ABEL FERRARA: FILMOGRAFIA COMENTADA

O ASSASSINO DA FURADEIRA
The Driller Killer, EUA, 1979
Dentro da lógica da cartilha que rege os filmes de terror clássicos, é comum que diversas pessoas sofram as conseqüências de uma ferida no passado de outra pessoa, sejam as vítimas culpadas ou não. Ferida tão profunda que de alguma forma desfigura o assassino e que, ajudada pelo nosso distanciamento de seu personagem e a aproximação com as pessoas mortas por ele, faz com que esse perca a qualidade de humano. Em O Assassino da Furadeira não existe o outro desumano, somos nós que sofremos as feridas ao sermos submetidos ao ponto de vista de Reno, um jovem pintor interpretado pelo próprio diretor Abel Ferrara, que sucumbe as pressões cotidianas do mundo e começa a matar as pessoas com uma furadeira portátil para aplacar sua ira. É realmente perturbador o processo de identificação que Ferrara submete os seus espectadores, pois em um determinado momento nós temos a idéia de usar a furadeira como arma para se livrar dessas "feridas" antes mesmo do personagem indicar isso. Para chegar a esse efeito, o diretor abusa de filtros coloridos, cortes rápidos e de um jogo de sons densos em cada momento de alucinação de Reno, transmitindo a sensação de que não existe uma saída para aquela opressão do mundo. Iconoclasta, Ferrara coloca entre as pressões sofridas pelo pintor a própria necessidade de vender a sua arte, e conseqüentemente ter que fazê-la para agradar aos outros, para conseguir sobreviver, atacando o próprio meio com o qual ele trabalha. Seja pelo choque estético ou por nos colocar no corpo de um assassino, é impossível não se impactar com O Assassino da Furadeira. Nele, o inferno somos todos nós. (Bernardo Barcellos)

ANJO DA VINGANÇA
Ms. 45/Angel of Vengeance, EUA, 1981
Como no posterior Cidade do Medo, Ms. 45 traz uma Nova York lado B, guetizada, um espaço à mercê de crimes sem explicações sócio-psicológicas convincentes. O mal está feito já de antemão, o filme não precisa elaborar um diagrama de causa-conseqüência nuançado. As motivações são rústicas e diretas. A história lembra a de outros filmes de assassinato em série do mesmo período, porém certos aspectos estão mais marcados, mais fermentados até. Após sofrer dois abusos sexuais no mesmo dia, a protagonista, moça tímida e reclusa, inicia uma série de crimes, matando diversos homens com uma pistola 45. Os homens se espalham pela cidade de modo a formar uma rede de vilania automática, uma geração espontânea de violência (física ou não, verdadeira ou não) contra a protagonista, que, fechada em seu mutismo, a princípio não tinha nenhum potencial de assassina – acontece que o mal não só já está feito, como busca também seu modo de permanência onde quer que seja. È por isso mesmo que não se deve enganar com os finais de Ms. 45 ou Cidade do Medo: nada se reconciliou, nenhum sacrifício humano foi capaz de devolver a paz ao mundo. A senhorita 45 incrementa seu figurino e seu modus operandi ao suceder dos crimes, tornando-se quase uma personagem de quadrinho. Ferrara consegue partir de uma narrativa absurdamente superficial, pautada sobre o mais convencional enredo de vingança, para fazer as interrogações morais e teológicas a que seu cinema iria sempre retornar. Se há um toque trash, é muito menos questão de estilo do que o resultado de uma verdadeira imersão no lixo da cidade e de seus habitantes. A personagem vai sendo dominada por seu delírio de vingança, enquanto a cidade parece cada vez mais reduzida a guetos, becos sujos, calçadas caóticas. Mais ainda do que nos filmes recentes de Michael Mann, Ferrara já praticava nos anos 80 uma distorção esquizofrênica da paisagem urbana. Na seqüência clímax, a vingadora está vestida de freira e promove uma matança antológica na festa de Halloween. Ferrara estira a duração desse clímax macabro através de uma câmera lenta irredutível a efeitos de perversão, sadismo ou mesmo requinte visual. Tampouco há uma idéia clara de salvação ou redenção para a personagem. É antes a violência em sua força pura. (Luiz Carlos Oliveira Jr.)

