O
verdadeiro herói, o verdadeiro tema, o centro
da Ilíada é a força. A força
empregada pelo homem, a força que escraviza o
homem, a força diante da qual a carne do homem
diminui. Nessa obra, em todos os momentos, o espírito
humano aparece modificado por suas relações
com a força, como que varrido, tornado cego,
pela própria força que ele imaginou que
poderia controlar, deformado pelo peso da força
a qual ele se submete. (...)
Definir força é aquele x que transforma
qualquer um que se submete a ela em uma coisa. (...)
Ela o transforma num cadáver. Alguém esteve
aqui, e no minuto seguinte não há absolutamente
ninguém. (...) Da primeira propriedade [da força]
(a capacidade de transformar um ser humano numa coisa
pelo simples método de matá-lo) brota
outra..., a capacidade de transformar um ser humano
numa coisa enquanto ele ainda está vivo. Ele
está vivo, ele tem uma alma; e, ao mesmo tempo,
ele é uma coisa... E no que diz respeito à
alma, que casa extraordinária a força
encontra nela! Quem pode dizer o quanto custa, a cada
momento, acomodar-se a essa residência, contorcer-se
e curvar-se, quanto dobrar-se e enrugar-se são
necessários para isso? Ela não foi feita
para morar dentro de uma coisa; se ela o faz, diante
da pressão da necessidade, não há
um único elemento de sua natureza que não
seja violentado...
Talvez todos os homens, pelo simples fato de nascerem,
destinam-se a sofrer violência; ainda assim, esta
é uma verdade para a qual a circunstância
fecha os olhos dos homens. (...) Eles têm em comum
uma recusa em acreditar que ambos pertencem à
mesma espécie: os fracos não vêem
relação entre si mesmos e os fortes, e
vice-versa. (...) [Os fortes], empunhando o poder, não
suspeitam do fato que as conseqüências de
seus feitos vão finalmente retornar a eles. (...)
[Mas eventualmente isso acontece, e] nada, nenhum escudo,
pode manter-se entre eles e as lágrimas.
Essa retribuição, que tem um rigor geométrico,
que opera automaticamente para penalizar o abuso da
força, foi o tema principal do pensamento grego.
É a alma do épico. (...) Para os pitagóricos,
para Sócrates e para Platão, foi o ponto
de partida da especulação sobre a natureza
do homem e do universo. (...) Nos países orientais
que estão impregnados pelo budismo, é
talvez essa idéia que tem existido sob o nome
de karma. (...) O Ocidente, entretanto, perdeu isso,
e nem tem mais uma palavra para expressá-lo em
nenhuma de suas línguas: concepções
de limite, medida, equilíbrio, que deveriam determinar
a conduta de vida são, no Ocidente, restritas
a uma função servil no vocabulário
de técnicos. Nós somos apenas geômetras
da matéria; os gregos eram, mais do que tudo,
geômetras em seu aprendizado da virtude...
Assim, a violência oblitera qualquer um que sinta
seu toque. Ela parece tão externa àquele
que a emprega quanto ao que dela é vítima.
E daí brota a idéia de um destino diante
do qual tanto o executor quanto a vítima encontram-se
igualmente inocentes. (...), irmãos na mesma
miséria. (...)
A amargura [da Ilíada] é
a única amargura justificável, pois ela
brota das sujeições do espírito
humano à força, ou seja, em última
análise, à matéria. Essa sujeição
é o que une a todos. (...) Ninguém na
Ilíada é poupado dela, assim como
ninguém na Terra. (...) O sentido da miséria
humana é uma pré-condição
da justiça e do amor... Apenas aquele que mediu
o domínio da força, e sabe como não
respeitá-la, é capaz de amor e justiça.
Aqueles que crêem que o próprio Deus,
desde que se tornou humano, não pôde manter
a severidade de seu destino diante de seus olhos sem
tremer de angústia, deveriam entender que as
únicas pessoas que podem parecer que se elevam
acima da miséria humana são aqueles que
mascaram a severidade do destino de seus próprios
olhos com a ajuda da ilusão, da embriaguez ou
do fanatismo. Ninguém que não esteja protegido
pela armadura de uma mentira pode sofrer a força
sem ser atingido até a alma por ela. A graça
pode prevenir que esse sopro nos corrompa, mas não
pode prevenir a ferida.
Simone Weil, "A Ilïada ou O poema
da força". Escrito em 1939, a propósito
da iminente guerra. Assinado com um anagrama, Émile
Novis, porque um judeu não podia ser publicado1.
* * *
Ms. 45, no filme de 1981 que leva o mesmo nome [em
português:
Sedução e Vingança, ndt],
é uma jovem inócua, até que ela
é estuprada duas vezes. Então ela pega
uma 45 e sai à busca de homens para executar.
Como em Desejo de Matar (Death Wish,
EUA, 1974). Exceto que, neste, Charles Bronson não é
afetado por seus assassinatos, ao passo que a Ms. 45
muda de roupa com cada assassinato, progredindo de
doce
garota de convento, a modelo sofisticada, a prostituta
de alta classe, a dominatrix, e não o faz para
servir de isca à presa, mas para dar vazão
à luxúria em seu próprio sadismo,
nas preliminares da atração. Podemos
evitar sujar as mãos com a força e
a moralidade com Bronson, mas não com Abel
Ferrara. Prazer, no mundo de seus filmes, geralmente
transforma-se em
dor, sexo transforma-se em violência, a virtude
vício; o vencedor é destruído
com tanta certeza quanto a vítima. A identidade
climática
de Ms. 45 é como uma freira, pela qual ela tenciona
representar não sua própria repressão
sexual, mas antes desejo e morte, a violência
do feminino que atrai apenas para negar, o vício
na virtude. Ainda assim, ela mesma chegou a um
ponto
em que o prazer pode ser alcançado apenas através
da dor intensa, em que nenhuma satisfação
e nem mesmo liberação é atingível.
A maior parte dos heróis de Ferrara vão
atingir um ponto semelhante, insaciavelmente viciados
à força.
A vida é um inferno em Ferrara, tortura sem saída,
sem um momento de liberação. Seus filmes
sem dúvida devem muito, conceitualmente, a Nicholas
St. John, amigo e roteirista de muitos deles. Mas eles
são menos sobre conceitos do que sobre sentimentos
como se sente ao viver sem a graça, ser a vítima
da força. A alienação é
retratada de forma tão intensa, em cores, formas,
superfícies, luzes e corpos, que chegamos a pensar
no Murnau de Aurora (Sunrise, EUA, 1927),
vivo nos dias de hoje e fazendo filmes de exploitation.
