ajudando a se transformar. 

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 








Homem-Aranha sofrendo de uma doença audiovisual