CIDADE DO MEDO
Fear City, EUA, 1984
Fear City continua, em moldes mais comerciais, ali onde Ms. 45 tinha terminado. A paranóia sexual transformada em instinto assassino, no entanto, sai da mulher e vai para o homem, que não é mais o protagonista, mas um fantasma que espreita por becos escuros e escreve sua filosofia de vida num livro, bem instalado num galpão sombrio, onde também treina artes marciais. O trauma da costureira do filme anterior se transforma em pseudo-disciplina de purificação social, porque trata-se de um assassino de mulheres que vivem da indústria do sexo. Do outro lado, Tom Berenger trabalha no submundo novaiorquino, agenciando modelos de strip-tease e tentando reviver seu relacionamento com Melanie Griffith, uma de suas strippers. A intriga é típica da lavra de Nicholas St. John, porque o que era para ser um thriller rotineiro se transforma numa questão moral (Berenger não para de reviver o momento em que, quando boxeador profissional, matou um oponente no ringue) e um mergulho realmente sujo no submundo – tão sujo que a Fox, produtora original do filme, vendeu-o a uma independente para não ter sua imagem associada. Há naturalmente muita mulher pelada, algumas cenas de luta, o suspense se instala, mas Fear City está longe de ser um perfeito exemplar do cinema de exploitation, e isso se deve ao fato de que Abel Ferrara faz com que tudo tenha um peso moral que evita o desprendimento do olhar do espectador, assim reduzindo o efeito de recompensa típico desse tipo de cinema. Ainda assim, é um filme algo desajeitado, em dúvida entre continuar na linha explosiva do longa anterior ou tentar uma conciliação com a indústria (depois disso, Ferrara manteria o esquema dirigindo o telefilme The Gladiator e filmando episódios para as séries Miami Vice e Crime Story). Dessa forma, ele acaba não sendo tão intenso quanto poderia, nem deslanchando comercialmente a carreira do diretor. Restam algumas boas cenas e sobretudo a atmosfera indiscriminada de pecado, que é Ferrara puro. (Ruy Gardnier)
 
UM AMOR FATAL
China Girl, EUA, 1987
China Girl é o máximo que o cinema de Abel Ferrara pode chegar do conto de fadas. Conto de fadas noturno, sinistro, sem happy end possível, mas ainda assim um conto de fadas. E é assim que, dentro de um mundo que distila ódio ao outro e prega que a harmonia só é possível entre iguais, brota a centelha de um amor interracial que se destaca inteiramente do clima de violência que o rodeia. Surgem ecos de West Side Story nos conflitos entre as gangues e nas situações de angústia dos jovens contemporâneos que atualizam o drama shakespeariano de Romeu e Julieta, mas Ferrara sabe atribuir a seu filme uma atmosfera toda própria pelos ângulos insólitos dos planos e acima de tudo pelo cromatismo pra lá de carregado. É o filme de Ferrara que mais atribui significação à cor, em que a colocação da câmera assume mais claramente sua função conotativa. A mise-en-scène de China Girl aposta num tom de fantasia, quase expressionista, como que esquecendo que o approach para filmar um mundo brutal é o do realismo cru, dos cortes secos e da agilidade da ação. O tom dela é o da inocência do amor que nasce entre Tony e Tye, que instala situações em que o tempo se dilata e quebra a passagem objetiva do tempo. É como se a mise-en-scène fosse a única companheira do casal de namorados, e que só a eles ela devesse ser fiel. Mas há o outro lado do amor, que são as gangues de chineses e italianos em luta entre si, explodindo lojas da redondeza, atirando uns nos outros, arrumando brigas por nada ou muito pouco. O tema antecipa em dois anos Faça a Coisa Certa, e mesmo a sensação de uma panela de pressão interracial pronta para explodir já está lá. Mas no cinema de Ferrara, por mais que as questões "do mundo" (sociedade, política, religião, etnia) importem, elas serão tratadas fundamentalmente nas reações subjetivas de seus personagens consigo mesmo (primeiramente) e com os outros (em seguida), e em China Girl não é diferente. O filme se acaba como começa: estilização total, o tempo pára, os movimentos parecem mecanizados pela previsibilidade, a sensação de destino é terrível. Num clima de ódio como esses, um amor autêntico não pode ser possível, parece dizer o diretor ao fim do filme. Na maioria dos cineastas, a intriga amorosa oculta ou relega a questão social para segundo plano. No caso de Ferrara, ela amplia e o destino da união sela uma veemência de discurso. Trata-se, então, de um filme político. Um conto de fadas político, e nessa quase incongruência de proposta Ferrara realiza um de seus mais belos filmes. (RG)