Os filmes de Ferrara são bad trips, bad
trips terríveis, intransigentemente morais.
Diz Ferrara: "É mais sentimentos e emoções
e como as cores a texturas trazem certos sentimentos.
Não é o tema eu não penso sobre
o tema do filme. O objetivo não é o
filme; o objetivo é estar completo, é estar
envolvido como ser humano conhecimento, auto-conhecimento,
conhecimento de grupo, isso aí"2.
Cidade do Medo (Fear City, EUA, 1984)
é sobre strip-tease e as mulheres de Ferrara
(e os homens) são ainda mais eróticas
do que as de Hawks. Elas adoram fazer cada mínimo
gesto como uma excitação erótica.
Mas as mulheres de Ferrara não se comportam
como profissionais, elas estão realmente
se divertindo. Na forma como Melanie Griffith vestida
apenas com um fio-dental exerce um evidente
prazer contorcendo seu corpo para uma platéia
pagante masculina, não existe a menor insinuação
de
"provocação", nenhuma insinuação
do "pecado" com o qual Sirk encena uma cena
mais comportada em Imitação da Vida
(Imitation of Life, EUA, 1959), apenas um tipo
de contentamento que poderia ter existido num Éden
em que nunca tivesse havido uma maçã.
Mas, entrecortado com Melanie Griffith e fora do Éden,
os homens reagem como monstros depravados em fúria,
sem dignidade, enquanto um homem segurando uma faca,
numa viela do lado de fora, com uma violência
quase impossível de ver, retalha e mutila uma
stripper fora de expediente.
O retalhamento é tanto uma reação
ao segundo grupo de material intercortado (os homens
monstruosos) quanto ao primeiro (Melanie erótica).
O retalhador é um jovem que passa os dias fazendo
treinamento (erótico) de artes marciais, nu,
com uma dignidade extraordinária. Ele é
totalmente impiedoso em relação à
dor que ele inflige com sua faca, uma característica
de todos os "vampiros" de Ferrara. Nós
compreendemos que ele quer que sua vida seja uma
demonstração
de sua habilidade de reter a dignidade masculina (erotismo
masculino) por mulheres desafiadoras, ternura e as
emoções
degradantes que elas inspiram. Mas, como Ms. 45, ele
fez de si mesmo um escravo de seu próprio
erotismo, consumiu sua vida em sua pulsão
sexual, vendeu sua alma à força, de
forma que cada uma de suas vitórias faz com
que ele seja cada vez mais uma vítima da
força.
As mulheres são responsáveis pelas reações
dos homens? Seriam elas somente serpentes? Ferrara parece
dizer, como Murnau em Tabu (idem, EUA, 1931),
que ninguém está livre daquilo que Simone
Weil chama de "gravidade" da sociedade humana,
na qual a beleza torna-se dor, o amor torna-se violência,
a dignidade torna-se brutalidade3.
Os temas de Ferrara são os sentimentos: aqui
a polifonia de três reações contrastantes
ao jogo erótico.
China Girl
Consequentemente, os melhores momentos de Ferrara
são seus momentos mais estilizados. Ficamos com
a impressão de idéias entusiasmadamente
trabalhadas por alguém cuja suprema alegria é
fazer cinema. Em China Girl (idem, EUA, 1987),
sua produção preferida, ele estende quase
ao filme todo o alto tom de estilização
encontrado em uma das melhores cenas de Sedução
e Vingança, em que quatro estupradores rodam
de forma demoníaca em torno de sua presa com
um brio ritualístico, com suas sombras precedendo-os.
Como nos filmes de Murnau, a escrita cinematográfica
em abstrato tem algo da riqueza da música em
abstrato. Assim, superfícies geométricas,
texturas, cores, luzes e sombras tendem a mitificar
qualquer situação, como acontece com Murnau,
Eisenstein ou Ford. Os planos de Ferrara são
compostos com uma geometria consciente, inventivamente
equilibrado em linhas internas, planos e ângulos,
sempre para atingir algum efeito expressivo, sempre
com deleite para o efeito fotográfico de profundidade
limitada, sfumato, objetos em primeiro plano,
pedaços de luz brilhante, sombras passando. Um
plano de uma rua pode ter um hidrante como arco de proscênio;
como em Sirk ou Ford, objetos impõem o mundo
com que nos relacionamos e contra o qual os personagens
lutam. Os objetos podem fazer com que nós mesmos
nos tornemos objetos, coisas. Todos os padrões
são inimigos em China Girl; a sociedade
é estruturada tão rigidamente quanto as
grades das ruas em Little Italy e Chinatown. Assim,
qualquer situação genérica é
estilizada: os caras ficam fazendo pose, as facas giram,
as gangues tomam as tuas como corps de ballet.
Todos se vestem de preto na discoteca, exceto os dois
rebeldes, os iconoclastas, Tony e Tyen, os adolescentes
Romeu-e-Julieta em roupas brancas, destacados da mesma
forma com que Jean Renoir chama pela primeira vez a
nossa atenção para Nini em French Cancan
(idem, França, 1954) não apenas
para nos fazer prestar atenção nos personagens,
mas para criar empatia com eles, entrar no mundo da
história do filme com eles, onde, de fato, encontraremos
esses jovens cheios de empatia (e nós mesmos,
numa certa medida: um personagem de cinema sendo um
locus de emoções) constantemente
ameaçados por estruturas geométricas,
pela força do olhar de outro personagem em direção
a eles, pela força da câmera se movimentando
para perto deles, pela força de nosso próprio
olhar, o que faz com que partilhemos a auto-consciência
que eles têm de sua situação.
Fora da dança, Tyen nunca faz valer seu próprio
ponto de vista, e Tony o faz somente no funeral de Alby,
quando ele acusa o chefe da máfia de vender sua
alma à força. O choque geométrico
que resulta disso nos diz que o violento momento-da-verdade
de Tony só o deixa mais atado às estruturas
de destruição. Assim é a força.
A câmera nos faz experimentar a força fisicamente.
Ela torna-se a força quando Ferrara move a câmera
do assassino e faz um travelling até Tyen e Tony,
que imitam a bala de revólver. Em contraste,
depois que todos os três estão mortos,
a câmera refaz a distância com temor, com
o foco na rua, até que alcança Tony e
Tyen, faz espirais para cima, até o céu,
não mais o ponto de vista do personagem, mas
agora o de um narrador imaginário, que eu imagino
estar dizendo, "Nunca houve história tão
penosa / quanto esta de Julieta e de seu Romeu".
Três umagens de um travelling
Ah, sim, a textura. Não
é sempre "O que acontece em seguida?",
mas o que há? Qual a história? O que é
Frank White sabemos sobre ele a partir das roupas
que ele usa ou pelas pessoas que vivem ao seu redor.
