Ainda
no começo de Olhos de Serpente, interpretando
um casal no filme-dentro-do-filme, o marido fala para
a esposa. "Estúpida? Você é
chata demais para ser estúpida. Você está
morta. Você está morta. Sua insegurança
paralisou você. Você está morta,
porra, e nem se deu conta disso". A briga
acontece por conta do conflito inicial do filme: a mulher
deixa de traçar junto com o marido o caminho
de excessos que tinha sido a rotina consentida do casal
(outros parceiros sexuais, drogas, bebida, etc.) e começa
a empreender sozinha uma busca religiosa, abandonando
as práticas de sua vida pregressa. Para ele,
a decisão dela é considerada como uma
fraqueza, uma demissão de entrar no turbilhão
de sensações que o mundo oferece. Daí
a intensidade do chamado e a escolha das palavras: morta.
Curiosamente, vemos o mesmo padrão em ação
em New Rose Hotel, filme realizado seis anos
(e quatro filmes) depois: "Esse é o seu bilhete
para sair do cemitério. Caso não tenha percebido, você
está morta, só não teve o bom senso de deitar-se."
A frase é falada por Christopher Walken com pouco
mais de dez minutos de filme, e é dirigida a
Asia Argento, a jovem e bela prostituta que ele quer
contratar para aplicar um golpe que vai lhe render milhões.
Estar "morta" nesse caso não corresponde
a nada religioso. Ao contrário, as duas situações
têm muito pouco em comum, a não ser o essencial:
elas desenham uma clivagem e estabelecem dois campos
muito precisos que se repetem filme a filme no cinema
de Abel Ferrara, ou ao menos no momento em que começam
a nascer suas obras-primas. Nelas, o mundo se separa
entre saciados e insaciáveis. E o drama está
com os insaciáveis, porque a saciedade é
sempre vista como horizonte inatingível, ao mesmo
tempo fonte de desprezo e desejo de redenção.
Ainda que sejam dispositivos de saciedade que modelam
os primeiros filmes (O Assassino da Furadeira,
Ms. 45, Cidade do Medo), eles são
vividos na chave de um trauma talvez fascinante, mas
que não se contamina com a experiência
do espectador. Esse mal-estar insidioso que permeia
a obra de Ferrara dos últimos quase vinte anos
nasce com O Rei de Nova York e percorrerá
cada filme seu, seja um filme de estúdio de grande
orçamento (Invasores de Corpos), seja
um projeto pessoal como The Addiction, seja um
filme de encomenda como New Rose Hotel. As intrigas
mudam, o tom muda, as relações com o gênero
mudam, pouco importa: o essencial dos filmes permanece
sendo a reação de desorientação
de certos personagens que, instintivamente ou por decisão
existencial, acabam por se relacionar com o mundo através
da chave do excesso, da transgressão, uma busca
pelo absoluto que, no limite, resultaria na mais suprema
afirmação da humanidade. Isso fica claro
em Invasores de Corpos, remake da obra-prima
de Don Siegel nos anos 50, que ideologiza muito mais
que o original a questão da apatia (ausência
de pathos, falta de sentimentos = total saciedade)
e algo perversamente coloca seres humanos convencionais
como portadores de um mal absoluto, o da busca individual
(cf. o discurso final de Forrest Whitaker) num mundo
uniformizado que abole as diferenças e erradica
o sentimento. Perversamente porque em todos os outros
filmes a intriga se desenvolve à margem e em
contraposição ao mundo convencional, ele
mesmo visto como apático e uniformizado, plácido,
sem ímpeto.
Esses signos de "vida comum" podem ganhar
significações diversas dependendo dos
filmes e dos anseios dos personagens. Para Matthew Modine
em Blackout, claramente a vida junto à
personagem vivida por Claudia Schiffer representa uma
vida de conforto, de estabilidade, de temperança.
E ainda que seja algo a ser almejado, o personagem não
consegue escapar à sua antiga rotina, e as imagens
de sua cabeça lhe bloqueiam o caminho de um equilíbrio
estável, que só será encontrado
ao final, quando ele não será nada além
de um objeto (invisível) integrado à paisagem.
Se a vida saciada representa um horizonte inalcançável
mas desejado em Blackout, em Vício
Frenético ela só é vivida na
chave da imagem incongruente, quase um delírio.