CAT CHASER
EUA, 1989
É sempre trabalhoso convencer alguém do valor de Cat Chaser, e não sem motivos. Os produtores cortaram mais de uma hora do corte final de Ferrara (que tem 157 minutos e é ocasionalmente exibido, e muito bem recebido, em retrospectivas). O produto final é por vezes incompreensível, com boa parte da ação acontecendo fora de cena e os motivos dos personagens permanecendo obscuros. Neste sentido o filme lembra uma versão mais naturalista de New Rose Hotel, com a diferença que nada na estratégia do filme sugere as razões para ele ser tão impenetrável. Trata-se de uma adaptação de Elmore Leonard, um dos autores favoritos do cineasta, sobre um dono de hotel em Miami (Peter Weller, filmado para valorizar sua semelhança com Ferrara) assombrado por suas memórias de guerra que se envolve num esquema para roubar um ex-general dominicano (Tomas Milian). O próprio Leonard sempre aponta Cat Chaser como o melhor filme retirado de um dos seus livros, e é fácil perceber o porquê: ao contrário de todas as outras adaptações do autor, Cat Chaser é um filme sobre cinismo e não um filme cínico. O crítico inglês Brad Stevens apontou muito no seu livro sobre Ferrara que Cat Chaser é o negativo de China Girl, ambos filmes sobre romances secretos num cenário de ganância, o filme anterior focado num casal inocente, enquanto este num tão ou mais culpado quanto os "vilões". Cat Chaser se constrói como um estudo sobre um personagem que se convence de que, não importa o que faça, ele é um dos mocinhos. O filme é cheio de boas idéias e a habilidade de Ferrara de tirar o máximo das suas locações e situações não deixa a desejar aos seus melhores trabalhos (as cenas na piscina do hotel são brilhantes). A trama de Cat Chaser pode se tornar progressivamente obscura, mas seu espírito e idéias são claros e o filme é um dos melhores do Ferrara, uma peça importante na sua obra. (Filipe Furtado)

O REI DE NOVA YORK
King of New York, EUA, 1990
No início da projeção de O Rei de Nova York vemos Frank White (Christopher Walken) ser liberado da prisão e, após algumas seqüências, instalar seu quartel general no Hotel Plaza, um dos mais luxuosos da cidade onde se passa o filme. Temos o crime e a sordidez invadindo o templo do luxo e da sofisticação. Isso é mais ou menos um retrato simbólico daquilo que Abel Ferrara viria a fazer ao longo de sua carreira. Penetrar com seu cinema que faz pouca ou nenhuma concessão às normas do bom gosto ou da narrativa cinematográfica moldada em princípios canônicos, seja dentro dos moldes clássicos, seja dentro dos padrões consagrados como cinema de arte, e ir se impondo como um nome a ser conhecido, respeitado e louvado no âmbito da crítica e no circuito dos festivais cinematográficos. O Rei de Nova York é um dos mais interessantes e expressivos exemplares da obra de Ferrara. Momento de transição, juntamente com seu trabalho seguinte – Vício Frenético (1992) – em que deixa de ser visto como um mero condutor de exploitations de baixo orçamento e já deixa encontrar delineadas e amadurecidas as características de seu estilo pessoal. Um cinema que pode ser definido como em constante pulsação. Cada seqüência, ou mesmo cada plano isolado guarda em si uma força de intensidade explosiva, que reside muito mais no momento em si que na coerência global do conjunto. Não que este ao final não se imponha coeso, muito pelo contrário. Só que essa coesão não brota a partir de uma sujeição a padrões narrativos pré-estabelecidos, mas sim da veracidade que o autor sempre impõe a todos seus trabalhos, que nunca deixam de espelhar a sua própria vivência. Ferrara é homem de exceção e de excessos, e assim também pode ser classificada sua obra. No caso específico de O Rei de Nova York, temos a imposição da figura de Frank White. Cada seqüência expõe uma de suas diferentes facetas, mas a totalidade de seus pensamentos e atitudes é um enigma que vai ao longo do filme sendo ao mesmo tempo decifrado e tornado mais complexo, até o final que transfere a ele as marcas do herói (ou seria anti-herói?) trágico, como um rei de muitas das peças escritas por Shakespeare. Frank é figura que se define e se contradiz a cada instante. Assassino impiedoso de seus adversários, mas preocupado na manutenção de um hospital que atenda às necessidades de sua comunidade. E essas são algumas das pequenas minúcias de um personagem que encontra em Christopher Walken, ator de talento inigualável e aqui em estado de graça, a mais perfeita tradução para sua complexidade. O universo de Abel Ferrara encontra-se também perfeitamente exemplificado ao longo de O Rei de Nova York. Vemos aqui que os mesmos personagens que imergem num mundo de crimes, drogas e sexo promíscuo, mas também consumem arte, vendo peças de teatro e filmes clássicos – chama atenção a seqüência na qual traficantes tratam de negócios envolvendo um carregamento de drogas enquanto assistem ao Nosferatu de Murnau. E não deixam de carregar a inefável culpa católica, tão recorrente ao longo da obra de Ferrara. Sua capacidade como encenador também se impõe com evidente clareza em O Rei de Nova York. Cada seqüência de seu filme é carregada com uma secura que vai de encontro a uma dramaticidade operística presente em diversos filmes de gângster como na trilogia O Poderoso Chefão ou no Scarface de Brian DePalma. Não há em O Rei de Nova York espaço para idealização ou heroísmo. Bandidos e policiais se confundem em suas atitudes e objetivos, como no momento em que o grupo de Frank é traído e sofre uma emboscada orquestrada pelos tiras vingativos vividos por David Caruso e Wesley Snipes. A partir daí, as cenas se sucedem de forma conduzida pela mise-en-scène de Ferrara com um raro brilho, associado a uma acachapante simplicidade. A perseguição nos carros, o embate entre Caruso, Snipes e Larry Fishburne tendo a ponte como fundo, o assassinato no enterro, o duelo no metrô entre Walken e Victor Argo, tudo culminando em seqüência climática inesquecível no interior de um táxi preso num engarrafamento nas ruas de Manhatthan. Ferrara se apresenta nesse filme como um cineasta tão consciente do domínio de seu talento que se dá ao luxo da auto-referência, reeditando aqui um momento de seu China Girl (1987). Tudo isso torna assistir a O Rei de Nova York uma missão obrigatória para todos que desejam conhecer o que é Abel Ferrara. (Gilberto Silva Jr.)