Os objetos físicos o que você pode fazer
num filme é tirar os objetos físicos
e estudá-los. Você está filmando
objetos
o que mais se pode fazer? Pessoas como objetos4.
Existe uma rica especificidade. Em China Girl,
Tony chega em seu quarto, tira a camisa, se joga na
cama e vê um vídeo erótico; o plongé
no rapaz lembra os estranhos plongés da mesa
de jantar no primeiro rolo de Aurora, dando um sentido
de teatro e do sagrado em ambos os filmes: assim, a
pequena cruz marrom na parede branca da casa desse
rapaz
italiano é tão poderosa quanto o erotismo
da atriz no vídeo.
Ela também gosta de excitar os rapazes e invadir
seus corpos, e talvez suas almas. Ferrara tem uma característica
vívida ao mostrar pessoas que vemos só
por alguns segundos; como Ford (Ferrara é meio
irlandês), até breves contra-planos são
participações especiais de caracterização,
com começos, meios e fins. O drama é definido,
durante a seqüência inicial, numa série
de curtas imagens de sete italianos vendo uma padaria
italiana ser transformada num restaurante chinês,
tendo como clímax Alby socando o próprio
pulso e então um fade-out.
A luz oferece uma atitude moral. Personagens se transformam
em suas sombras passando pelas paredes, ou partes de
si mesmos, ou fantasmas, à medida que a força
se apossa deles. Sombras passam a persegui-los, quando
eles querem pensar em si mesmos como heróis eróticos
passeando por ancestrais rituais de violência
e sedução, o que significa quase o tempo
todo para os homens de Ferrara, e suas mulheres também,
apenas num registro diferente, pois novamente a força
se apossa deles e a autenticidade dissolve-se em pose.
As sombras que perseguem transformam as pessoas em
figuras, pedaços de si mesmos, vampiros. Uma
pessoa em vôo cego na vida, outra em cega perseguição
pela glória erótica. Eles passam por
piscinas de nada negro ou iluminação
encharcada, alternadamente ganhando e perdendo, sem
outro propósito.
Luz e escuro não indicam bem e mal (e o alívio
cômico é monstruoso); pois Ferrara não
é maniqueísta, ele está no sétimo
círculo do inferno. Então a luz transtorna
e a sombra esconde. Todos se eriçam com esperma
e perfume. Mas a luxúria é tão
raramente satisfeita, até entre aqueles
protegidos pela armadura... "da ilusão,
embriaguez ou fanatismo"
(Weil), que o desejo normalmente é dor, tortura
e loucura. A maior parte dos heróis de Ferrara
posam se masturbando, e, ao contrário da santidade
imantada do prazer de Melanie Griffith ou da libidinosa
atração dos amantes em China Girl, eles
se masturbam sadística ou masoquisticamente
reencenando neste campo também as vitórias
e derrotas nas planícies de Tróia.
O Rei de Nova York
As investigações morais de Ferrara
contrastam com um filme profundamente imoral como Instinto
Selvagem (Basic Instinct, EUA, 1992), em
que o masoquismo é celebrado com mais regozijo
do que olhar para menininhas em Renoir. Um materialismo
simplista se esconde no título de Instinto
Selvagem,
enquanto o niilismo nos filmes de Ferrara é o
destino de almas que se tornaram coisas quando desviaram-se
de Deus.
Na segunda parte de O Rei de Nova York (The
King of New York, EUA, 1990), Ferrara reconhece
Murnau com um trecho de Nosferatu (idem, Alemanha,
1921) e fazendo seu herói (um sujeito vício/virtude,
Ms. 45/freira, vampiro/anjo chamado "White")
andar com um longo sobretudo negro idêntico ao
do vampiro
de Murnau. Mas Murnau já está evidente
no primeiro plano do filme: as grades da prisão:
a forma sombria que se vira e emerge à meia-luz
ensandecida, fadada, já morta e pilhando.
Fora, um avião que pira acima da linha do
céu
como um falo alado. Uma Manhattan cubista se assoma
como um desafio, uma missão, um destino;
sua luz dá energia, sexualidade, que atrai
o vampiro branco para a noite. White se materializa
no dia uma
vez só, para um funeral, numa limusine preta
como o caixão de Nosferatu, com janelas opacas
que abrem para sua metralhadora preta ejacular a
morte.
De forma sobrenatural, ele estala em violência
orgásmica e tentação bissexual,
seja para enfeitiçar sua fêmea no cio,
"advogada de Park Avenue", com promessas
de uma trepada necrófila ("Eu quero agarrar
você no metrô"), ou caindo na dança
para reivindicar a lealdade de seus servos negros,
que,
como os polinésios de Tabu, remexem com
corpos dançando, musicalmente, coreograficamente,
teatralmente. Ninguém pára de desejar e de
posar, mesmo parado.
Ainda assim, ao lutarem com o pecado, com a blasfêmia,
os heróis de Ferrara fazem valer com Lúcifer
sua autonomia moral, sua soberania, sua identidade de
herói, sua glória, piedosamente. "O
mundo inteiro é um cemitério e nós
somos aves de rapina", proclama o vampiro Christopher
Walken. "A humanidade lutou para existir para além
do bem e do mal desde o começo".
Vício Frenético
Esse é o drama de Vício Frenético
(Bad Lieutenant, EUA, 1992). A questão
é: dada a nossa falta constante de poder diante
do outro mundo, e dada nossa própria depravação,
que possibilidade resiste para o significado? E para
a bondade?
