A primeira grande marca de
Clint Eastwood no cinema, aquela que estabeleceria
o mais forte tipo de sua carreira, parte, paradoxalmente,
da vontade de marca nenhuma. O “homem sem nome” da
Trilogia dos Dólares de Sergio Leone é a reposição
do cowboy no espaço do western ao qual
ele sempre pertenceu, mas que os anos de obrigação
do heroísmo fizeram distante. A marginalidade não é um
estado transitório, da qual o sujeito emergiria quando
chamado à grande ação redentora para finalmente se
estabelecer como figura de referência, mas sim a própria
condição de existência deste soldado sem causas e limites.
Nestes três filmes, Eastwood surge como um John Wayne
sem o peso da História, as pontas de causa e conseqüência
foram cortadas, e o que resta é este rosto flutuante,
símbolo de uma identificação desejada (é o traço mais
evidente da América que Leone tanto queria emular),
mas ao qual é negada qualquer identidade particular.
Há um descolamento fundamental entre a matéria do filme e a matéria do personagem.
Se existem conflitos interiores, eles nunca serão provocados ou mesmo resolvidos
por este homem sem nome. O ódio e a vingança, sentimentos gestores deste universo
de recriação do Oeste americano, exigem um passado, um compartilhamento de emoções
anterior ao momento em que o filme se dá, e disto Eastwood está inteiramente
destituído. Em Por Um Punhado de Dólares e Por Uns Dólares a Mais sua
presença é a mediadora literal entre as instâncias historicamente distanciadas,
a disputa de duas famílias rivais sobre o controle de uma cidade e o acerto de
contas entre um coronel e o estuprador de sua filha. Esta presença, no entanto, é completamente
escorregadia, marca-se uma diferença clara entre ela e o espaço ao qual está apenas
temporariamente integrada (Três Homens em Conflito terá esta mesma figura
da mediação, mas agora a distância entre Eastwood e o ambiente é declarada: ele é o buono num
mundo formado exclusivamente por bruttos e cattivos).
Errático, sem direito a laços, a sonhos, à memória, a imagem de Eastwood já nasce
icônica, mas por associação e nunca propriamente pela relação de semelhança direta
com aquilo que representa. Disponível à vontade da câmera de Leone em toda sua
dureza de expressão e ausência de individualidade, o homem sem nome é também
a imagem da América sem fronteiras, e basta dispor o rosto de Eastwood sobre
a planície espanhola onde a trilogia foi filmada para fazer de seu contorno o único
Monument Valley possível àquela altura.
Pois o passo seguinte no estabelecimento do mito é justamente a radicalização
da separação entre filme e personagem. Dirty Harry é o sujo num mundo de equivocadas
limpezas. Em Perseguidor Implacável esta sujeira aparece sob os mesmos
signos da falta de identidade anterior, é igualmente escorregadia, transitando íntegra
e descolada pelo interior da narrativa, contaminando sempre a si mesmo, mas nunca
exatamente o próprio filme. Este não-lugar de Eastwood se dá mesmo pela natureza
das instâncias de construção da imagem. Se o filme de Don Siegel vive do descarte,
onde bandidos, policiais e mocinhas entram e saem sem deixar muitas impressões
de sua passagem, Dirty Harry vive exatamente de seu oposto, do acúmulo. Empilha
cicatrizes, vítimas e mortes sobre as costas, não consegue a distância de segurança
que o diretor decide manter na relação com seu protagonista. Já o filme não poderia
nunca viver sob essa mesma atitude, pois isso arriscaria sua própria existência
obrigatoriamente equilibrada (impressiona em Don Siegel, e em todos os outros
que deram seqüência a ele na série policial, uma incrível consciência de estrutura,
narrativa e dramática, garantia de que as explosões da fúria de Dirty Harry só poderiam
se estabelecer como produto viável se fossem acompanhadas por um registro em
chave oposta, limpo, quase calmo).
Dirty Harry é o Orfeu despido de romance, mergulha no inferno, mas sabe que não
há possibilidade de encontrar qualquer afeto lá embaixo. É o único representante
do mundo da ordem ali onde ninguém mais se atreve a estar, ali onde as leis que
regem o andamento das coisas já não conseguem dar conta da podridão em que nos
encontramos envolvidos, e por isso é preciso acionar sua figura de exceção. O
policial não compreende a atenção dispensada por Don Siegel ao serial killer deste
primeiro produto da série, filmando sua história completa de crimes; uma vez
tendo-o capturado, Dirty Harry usará com esta suposta “maior ameaça” a mesma gag que
lançara na primeira seqüência do filme, quando combatia reles ladrões de banco
ao mesmo tempo em que terminava de comer um cachorro-quente. Para o policial,
importa muito pouco a natureza diversa dos bandidos e de sua prisão, e importa
menos ainda quem sejam (diz-se, em algum momento, que a grande vantagem de Harry é não
ter preconceito contra nenhum tipo de gente: odeia igualmente brancos, negros
e índios, católicos, judeus e protestantes). Eis aí um personagem muito maior
que a capacidade de um filme suportá-lo, e quando Harry decide ser realmente
imundo, como quando pisa na ferida de bala do assassino indefeso e desarmado,
atitude que é a própria materialização da idéia de justiça-com-as-próprias-mãos
que tanto defende, Perseguidor Implacável é incapaz de mergulhar junto
na sujeira e, limpo que é, se afasta num longo zoom out aéreo, preferindo
não ver.