VÍCIO FRENÉTICO
Bad Lieutenant, EUA, 1992
Vício Frenético tem um eixo cronológico muito preciso, o tempo de quatro jogos de uma miraculosa virada na final do campeonato de beisebol. Ainda assim, não há filme que trabalhe de modo tão desorientador nas perspectivas de tempo, espaço, alucinação, realidade, êxtase e normalidade. A montagem abusa de elipses e falsos raccords para nos retirar de uma percepção objetiva dos fatos e adentrar no universo de culpas & excessos do personagem principal, sem nome, referido apenas como "LT" nos créditos. Sem maiores amparos de psicologismo na construção do personagem, apenas vemos o "mau chefe de polícia" levando seus filhos à escola, chegando em cenas de crime, apostando com os colegas em jogos de beisebol, fumando crack, cheirando cocaína, etc. Vício Frenético é o último romance maldito, herdeiro de William Blake, de Rimbaud, dos Cantos de Maldoror, um mergulho de cabeça nos domínios do destempero e do mal, na intolerável sensação de descontentamento e na busca de transgredir para compensar uma enorme necessidade (a fala de Zoe Lund, atriz-junkie e roteirista do filme, é uma espécie de declaração de princípios do cinema de Ferrara). O resultado é uma autêntica obra-prima e um dos grandes filmes da década de 90, um filme que ultrapassa mesmo o choque de imaginário dos filmes "extremos" e ainda assim vislumbra um escopo muito mais amplo que a seara juvenil do exploitation. A temporada de Harvey Keitel no inferno não é de glorificação ostentatória, mas um aterrorizante conflito entre falta e perdão, entre uma inocência inalcançável e um mundo de corrupção que mostra suas portas escancaradas. A câmera acompanha, distanciada sempre que possível, o processo de seu personagem entre perdição e purificação, cabendo aos momentos conotativos (o angélico ambiente familiar, a música "Pledging My Love", a plataforma rodoviária vazia e mal iluminada, a aparição do Cristo amparada por luzes laterais estouradas) criar uma atmosfera de sonho, agora impossível, da reversibilidade de todas as coisas. O choro agudo, interiorizado e quase mudo de Harvey Keitel resume o desespero incontido do personagem e é um dos momentos mais forte de toda história do cinema. (RG)