Em resposta, Instinto Selvagem nos convida a
nos divertirmos infligindo dor. Mas o "mau policial"
(bad lieutenant) de Ferrara nos lembra do mau
ladrão crucificado ao lado de Jesus, que reconheceu
que merecia o inferno, e assim ganhou o paraíso
como Kathleen, ou como a freira em Vício
Frenético que foi estuprada e torturada
e culpa a si mesma (a vítima) mais do que
aos que a atacaram: "Jesus transformou a água
em vinho. Eu deveria ter transformado esperma amargo
em
esperma fértil, ódio em amor, e talvez
ter salvado a alma deles. Eles não me amaram
mas eu deveria tê-los amado". Essa não
é uma concepção de pureza diferente
da de Pio XII, que canonizou uma adolescente que saltou
para a morte ao invés de se deixar submeter
por um tarado? Os personagens de Vício
Frenético estão
cansados demais para entregar-se a um tal heroísmo,
ou à bravura dos filmes anteriores
de Ferrara. Aqui tudo é internalizado. Pensamos
aqui menos no hedonista Murnau e num cinema de "presença";
mais no jansenista Bresson e num cinema de ausência:
a iluminação severa e implacável;
as poses icônicas; o mistério dos
rostos; a forma como certos objetos aparecem distintos;
a extrema
desagradabilidade da existência; um estilo de
montagem que implacavelmente insiste em forçar
equações através da geometria
moral por exemplo, os cortes citados em Cidade
do Medo ou, aqui, o corte de uma claustrofóbica
pose, em luz dura, contra uma parede branca, com
sons
de metrô no fundo, de Zoe Lund delirando numa
viagem de haxixe, para uma estátua da Virgem
Maria sendo derrubada e a freira sendo estuprada
no
fundo do quadro (e parecendo com o grito de agonia
do quadro de Edvard Munch): uma equação
que insiste no lote comum da humanidade decaída,
no pecado partilhado que incita a freira a ver seus
estupradores como suas vítimas, e que incita
Ferrara a repetir o som de metrô quando os estupradores
são presos. "Os vampiros têm sorte,
eles podem alimentar-se dos outros", declara
Zoe Lund (que também fez o roteiro de Vício
Frenético, fez o papel de Ms. 45 e talvez
estivesse aludindo a O Rei de Nova York). "Os
vampiros têm sorte, eles podem alimentar-se
dos outros. Nós precisamos nos alimentar
de nós
mesmos. Comer nossas pernas para que possamos andar,
[para que] possamos adquirir a energia para
andar. Precisamos
vir para ir, nos sugarmos inteiros, precisamos comer
tudo de nós mesmos para que não
reste nada além do apetite. Damos e
damos e damos enlouquecidamente, e a oferta
que faz sentido não vale a pena. mas
é preciso fazê-lo. Jesus disse "sete
vezes setenta" [ou seja, o número de vezes
a perdoar o próximo]. Você sabe que
ninguém
vai entender por que você fez isso. Eles apenas
vão esquecer você no futuro".
Não tem nada bressoniano a respeito da atuação
de Harvey Keitel. Sua desintegração lembra
a de Victor McLaglen em O Delator (The Informer,
EUA, 1935 [dir. John Ford, ndt]). Ainda assim,
é a mesma histeria que sentimos em Bresson, diante
do rosto quase sem expressão de Claude Laydu,
o pároco alcoólatra em Diário
de um Pároco de Aldeia (Journée
dun curé de campagne, França, 1950);
todos esses personagens eventualmente reconhecem a vida
como uma via crucis partilhando da agonia divina.
O mau policial, ao ansiar pelo perdão, não
consegue olhar para uma mulher atraente sem estuprá-la
com os olhos. Ele é um vampiro num filme cheio
de vampiros.
E ele não está mais livre em termos gráficos.
Quando não estão aprisionados em closes
de solidão moral, as pessoas-vampiro estão
esmagadas em composição, em profundidade
de determinismo moral, e compelidos pelas equações
geométricas da montagem.
No fundo distante de uma composição exemplar,
o policial acorda de um cochilo miserável no
sofá da sala; as crianças andam de um
lado pro outro; no primeiro plano, a mesa de jantar
com o pote de frutas preenche metade do quadro; o mobiliário
é de mau gosto e sintético; na televisão
que buzina, um desenho da Segunda Guerra Mundial mobiliza
os ratos a "se livrarem do gato" enquanto
um coro de operários de armamento cantam alegremente,
"Nós fizemos antes e faremos de novo!";
e o policial muda de canal para descobrir que ele perdeu
15 mil dólares apostando em beisebol uma perda
que ele vai teimosamente adicionar a uma dívida
de 120 mil que vai lhe custar a vida. A cena se segue
diretamente à cena de Zoe Lund em viagem de haxixe,
com o estupro da freira entre elas; como Humphrey Jennings,
Ferrara justapõe de forma surrealista material
discordante, e revela que estamos atados até
aos mais improváveis de nossos vizinhos por um
tecido social que é mais forte que nossas diferenças.
Mesmo assim, enquanto Jennings (como os ratos) vê
causa para otimismo na solidariedade, Ferrara vê
uma areia movediça massiva tragando todos para
o inferno. A série de madonas que indicam
o céu ao mau policial são tão drogadas
e traumatizadas quanto ele, tão alucinadas quanto
os profetas sempre fora, Talvez por essa razão
os dois últimos planos de Vício Frenético
lembrem os últimos planos de Profissão:
Repórter, de Antonioni (The Passenger/Professione:
reporter, Itália/França/EUA, 1975).
Os dois heróis morrem, tendo completado uma auto-transcendência
cuja medida é tão específica, tão
incerta, tão problemática e contraditória
que nos sentimos esmagados pelo pathos dos barulhos
ambientes, o silêncio entre a fé e o desespero.
Um cinema do estilo de Ferrara exige que percebamos
de uma forma extraordinariamente vívida a "presença"
de um personagem: o modo como as "vibrações"
de um personagem tomam posse dos espaços vazios
do quadro como em Tabu, em que o ar e a
luz tornam-se emanações dos personagens,
como nas pinturas de Vermeer, como no quarto de Tyen,
porque aqui ela
se sente como não estando lá. Opacidade,
como em Tabu, é parte dessa característica
vívida; quanto mais sentimos as emoções
dos personagens, mais conseguimos entendê-los,
mais estamos cientes da interioridade impenetrável,
e que Ferrara, como Murnau e Ford e ao contrário
de Instinto Selvagem, nos vê como
atores da vida, não como suas vítimas.
A textura e a cor, a geometria e a composição
são
tão intensas que parece um milagre que alguém
possa suportar uma tal existência por dez minutos;
ainda assim, os personagens de Ferrara transcendem
seu
ambiente até quando sucumbem a ele (basta
ver o assustador carrinho-para-frente em China
Girl
com ela
sentada a esmo em sua cama): eles nunca são
apenas manequins. Eles podem ser escravos de sua paixão,
mas eles escolhem sua paixão. Eles não
simplesmente sucumbem, eles decidem sucumbir. Ferrara
acredita mais no pecado do que em Freud. Se não
temos responsabilidade, se não temos culpa,
então
somos apenas marionetes numa apresentação
de títeres, nossa dor é uma farsa, e
só
a força é real, puxando os fios. É
o que concluem os heróis de Sedução
e Vingança e O Rei de Nova York,
que tentam matar todos os maus, pensando que podem
controlar
a força, como os vampiros de Christopher Walken
em The Addiction (EUA, 1995) e Enigma do
Poder
(New Rose Hotel, EUA, 1998).