A imagem de Clint Eastwood nasce exatamente dessa diferença que se cria entre
sua constituição e o corpo fílmico em que aparecerá inserida. É como se o retrato
surgisse antes mesmo que fosse dada a chance ao retratado de construir-se integralmente,
e todo o movimento que Eastwood inicia com Perversa Paixão, quando assume
o controle do registro de sua própria imagem, seguirá este caminho de resgate
de um contato original perdido. Já neste primeiro filme, na primeira seqüência
dirigida por ele, veremos esta declaração dos novos princípios de aproximação,
válidos dali para frente, um movimento inverso àquele que Don Siegel faria poucos
meses depois em seu Perseguidor Implacável. Saindo de um longo plano aéreo
da costa californiana, a câmera passeia até encontrar Clint Eastwood parado na
varanda de sua casa e ousa chegar até ele, nega o afastamento. À medida que vemos
os créditos iniciais, Eastwood sairá da varanda e subirá até a sala de portas
de vidro onde, através delas, olhará seu enorme retrato pintado num quadro. Abdica-se
da distância estabelecida até então, e parte-se para o confronto com esta imagem
que ainda diz tão pouco sobre si, mas cuja força deixa evidente as possibilidades
de verticalização da experiência humana escondidas por trás da aparente planificação
de uma tela de pintura (ou de uma tela de cinema).
A memória como um direito
Tudo o que Clint Eastwood parece querer com seu personagem de Perversa Paixão é a
chance de se deixar afetar pelo que acontece à sua volta, é tornar-se suscetível às
investidas das outras imagens que co-habitam o interior do filme. Não mais o
isolamento, a distância segura, mas o equilíbrio entre sua presença instituída,
mítica, intocável, e a fragilidade necessária a todos aqueles que se disponham
a compartilhar sentimentos, quaisquer que sejam, com quem quer que apareça a
seu lado. Dave, o galante disc jockey de um programa de jazz, é a demarcação
clara de uma necessidade de transformação do ator/diretor: quando atacado violentamente
por sua fã psicótica, não consegue desvencilhar-se, pelo contrário, apanha dela, é ferido,
perde o duelo, eclipsado por uma força física e emotiva muito maior que a sua
própria. Não é mais o atirador preciso, aquele que puxa mais rápido a pistola
do coldre, mas sim o alvo, aquele que está na linha de fogo e não pode fazer
mais do que reagir, tímida e atrapalhadamente. No clímax da perseguição que sofre,
a maníaca interpretada por Jessica Walter irá destruir a golpes de tesoura aquele
mesmo retrato pintado que vimos na seqüência inicial, e enquanto vemos a superfície
da tela sendo rasgada, Eastwood interpõe planos de seu próprio rosto à medida
que dirige seu carro pela noite, desesperado para chegar em casa e salvar a namorada
das garras de sua fã. Sua imagem ganha dimensão, finalmente, deixa de ser uma
montanha no deserto ou a imundice policial pragmática, deixa de ser plana, e
ganha finalmente relevo, verticalidade.
E assim será dali para adiante. A cada novo filme que realiza, Eastwood tentará preencher
esta sua imagem de tudo aquilo que lhe fora negado quando de seu estabelecimento
mítico. No primeiro western que dirige, muito propriamente chamado em
português de O Estranho Sem Nome, repete-se toda a estrutura leoneana
do agente justiceiro externo que se apresenta a uma comunidade de pessoas, revoluciona
seu modo de vida em algum sentido, e então finalmente parte, sem deixar qualquer
outra marca pessoal que não a transformação social através da violência. Mas
aqui – diferença radical – o Estranho tem um passado, e mais, o filme se deixa
impregnar dele. Numa belíssima seqüência onírica, somos levados ao inconsciente
do personagem, e o pesadelo recorrente é a justificativa para sua presença naquela
cidade: sua ação não é mais aleatória, mas fundada num trauma anterior que precisa
ser definitivamente resolvido.