INVASORES DE CORPOS
Body Snatchers, EUA, 1993
Invasores de Corpos é o único filme produzido por um grande estúdio de Abel Ferrara, e também seu único filmado em cinemascope. Apesar disso, o filme é dos mais invisíveis da carreira do diretor e infelizmente pouquíssimo visto no seu formato correto (até o DVD nacional é pan & scan). Apesar de ser uma encomenda, Invasores de Corpos se encaixa perfeitamente dentro das preocupações do cineasta, que desde o Tony Coca-Cola de O Assassino da Furadeira sempre apresentou tipos próximos dos alienígenas vistos aqui, já que desumanização sempre existiu como um dos seus temas centrais. Ferrara adiciona duas grandes sacadas nesta terceira adaptação do livro de Jack Finney: primeiro, localizar a ação numa base militar, um espaço que facilita a disseminação dos alienígenas sem que esta chame a atenção. A outra é posicionar a trama no seio de uma família cuja mãe morta acabara de ser substituída, permitindo a uma adolescente ao longo do filme assassinar simbolicamente a própria família. Isto garante ao filme um espaço específico diferente das versões anteriores. E o foco numa família, além de garantir o pêndulo poder/autoridade/família que é central para o que Ferrara tem a dizer, lhe garante uma especificidade no campo da dramaturgia que os filmes de Don Siegel e Philip Kaufman não tinham. Para além disso, o filme é um espetáculo de sombras e formas com uma utilização excepcional do quadro do cinemascope. É um filme construído a partir de silhuetas e de formas vazias. O medo localizado em carcaças desprovidas de estofo; corpos vazios, enfim. Invasores de Corpos é um filme apocalíptico. Junto a The Addiction, os dois filmes mais frankfurtianos de Abel Ferrara. Ele termina em genocídio, apenas dessa vez não é a humanidade que está sendo destruída, só que este final feliz é mais desconcertante e negativo que qualquer coisa encontrada nas versões anteriores. (FF)

OLHOS DE SERPENTE
Dangerous Game/Snake Eyes, EUA, 1994
Eddie (Harvey Keitel) é um diretor de cinema que está filmando um casal em violenta crise. A atriz que faz a mulher do casal no filme dentro do filme é Madonna, que está nada menos que sensacional (a cena em que ela chora às raias da alucinação na frente de um espelho, sendo dirigida por Keitel fora de quadro, é de uma intensidade absurda). Na primeira cena de Olhos de Serpente, Eddie janta com sua esposa e o filhinho. Toca uma música clássica ao fundo. Na cena seguinte, ele já se encontra no set de filmagem e tenta extrair de Sarah (Madonna) e Francis (James Russo) uma atuação visceral, on the edge. Há um momento em que ele diz para Francis: "Ou você está bebendo e cheirando demais ou de menos. Pare com isso ou faça mais, um dos dois!". Isso define bastante coisa sobre os rumos do cinema de Ferrara: a criação nasce de um processo extremo, desgastante – degradante. Quando Eddie recebe a visita da família, uma falsa calmaria paira no ar. Mas é só uma questão de tempo até que a violência deixe de ser latente e aflore, ou seja, até que o inferno conjugal da ficção invada o próprio casamento de Eddie (sobretudo após ele começar a ter um caso com Sarah). A ficção que ele filma e a ficção que ele vive se contaminam num determinado ponto – em Ferrara, o inferno é um vírus hiper-contagioso. Quando isso acontece, ocorre a melhor cena do filme, a explosão da esposa (o ápice de Os Chefões será também uma cena de briga entre marido e mulher, com Chris Penn e Isabella Rossellini). Assim como o lar tranqüilo e o set caótico se contrastam num primeiro momento, os diálogos desenfreados se revezam aos silêncios introspectivos de Eddie. No filme dentro do filme, os planos possuem uma potência de saturação e despojamento incrível, um ruído enorme se instala na mise en scène, os cenários montam precipícios onde os atores despencam em queda livre. Um teatro perigoso e trágico, um processo de autocombustão. Insinua-se a forma desgovernada e delirante dos filmes-abismos que Ferrara faria posteriormente. (LCOJr.)
 