The Addiction
Ao contrário de Instinto Selvagem,
Ferrara não está numa punheta; ele está
insistindo no fato de que a vidaé genuinamente
trágica. Seus heróis se degradam em Vício
Frenético e Driller Killer (EUA,
1979),
The Addiction e Enigma do Poder, humilhando
suas vítimas ou as torturando até a
morte com uma furadeira (meramente por masturbação),
ou comendo-as vivas, ou matando-os em massa. Um filme
de exploração, por definição,
nos convida a desfrutar do sangue, violência
e crueldade. Mas Ferrara deseja que nosso desgosto
supere
nossa fascinação, de forma que, como The
Addiction propõe, experimentemos metanoia
um tipo de catarse pela qual devemos rejeitar nossa
cumplicidade de segunda mão com o mal.
Metanoia é uma palavra grega que significa
mudança de pensamento (noia) e, mais especificamente,
uma conversão religiosa pela iluminação
da morte e do renascimento. O maior obstáculo
a uma tal mudança de pensamento é o conhecimento
que achamos que já temos. Como diz Simone Weil,
nossos pensamentos bloqueiam a graça divina,
que só pode entrar quando há um vazio.
E Kathleen Conklin em The Addiction diz algo
parecido quando observa "Nós bebemos para
escapar do fato de que somos alcoólatras"
sem perceber (ainda) que sua filosofia é seu
alcoolismo. O que ela acha que sabe, argumentado em
sua tese de doutorado e baseado em sua vida como uma
vampira, é que não podemos nos deixar
guiar pela luz porque não temos livre arbítrio.
Somos vampiros. Massacres como My Lai acontecem repetidamente
porque não podemos dizer ao mal que vá
embora, não podemos controlar nossos feitos.
"Você não é nada. (...) Você
não é uma pessoa. Você não
é nada". Somos aquilo que fazemos, ela insiste,
escravos da força. Essa é a condição
universal da humanidade.
"Olhe o que você fez comigo", grita
uma de suas vítimas. "Como você pôde
fazer isso? Isso não te afeta de forma nenhuma?"
"Não. Foi sua decisão", retruca
Kathleen. "Por que você não me disse
para ir embora? (...) A minha indiferença não
é o que está em questão aqui. É
seu espanto que precisa de estudo."
"Que eco", explica Simone Weil (sobre a Ilíada,
mas é o mesmo caso), "podem as tímidas
aspirações pela vida encontrar nesses
corações quando as vítimas imploram
para ver o dia seguinte?" A força nos transforma
em coisas. "É a violência da minha
vontade contra a deles", explica Kathleen. Não
há vítima não-consentida e tampouco
distinção entre vencedor e vítima:
as vítimas se transformam em vampiros também.
A força procria a força; só existe
força.
Ferrara configura a geometria da força como ele
fez em China Girl. Linhas de movimento
são força. Três ataques sucessivos
de vampiros são filmados com linhas semelhantes
de movimento de fundo para primeiro plano:
o clímax dos ataques no My Lai de Kathleen, a
recepção de seu doutorado, uma orgia vampírica
dramatizando precisamente a vida de acadêmicos
à espreita. Ela se empanturra até o limite
do nada. "Lutando contra a angústia",
dizia Simone Weil, "nunca se consegue produzir
serenidade; a luta contra a angústia só
produz novas formas de angústia. (...) Deve haver
um arrancar, algo desesperado precisa acontecer, o vazio
precisa ser criado: a noite escura. (...) Só
aqueles que já caíram no grau mais baixo
da humilhação, muito abaixo da mendicância,
que não somente não têm consideração
social mas são encarados por todos como desprovidos
daquela principal dignidade humana, a própria
razão só aquelas pessoas, de fato, são
capazes de dizer a verdade. Todos os outros mentem"5.
"Deveríamos todos esperar sentir culpa,
sentir dor", falava o professor de Kathleen em
uma palestra alguns meses antes a respeito da metanoia,
"para que encontremos perdão e, por fim,
a liberdade. A culpa é um sinal de que Deus está
trabalhando em seu destino e uma pessoa que se recusa
a reconhecer isso é tola."
"Ninguém vai deixar você morrer",
promete uma enfermeira agora, e Kathleen pede a luz,
que mata vampiros e é isso que ela quer ,
mas a luz faz outra coisa ao invés disso, enquanto
desce lentamente até ela, do crucifixo acima
de sua cama. "Ficamos diante da luz", ela
comenta a seguir, "e nossa verdadeira natureza
é revelada". A falsa identidade será
enterrada, a verdadeira identidade renascida.
Ironicamente é o primeiro vampiro, o que infectou
Kathleen, que aparece novamente agora, ostensivamente
para negar a responsabilidade ("Que escolhas essas
pessoas [como nós] têm? Não é
como se tivéssemos opção!")
mas inadvertidamente para afirmá-la. "Não
somos maus por causa dos males que infligimos",
zomba o vampiro, refutando a dissertação
de Kathleen, "mas fazemos mal porque somos maus."
Logo, há uma pessoa; não somos apenas
o produto de nossos feitos. É a alma que conta
em última instância, não os feitos.
Podemos ser perdoados, o passado pode ser colocado para
trás, a primavera pode chegar.
Consequentemente, corte para o próximo plano,
em que a geometria da força é anulada:
Enquanto a vampira se retira progressivamente de quadro,
um sacerdote caminha para a frente, um padre humilde
como João XXIII, cujo andar casual e conduta
receptiva contradizem os passos largos e agressivos
dos vampiros. Todos caminham com missões obsessivas,
mas os vampiros são conduzidos, ao passo que
o sacerdote está fazendo suas próprias
escolhas. Ele até acena um adeus ao vampiro que
vai-se embora. Aqui, em sua mais humilde forma, está
o poder não constrangido à força.
Ferrara nos dá 42 segundos para meditar sobre
este trânsito, e pode ser o momento mais rico
de sua obra, um momento de metanoia. A vida antiga se
esvai na distância, a nova vida consegue êxito,
tão simples quanto vetores contrastantes em geometria
moral. E, simples assim, o mundo é redimido.
Nicholas St. John, disse Ferrara, escreveu esse filme
"logo depois da morte de seu primeiro filho. No
momento mais triste de sua vida, ele encontrou um meio
de expressar aquela implacável busca pela verdade
e pela luz num mundo que muitas vezes nos paralisa com
raiva e escuridão"6.