O movimento seguinte já prescinde do artifício do sonho, e em Josey Wales – O
Fora da Lei começamos o filme vivendo no próprio presente, antes que ele
saiba que está a alguns minutos de se transformar em trauma, em memória dolorida,
e em combustível para a ação. Wales é o reencontro da imagem de Eastwood com
a História (e, não por acaso, talvez seja o único papel do ator que poderíamos
imaginar sendo interpretado por John Wayne). Não apenas a história de sua intimidade,
sua saga de vingança pela família cruelmente assassinada, mas também a compreensão
de seu país. Primeiro esboço do cineasta sobre a estupidez do conflito armado
(“todos morremos um pouco naquela maldita guerra”, diz o protagonista em algum
momento), está em Josey Wales e em sua trajetória particular pela guerra civil
americana a semente de todas as considerações de A Conquista da Honra sobre
a memória como elemento primordialmente destrutivo sempre que associada a um
evento tão trágico como este. Se no filme de 2006 isto aparece como a própria
razão das imagens e da narrativa, trinta anos antes, no entanto, ela se sumariza
numa inédita e arrebatadora cena: Eastwood ajoelhado sobre a cova de seu filho,
abraçado à cruz de madeira, chorando num filme pela primeira vez.
Mas por que Wales chora? Há o motivo evidente, a perda de sua família, mas isso
acontece com menos de cinco minutos de filme transcorridos. Este talvez seja
o grande ponto crítico da filmografia de Eastwood. Ali onde uma questão era definitivamente
resolvida, onde finalmente o direito à memória e a um passado era plenamente
assegurado, numa relação de tal modo identitária entre sua imagem e a imagem
do filme que, agora, já era possível até mesmo mostrar este passado quando ele
ainda era presente, antes que migrasse para o domínio da lembrança, onde tudo
aquilo que havia sobrado do Homem Sem Nome e do Dirty Harry estava sendo aparentemente
descartado, Eastwood reconhece um problema ainda maior. Tendo finalmente se assumido
como figura integrante de um mundo de representações, a imagem-Clint se dá conta,
em Josey Wales, que esta integração é impossível, pois sua existência
só se efetiva através da eliminação das imagens que se agrupam a seu redor. Se
chora nos primeiros cinco minutos do filme, é porque sabe que nos próximos cento
e trinta sua única missão será assassinar todos os responsáveis por sua dor.
Não há convivência possível: para que a imagem-Clint sobreviva, as outras à sua
volta precisam morrer, quase sempre por suas próprias mãos.
De heartbreakers e lifetakers
Na seqüência final de A Conquista da Honra somos levados a um momento
da experiência de guerra daqueles soldados que não podíamos nem supor existir
e, se vamos até lá, é porque foi ali que a memória do já idoso enfermeiro Doc
Bradley decidiu se instalar. Passamos toda a extensão do filme acompanhando suas
perturbações em torno da morte de seu colega Iggy, dos poucos minutos em que
o deixou sozinho no campo de batalha e dos muitos anos de extensão da dor por
tê-lo perdido, mas num filme repleto de retornos ao momento em que uma vida era
tirada, o último dos flashbacks capta a sensação oposta, a vida se inflando
dela mesma, uma dúzia de jovens mergulhando no mar, dividindo afetos. Num filme
que tematiza a própria construção da memória, aquela mesma que sempre fora uma
grande questão para o cineasta ao longo de toda sua filmografia, diante de todo
o peso das mortes escolhe-se como imagem de encerramento um momento de amor.
Foi sempre entre estas duas forças que o cinema de Clint Eastwood se dividiu,
e aqui a palavra tem a dimensão justa. Divisão entre o amor e a morte, porque
a conjugação das duas pareceu sempre impossível. Em O Destemido Senhor da
Guerra, o Sargento Highway de Eastwood diz para seus cadetes que sua função
ali na academia militar é fazer deles lifetakers e heartbreakers.
O “tirador de vidas” precisaria saber, desde sua formação, que a conseqüência
direta de suas ações seria a “quebra de corações”. Outros corações, não o seu.
Esta implicação emotiva da morte passa ao largo de todos os personagens que Eastwood
interpretou pelo menos até o fim dos anos 80, num movimento de dupla negação
(é como se a descoberta de Josey Wales fosse ainda forte demais para ser
encarada de frente). Por um lado, garantia-se ao matador o direito de não se
importar com a vítima, quase como para salvaguardar o caráter de justiça daquele
assassinato (lembremos que mesmo o DJ abananado de Perversa Paixão acaba
tirando a vida de sua perseguidora, “por legítima defesa”, ou então que o próprio
Sargento Highway, conservador convicto, mata rebeldes comunistas latino-americanos
como quem derruba latas num jogo de parque de diversões, porque sua causa capitalista é “mais
legítima” que qualquer outra).