Quando LT acorda em casa, numa elipse selvagem que o
tira da casa de Zoe Lund e o coloca deitado no sofá
de sua própria casa, os signos de vida caseira
(sofás de cor leve, crianças, almofadas,
brinquedos) assumem um ar alucinatório, incapaz
de "colar" com o cotidiano do protagonista,
estabelecendo uma quebra indissociável na significação
(a irreversibilidade também existe em O Rei
de Nova York, em The Addiction). Ou então,
como em New Rose Hotel ou Olhos de Serpente,
o mundo da saciedade é visto como uma fraqueza,
uma traição ao ímpeto excessivo
da vida: abdicar do turbilhão é estar
morto. Apesar da extrema viscosidade de significação
das imagens da última parte de New Rose Hotel,
uma das compreensões possíveis é
a de que X falhou justamente porque não foi capaz
de se desprender completamente, não conseguiu
"se apaixonar sem se apaixonar", flertou com
a vida convencional.
A esse respeito, Maria acrescenta um novo e instigante
capítulo. O filme gravita por três protagonistas,
cada um com sua cruz, cada um buscando uma fidelidade
a um percurso e procurando estabelecer sua crença
no caminho que seguiram. A possibilidade de redenção
não mais está presente apenas com a morte
(Blackout, Vício Frenético),
mas através de uma perspectiva de mudança
na vida. Abraçar a religião no caso de
Juliette Binoche, reencontrar o amor por sua esposa
na iminência da chegada de um filho no caso de
Forrest Whitaker, em Maria tudo isso já
parece um caminho tão tortuoso quanto os destinos
do rei de Nova York ou da protagonista de The Addiction.
Não que os signos da vida convencional de uma
hora para outra ganhem uma nova valoração.
É de se supor que, uma vez instalado com bebê
e esposa, o personagem de Whitaker perca o interesse,
e o mesmo se dá com Binoche: uma vez que o caminho
religioso deixar de ser uma obsessão, ela já
não é mais uma personagem de Ferrara.
Não à toa, o filme se apressa em terminar
para ver seus personagens ainda presos no redemoinho
de dúvidas, indefinições, ainda
retidos na hybris que os domina e os obriga a
estar sempre em busca de mais. Tag Gallagher já
menciona o caratér vampiro dos personagens ferrarianos,
e Maria, ainda que acrescente uma faceta nova,
uma busca menos marginal, ainda tira seus efeitos e
sua atmosfera desse sentimento desgarrado de ansiedade
e descontrole.
Num dado momento de Maria, filme intimista, até
delicado, uma pedra quebra o vidro de um carro. A edição
de som, lá no alto, causa um furor na audiência
digno de um belo susto de filme de terror. Só
que o efeito aqui não responde a uma simples
brincadeirinha de dar medo, mas à quebra da comodidade
de segurança dada pelo automóvel e a aparição
do radicalmente outro, o outro imprevisível e
inimaginável que põe em risco a vida (o
"deserto do real" que evoca Žižek). É
comum que se fale, a partir dos filmes de Ferrara, da
confusão de sentimentos e dos excessos de comportamento
dos personagens, mas não se costuma falar tanto
dos dispositivos de desorientação criados
por Ferrara em seus filmes. Se a atmosfera carregada
é relativamente fácil de construir (as
cenas de dança sexy entre mullheres banhadas
por luzes azuis e vermelhas em New Rose Hotel,
por exemplo), é preciso uma atenção
deliberada e um supremo refinamento para criar a perturbação
ocasionada pelos sobressaltos, pelas ações
inesperadas, pelas elipses radicais que nos fazem reconstruir
uma relação com o tempo e com nossa estabilidade
dentro da narrativa.
O vidro quebrado de Maria, as elipses selvagens
de Vício Frenético, a sujeira do
vídeo em Olhos de Serpente e New Rose
Hotel, os cortes no movimento ou os ângulos
oblíquos de composição, tudo isso
colabora perfeitamente para que se instale um sentimento
de descontrole, associado a uma percepção
de incompletude, que é o correlato formal dos
caminhos da narrativa (ou ao contrário). É
por isso que Ferrara provoca tantos ódios e incompreensões.
É por isso também, entre outras coisas,
que ele consegue encantar tanta gente por sua intransigência
em ceder aos apelos de um estetismo vazio, de uma composição
by the book, de um flerte com o palatável.
Se o excesso, se a incompletude, se a desorientação
está em tudo, a própria obra precisa encontrar
uma pefeição imperfeita, abrir um espaço
para a lacuna se inserir, a indecisão se instalar,
a obra se implodir. Seu auto-terrorismo só torna
seus filmes mais possantes, contundentes e apaixonantes.
Ruy Gardnier
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