Enigma do Poder
Depois de O Rei de Nova York, as emoções
e o sangue que anteriormente esperávamos de
um realizador de filmes de exploração
retrocedem para uma simbologia sugestiva, ou deslocam-se
inteiramente
para fora da cena. Enigma do Poder tem tão
pouca "ação" de qualquer tipo,
que a verdadeira trama torna-se algo a ser descoberto
em repetidas visões do filme. Nós nunca
vemos as cenas pelas quais estamos esperando, Sandii
seduzindo Hiroshi, seu seqüestro, sua morte. Ferrara
as eliminou. O que vemos são apenas os momentos
humanos entre os eventos, o que acontece nas mentes
das pessoas, e aqui também os momentos chave
podem desaparecer, já que passam por um instante
pelo rosto de alguém, e só posteriormente
são turvamente compreendidos. Esse não
é um filme apto a satisfazer qualquer um na
primeira visão. Como acontece com Ferrara,
parece haver muito menos coisa acontecendo do que
realmente há,
porque ele corta cenas expositivas e explicações
e o diálogo é freqüentemente incoerente,
e porque nós, enquanto tentamos procurar aquilo
que não está lá, podemos perder
aquilo que está. (Temos que criar um vazio
para deixar a graça entrar.)
Ainda estamos nas planícies de Tróia,
mas a guerra agora é apenas o set num estúdio;
só existem três heróis, e sua geometria
de força é internalizada. Enigma do
Poder é um estudo de personagem, mas o aparente
argumento é de tal forma um truque narrativo
que talvez não possamos reconhecer qual é
o personagem que é mais estudado.
Sinopse: Num futuro próximo, mega-corporações
controlam o mundo, que vive tragado pela poluição.
Hiroshi, um brilhante biólogo japonês,
trabalha para a Maas e rejeita ofertas da Hosaka.
Hosaka
concorda em pagar a dois criminosos corporativos, Fox
(Christopher Walken) e seu ajudante, X (Willem Dafoe),
100 milhões de dólares pela entrega de
Hiroshi. Então eles contratam uma prostituta,
Sandii (Asia Argento), para servir de isca para Hiroshi
com "a única coisa que falta a ele: paixão".
X começa a ensinar Sandii como "se apaixonar
sem se apaixonar" para que ela consiga fisgar
Hiroshi, mas ele mesmo acaba se apaixonando por
ela, e ela, aparentemente,
retribui. Sandii seduz Hiroshi, o seqüestro funciona,
e depois sai pela culatra, quando a Maas solta um
vírus
que mata todos os biólogos de Hosaka. Sandii
desaparece; Fox diz que ela se vendeu para a Maas.
Hosaka
culpa Fox e X. Fox se mata, e os agentes perseguem
X de forma cada vez mais próxima. X passa os últimos
vinte minutos do filme escondido num cubículo
de aeroporto, o New Rose Hotel, relembrando cenas
anteriores, masoquisticamente masturbatórias,
e tentando descobrir se, por quê, ou quando
Sandii entregou-se para a Maas.
Mesmo quando X reconhece os enganos de Sandii, ele não
consegue parar de desejá-la. Isso está
explícito na história original de William
Gibson. E aparentemente esse foi o ponto que atraiu
Ferrara quando ele leu o conto. ("Eu sabia que
estava fodido. Porque era genial e eu sabia que tinha
que fazer o filme.") No roteiro de Gibson e de
Christ Zois, enquanto o helicóptero de Hosaka
se aproxima, X delira: "Não posso te odiar,
linda. Está tudo bem, linda. Vem aqui, por favor.
Segura minha mão."7
Mas o que está explícito para Gibson e
Zois transpira uma dolorosa ambivalência em Ferrara.
Na versão de Ferrara, X lembra-se de ver no passaporte
de Sandii o cartão de computador que disparou
o vírus. Mas é tão certeiro assim
que Sandii de bom grado os traiu? E não seria
culpa de X, já que ela não disse, na mesma
noite, que eles deveriam esquecer sobre Hiroshi, que
eles deviam fugir, casar e ter filhos, e ele não
a mandou de volta para Hiroshi ao invés disso?
Para sua morte?
Então o filme termina com X repetindo duas vezes,
a primeira em sua cabeça, e depois num flashback
para Sandii, enquanto ele se deita na cama ao lado
dela,
"Se você realmente quiser, nós vamos
fugir, ou seja, esquecer sobre Hiroshi". E ela
sorri. Isso aconteceu de fato? Ou trata-se apenas
da fantasia
de X sobre o que ele deveria ter dito?
E, qualquer uma das duas opções, isso
teria verdadeiramente feito diferença? Sandii
está sorrindo diante das palavras de X porque
eles vão se casar? Ou porque ele caiu no jogo
dela? Seu sorriso é doce? Ou vil?
A câmera sugere que a cena aconteceu, porque o
sorriso de Sandii acontece fora da visão de X.
E quanto mais meditamos a partir da evidência,
incluindo aquele sorriso, mais percebemos que X ainda
não aceitou o horror completo de tudo aquilo
que ele percebeu, as dimensões da traição
da Sandii. No momento que ela propõe casamento,
ela já tem o cartão do computador, ela
já consentiu com o assassinato de X; na verdade,
ela inclusive já concordou em cometer assassinato
em massa. Ela começou a mentir ainda antes de
se encontrar com Hiroshi. (Primeiro seu pai era italiano
e trabalhava para Hosaka. Depois de Hiroshi, seu pai
é francês.) Ela se passa por uma prostituta
barata, escondendo uma segunda identidade como uma aluna
de doutorado (como Kathleen) outro sinal de perigo
que X encontra em sua bolsa e ignora. Ela pede a X que
se case com ela para provocá-lo, torturá-lo,
porque ele ressente-se de ela ter "chupado o pau
de Hiroshi" depois de ele mesmo ter treinado
ela para fazê-lo. Ela não está com
raiva, e fica imediatamente maternal, pela razão
que X deseja acreditar, no entanto. Ela lhe dará
o beijo de despedida poucas horas depois, com ele meio
dormindo e ela partindo para chupar o pau de Hiroshi.
Não foi à toa que Ferrara começou
essa cena de cama com um barulho alto de trovão.
Sandii busca sexo indiscriminadamente, de forma insaciável.
Para Gibson e Zois, ela destrói a Hosaka porque
a Hosaka matou seu pai. Para Ferrara, ela não
tem nenhuma motivação discernível,
jamais, exceto o prazer pessoal. Fox estava certo. "Ela
é uma apostadora", dizia ele. "Ensine
ela a se apaixonar sem se apaixonar você mesmo",
disse ele. "É pra já", respondeu
X, enquanto, se afastava para dar uns amassos
em Sandii
com Fox olhando. A idéia para Sandii de uma
boa saída noturna, em seu caso de amor com
X, é
levá-lo a um sex club onde ela o ignora e entra
na orgia, enquanto ele observa masoquisticamente em
silhueta negra, convencido de que ele é o cavaleiro
e que ela é seu brinquedo.