Por outro lado, sua persona seria revisitada em uma série de filmes em
que a morte não era mais que uma leve sombra móvel, e onde se investiria exatamente
numa carga de amores compartilhados e perdidos, quase como uma resposta a essa
desvalorização da vida que a pistolagem anterior carregava: os únicos tiros disparados
em Bronco Billy são contra pratos de porcelana, e a grande explosão raivosa
do protagonista não passa de uma série de socos na buzina de sua velha caminhonete.
Mas o que importa ali, enquanto desconstrução da figura do cowboy, não é a
constituição de sua bravura e senso de honra, mas tão somente a sua capacidade
de apaixonar-se verdadeiramente por uma mulher. E mesmo o Dirty Harry, aquele-que-não-sente,
terá em Impacto Fulminante, único filme da série dirigido pelo próprio
Eastwood, uma grande prova de fogo que passa longe de qualquer bandido à solta,
o reconhecimento de uma mulher tão suja quanto ele, única pessoa do mundo com
quem conseguirá de fato se relacionar, por identidade de gênios.
Mas em algum momento este falso equilíbrio entre a vontade de vida e a vontade
de morte implodiria, e com tal força que isto já não diria respeito apenas à figura
de Eastwood, mas também a tudo o que ela produzisse, e este momento está em Coração
de Caçador. Ali retorna sua imponência de imagem destrutiva para todas as
que estão à sua volta, não mais como o cowboy justiceiro ou o policial
destemido, mas sim como um obcecado diretor de cinema. Tem-se na mira a caça
de um elefante selvagem e no caminho até essa conquista encontra-se, mais uma
vez, uma única pessoa capaz de entender este desejo, e compartilhá-lo. Mais que
o elefante, seus atores, seu roteirista, ou mesmo o próprio cinema, o único a
receber o amor de John Wilson é o nativo Kivu, e tão certo quanto este sentimento é o
seu desdobramento fatal. Se lá em Josey Wales Clint Eastwood havia dito
que “todos aqueles de quem gosto acabam não durando muito”, e se houve um esforço
declarado ao longo de tantos filmes posteriores a ele para negar esta constatação
tão cruel, Coração de Caçador é a entrega ao inevitável. A imagem-Clint é uma lifetaker natural,
fadada a carregar o peso da morte de tudo aquilo para o qual um dia devotou seu
amor. John Wilson não conseguirá excluir de seu filme na África o peso de ter
visto Kivu morrer para salvar sua vida. Clint Eastwood tampouco.
A imagem da despedida
A sogra de Bill Munny retorna ao rancho em que a filha viveu e lá não mais encontra
seu genro ou seus netos. Busca no túmulo da moça algum traço que explique como
alguém como ela se apaixonou por um assassino tão perverso quanto Munny, mas
também isso não encontra. Este amor que anda de mãos dadas com a morte não tem
explicação, é o amor possível, e dele não se abrirá mão. Clint Eastwood se mistura
definitivamente com as imagens que produz, seus filmes se tornam cantos do desespero
de alguém que tem consciência da fatalidade, mas que decide se arriscar a amar,
não importa sob que condições, não importa a que custo. O grande movimento da
imagem-Clint é este que sai da luminosidade dos sentimentos domináveis e mergulha
definitivamente nas sombras, ali onde já não há distinção ou contraste, ali onde
se escondem todos aqueles que ousaram um dia viver o idílio do amor e que, incapazes
de se desfazerem daquela emoção mesmo depois de confirmada sua inviabilidade,
não podem fazer mais nada a não ser pedir desculpas e ir embora, desaparecer
no breu. A sombra é o destino de todo imperdoável.
Frankie Dunn é um deles, e talvez o maior de todos. Em Menina de Ouro nunca
haverá outra alternativa que não a sombra, mesmo antes de sabermos que a história
caminhará para lá. Já é mais que um fluxo de imagens: é um fluxo sanguíneo, pulsante, é mesmo
a materialização do “Mo Cuishle”. Novamente um lifetaker, mas aqui tirar
uma vida não é um exercício de distanciamento, pelo contrário. Matar é a mais
completa demonstração de amor, e junto com a vida que partiu tranqüilamente,
segue outra, a sua própria, atordoada. Clint Eastwood continua sendo a imagem
que aniquila as demais, mas, depois de Maggie Fitzgerald, sabe que não pode continuar
existindo. Seu amigo Scrap pode apenas supor que Frankie Dunn se escondeu em
algum lugar distante, perdido, e a própria câmera pode apenas sugerir que este
lugar seja aquela mesma lanchonete em que ele e sua protegida dividiram um pedaço
de torta de limão, mas não há qualquer certeza disso. Pelo corredor do hospital,
a imagem-Clint seguiu até se perder na escuridão, e depois disso resta um borrão
difuso através da janela da lanchonete. É o fim? É a despedida?
Rodrigo de Oliveira
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