Claro, ele é dela. Ele pensa que está
"ensinando" a ela, quando ele faz com que
ela sussurre "Hiroshi!", enquanto transa
com ela. Mas ela está "praticando" nele.
"Eu choraria, morreria, voaria por você"
(com viagens da língua para dentro de sua boca).
Para X, "Hiroshi" torna-se a terceira pessoa
essencial ao amor romântico, a que cresce em
rejeição,
em geometrias triangulares de força, e Sandii
usa os ciúmes de X para manipulá-lo.
Para ela, não há rejeições,
então
ela pode se apaixonar sem se apaixonar. X não.
"Você tem que ficar com a cabeça
fria para se safar dessa", Fox tinha lhe alertado.
Mas X não estava com a cabeça fria,
e agora todos estão mortos, assim como ele
brevemente estará também.
Fox e X constantemente subestimam Sandii, e essa é
a razão pela qual ela os mata. É o jogo.
Eles acham que ela está bastante aquém
deles, um objeto de compra; eles são tolos.
Eles não percebem a forma macho com
a qual ela acende o cigarro, deixando-o em sua boca,
como um
pau, tão logo ela percebe que há um jogo
a ser jogado. Fox tem hybris demais: ele
tagarela que sua profissão "não é por
dinheiro.
É por ação! Não é
fazer uma coisinha e pronto", mas ele não
consegue perceber que Sandii sente da mesma forma
e
não tem necessidade de tagarelar. "Ela é
uma verdadeira puta", alguém diz a ele.
Não é uma falsa! É um jogo
para cada um, chefes do tráfico e governos.
Os campos de Tróia. A força reina em
todos os lugares; não há mais boas
intenções
como as que o rei de Nova York ou o "mau policial"
tinham. Agora somos todos vampiros de almas, sugaram
nossos corpos. O filme começa com todos em
luz vermelha ou sombra negra: estamos no inferno.
A luz vermelha, como a chuva de Homero, cai em todos
da mesma
forma: apetite, luxúria, poder. "Não
é apropriado a um cavalheiro ficar introspectivo",
Fox declara. "Nós somos os lobos. De estepe.
Isolados. Solitários, Concentrados. Você
é o lobo perfeito: olhos gélidos, lábios
arreganhados, costelas salientes. Faminto!"8
E é o que ele parece: um lobo, um vampiro, gélido,
perverso, totalmente egoísta, cruel. Ele até
grunhe. É um choque quando ele sorri. Sua felicidade
é diferente da minha? O prazer tem moralidade?
Fox é feio, repugnante. Sandii é bela,
aconchegante, interessante, uma vampira mais interessante
(e perigosa) do que qualquer dos vampiros anteriores
de Ferrara, um tratamento mais interessante (e realista)
do mal do que qualquer dos outros ensaios morais de
Ferrara, porque ela é atraente. Ela deleita-se
com carícias, com sexo animal, e nos faz querer
juntar-se ao prazer dela que será o de nos
destruir. Os lobos machos esquecem o jogo; ela é
apenas uma menina, um brinquedo. Fox chega a apontar
para ela como um carro novo: "Esse foi meu toque
de gênio! Olha só! Lá vamos nós!"
É por meio das vitórias aparentes de
Fox, X e Hiroshi sobre ela que Sandii faz deles peões.
Essa é a geometria da força. Como Hallie
no geométrico O Homem Que Matou o Facínora,
de Ford (The Man Who Shot Liberty Valance,
EUA, 1962), Sandii destrói três homens
no curso de sua conquista. Ela é um lobo
melhor do que Fox ou X, porque ela gosta de ser
um lobo. Ela sente
prazer em ser uma prostituta. Ela adora ser uma dominatrix.
X acha que está "ensinando-a" a se
apaixonar sem se apaixonar, ela, a mestre da interpretação,
a festa a fantasia que nunca termina. Suas aparições
são uma série de papéis típicos,
como Marlene Dietrich em Vênus Loira (Blonde
Venus, EUA, 1932), de Joseph Von Sternberg:
cantora, prostituta, doce moça da casa
ao lado, rainha pornográfica, covarde,
ninfomaníaca, virgem
inocente, exibicionista, cientista, mãe, sedutora.
Ela sempre batalha rumo ao topo: afundando X na piscina,
subindo a escada, fodendo na cama, jogando o Grande
Jogo. Em retrospecto, tudo fica claro: foi tudo decidido
nos primeiros minutos, quando Fox chamou-a de tapada.
"Caso você não tenha percebido",
grunhiu ele, "você está morta, você
apenas ainda não teve a percepção
de deitar [como faria um lobo]." Acontece num
instante, quando ela levanta os olhos e olha para
ele. Juramento
de vingança.
É possível que não vejamos isso.
Mas é impossível não ver seu ressentimento.
Ferrara filma emoções, não explicações
para aquilo que as pessoas eventualmente fazem. Seu
roteirista, Christ Zois, cita um desses exemplos (em
seu comentário de DVD), reclamando que Ferrara
cortou uma cena fora do sex club mostrando que Sandii
leva X contra a vontade dele. Na verdade a cena é
clara, mas apenas se prestamos atenção
na linguagem corporal. E também é claro
o que a cena diz sobre a natureza do relacionamento
"amoroso" deles, mas só se nós
pensamos sobre as emoções; ou então,
como Fox, vamos preferir acreditar, ao final, em nossa
própria auto-desconfiança. Nós
vamos ouvir sua voz nos sonhos de X "Muitos meses
atrás eu era tão bonita e adorável
quando você me viu pela primeira vez... e eu estava
de preto." Vamos perceber o egoísmo, a dominatrix;
mas nós não compreenderemos.
Nós vamos observá-la, uma menininha na
cama, dizendo "Sim! Sim! Quando eu voltar!"
(depois que X diz que eles vão discutir casamento
quando ela voltar de Hiroshi), e nós vamos preferir
ouvir uma aceitação alegre ao sarcasmo
sádico. (Kathleen, em The Addiction, usa
o mesmo tom quando ela tranqüiliza uma vítima
desejada, "Claro, vou passar aqui.") E nós
veremos o vil sorriso de Sandii ao fim do filme (inequivocamente
vil no roteiro de Zois), e vamos preferir imaginar que
ela é doce. "Imaginação",
dizia Simone Weil, "é sempre o tecido da
vida social e o motor da história. A influência
das necessidades reais e compulsões, de materiais
reais e interesses, é indireta porque a multidão
nunca está consciente disso".9
X saboreia os movimentos de Sandii, seu jeito e sua
voz, até quando ele percebe seu cálculo
letal. Opacidade é a tortura dela: nos deixa
continuar nos enganando a nós mesmos. Será
que ela está sempre jogando um jogo? Existe
alguma autenticidade nela? Em alguém? X adere à
dúvida para aderir a Sandii, para aderir ao
amor, para aderir à humanidade, à lealdade,
princípio, amizade, num mundo de arranha-céus
disseminados, de um cinza sujo, podre de poluição,
do qual nenhum deus ex machina chega para
salvar desta
vez, e a mais sangrenta vampira reina: Sandii. O masoquismo
de X é a melhor esperança que Ferrara
pode encontrar para redimir o mundo. O que dá
uma certa glória a Sandii: uma glória
na vitória, em satisfação sádica,
como na Ilíada quando Aquiles corta
a garganta de uma dúzia de troianos na pira
funerária
de Pátroclo, ou a alegria de matar "Japas"
nos filmes de Howard Hawks. Essa fêmea é
claramente a escolha evolucionária para dominar
neste mundo, em que o macho é uma figura ridícula,
cujo desaparecimento é sua própria
introversão
(como em Raoul Walsh). Como Fox, Sandii rejeita a introspecção.
Só a vitória. Existe heroísmo
aí.
Enigma do Poder insiste para que admiremos Sandii,
assim como The Addiction insiste para que admiremos
o vampirismo, My Lai, Hiroshima e Auschwitz. "Agora
eu entendo como tudo isso foi possível!",
exclama Kathleen.
Comentários finais
De fato, encontrei uma vez com Arabella de Milão,
uma das maiores fãs de Ferrara, que admira seus
vampiros ao ponto da emulação. Como Sandii,
Arabella se decorava para sair andando na rua e ouvir
as pessoas dizerem "Gostosa!" (e sempre diziam).
Ela adorava John Woo também, e não podia
entender minhas objeções aos clímax
de Woo, em que o herói paira sobre o vilão
indefeso e, depois de considerável meditação,
atira em sua cabeça como se fosse um objeto.
É excitante reduzir as pessoas a figuras e estourar
seus miolos. Arabella adorava jogos. "Sou apenas
uma pobre menininha", diria ela: mas como Sandii,
como Kathleen, ela jogava cada momento para ganhar e
não tinha tempo para vítimas, a não
ser como peões. "Não é deontológico",
ela explicaria, girando uma trança e citando
Hegel. The Addiction era uma obra-prima, ela
disse, mas eu não consegui fazer com que ela
me dissesse o que acontece nas últimas cenas;
os vampiros eram seus "deuses". Para Arabella,
o intoxicante era ser cativante, como Fox chama a força.
Então, há mais de uma maneira de gostar
de Ferrara.
Mas, como os heróis desnaturados de Homero, com
todo esse "heroísmo", que lugar haveria
para qualquer outra coisa? "Não é
apropriado a um cavalheiro ficar introspectivo",
tagarela Fox, cujo salto para a morte é assumidamente
magnífico ao contrário de X, encolhido
num útero. Ainda assim, "não é
possível amar e ser justo", Simone Weil
escreve, "exceto quando se conhece o império
da força e como não respeitá-lo".
A força é tão impiedosa para a
pessoa que é possuidora dela, ou acha que é,
quanto o é para suas vítimas; a segunda
ela arrasa, a primeira ela intoxica. A verdade é
que ninguém realmente a possui.
Sandii desaparece, caminha para fora do quadro; ninguém
sabe seu nome de família ou de onde ela é.
A fala de Sandii para X é sobre si mesma: "Ninguém
nunca vai saber seu nome. Ninguém nunca vai chorar
por você. É assim que você quer morrer?"
Ela não tem existência para além
de suas façanhas, sua força, seus poderes
enganadores.
("Quem é essa Lenore?", Ferrara interpola
em seu CD de leitura do poema "The raven",
de Edgar Allan Poe.)10
Tag Gallagher
(Tradução de Ruy Gardnier)
1.
Cahiers du sud, XIX, 230, December 1940. O artigo "A Ilïada ou
O poema da força"
está publicado na compilação Simone
Weil: a condição operária e outros
estudos sobre a opressão, organizada por
Ecléa Bosi e editada pela editora Paz e Terra,
Rio de Janeiro. A segunda edição é de
1996.
2. "Moon in the Gutter:
Abel Ferrara interviewed by Gavin Smith," Film Comment
24, no. 4 (Jul-ago 1990), p. 44.
3. Existe uma "boa" história
de amor em Cidade do Medo, na qual Melanie
e suas colegas de trabalho são salvas por
seu agente de talentos, que, entretanto, precisa
primeiro reencontrar
sua vontade de lutar (como John Wayne em Depois
do Vendaval [Ford, EUA, 1952, ndt]). "Você
acha que é um herói? Bom, talvez você
seja," diz um policial a ele no fim. mas, à exceção
da ressurreição de Kathleen Conklin
em The Addiction, qualquer coisa semelhante
a um final feliz parece, num filme de Ferrara, implausível,
impossível e inconsistente. A falta de comprometimento
do cineasta é evidente na relativa falta de
estilização
com a qual diversas cenas de subtrama são encenadas,
neste e em outros filmes nos quais as decisões
foram impostas pelos produtores.
4. Smith, Film Comment,
p. 44.
5. Esboço de carta
para Andre Weil, 1940 in Richard Rees, org., Seventy
letters (London: Oxford University Press, 1965). "Accepter
la vide," La pesanteur et la grace
(Paris: Agora pocket, 1991), p. 19. Carta a seus pais,
4 de agosto de 1943.
6. Gavin Smith, "Interview
with Abel Ferrara and Nicholas St. John." Essa citação
é do site promocional de internet, que não
está mais disponível.
7. A. G. Basoli, "Abel
Ferrara jams with New Rose Hotel", www.indiewire.com/film/interviews/int_Ferrara_Abel_981019.html.
Gibson, "New Rose Hotel", na coletânea
Burning Chrome (Nova York: Ace Paperback, 1987), p.
116. O roteiro de Zois está incluído no
DVD, mas é acessível somente para PCs
com Windows e DVD player.
8. Muito do diálogo
de Christopher Walken é improvisado e Ferrara
reteve até suas incoerências ocasionais:
por exemplo, "Para cada gota de chuva que cai,
uma nuvem cresce".
9. "Méditations
sur un cadavre 1937" uvres complètes, tome
II, v. 3 (Paris: Gallimard, 1998) 74-75.
10. No concerto de Halloween
na Igreja de St. Ann, Brooklyn (1996), encartado no
CD Closed on account of rabies: poems and tales of
Edgar Allan Poe, produzido por Hal Willner. Paris
Records/Mouth Almighty Records/Mercury Records 314-536-480-2.
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