THE ADDICTION
EUA, 1995
The Addiction é um filme de vampiros, e o é de uma forma inteiramente singular, pois mais do que retrabalhar códigos e convenções de gênero, ele faz as próprias imagens parecerem verdadeiras sugadoras de luz, que exaurem a energia do mundo para tornar visível sua face escondida. Depois tudo volta a ser escuro. Para sair da sombra e ser visto, o corpo precisa também vampirizar a luz, eclipsá-la como faz o personagem de Christopher Walken em sua primeira aparição, quando anda pela rua e é abordado por Kathleen (Lily Taylor). "Você quer ir a um lugar escuro?", ele pergunta e a arrasta para fora de quadro. No momento em que eles saem de quadro, uma luz estourada vaza para dentro da imagem pelo lado esquerdo, antes ocupado justamente pelo personagem de Walken, como se ele a estivesse represando e somente agora essa luz pudesse atingir o plano. É óbvio que em se tratando de Ferrara, o vampirismo é uma forma de representar a força incontrolável e destrutiva da droga, e de mostrar sua propagação violenta na sociedade. Assim como as drogas, as imagens – advenham da cultura pop ou do horror das guerras – detêm um enorme poder de contágio dentro do ambiente urbano. Kathleen a princípio não consegue entender as imagens das pilhas de corpos dos civis vietnamitas mortos no massacre de My Lai – imagens que nos fazem perceber que é da ambigüidade moral de toda a América que o filme trata, evocando um passado histórico irredimível e mostrando que sua tão frisada distinção entre bem e mal é mero discurso. Quando o corpo de Kathleen é dominado pela força maligna, ela compreende que essa força precede toda explicação. Lily Taylor está incrível, encarnando uma personagem cuja vida entra em convulsão e se afunda ao longo da narrativa, entre crises de abstinência e de overdose. Kathleen estava desde o início do filme se tornando doutora em filosofia, mas o que ela ainda precisava aprender é que o conhecimento verdadeiro só chega uma vez atravessado o sofrimento físico. Ao menos para Ferrara é assim. Uma operação interessante em The Addiction é que, sendo este o filme de Ferrara que mais se liga a uma iconografia muito específica, que pede uma dramaturgia um tanto fechada, ele exibe ao mesmo tempo as imagens mais frontais e documentais que o cineasta já fez em ruas nova-iorquinas. O preto-e-branco reitera uma atmosfera sufocante, auxiliada por potências obscuras, mensageiras de um mal eterno. Somente abandonando o corpo é possível se livrar da dependência nefasta. Por mostrar esse mundo ensombrado, em estado de putrefação ética, The Addiction é uma das bad trips mais inescapáveis e pesadas de Ferrara – ainda que no final o filme vislumbre retornar à luz do dia. (LCOJr.)

OS CHEFÕES
The Funeral, EUA, 1996
É comum reprovarem em Os Chefões seu comportamento menos devorador e mais solene em relação aos outros filmes de Abel Ferrara. O parentesco com os filmes de máfia de Scorsese e de Coppola meio que domesticaria a narrativa, adequando-a a códigos mal ou bem já aceitos pelo grande público. Embora esse diagnóstico tenha lá sua parcela de verdade, Os Chefões de maneira alguma deixa de ser um grande filme. Onde Scorsese e Coppola optaram por uma forma épica e sinfônica, Ferrara fez um filme seco, curto e grosso, com uma preferência por planos escuros e fechados, transformando a matéria ficcional do filme de máfia em pretexto para um huis clos familiar. Em termos narrativos, não acontece muita coisa. O jovem Johnny (Vincent Gallo) foi assassinado e seus irmãos querem achar o culpado. A madrugada então se estica entrecortada por flash-backs e afrontamentos. Os elementos discursivos são amortecidos para deixar circular apenas os fluxos de violência e de apego emocional dos personagens. Eles passam o filme ora se abraçando, ora brigando – um cinema do cara a cara, da fisicalidade que transborda os significados religiosos e metafísicos. Na briga de Chris Penn com Vincent Gallo, Ferrara dá mais espaço aos atores e afrouxa a decupagem, deixando a cena correr em plano-seqüência, enquadramento aberto, a mise en scéne crescendo do interior do próprio plano, no qual circula uma energia solta, não-ligada. A mitologia da máfia está em segundo plano, pois antes dela vem o aspecto concreto da mise en scène, a tendência de Ferrara a filmar tudo de maneira viva, demasiado viva. O falecido Chris Penn tem nesse filme a melhor cena de sua breve carreira: ele chega bêbado em casa e briga com a esposa (Isabella Rossellini), tomado de uma força primitiva, animal, quase exterior a ele mesmo. Nenhum discurso, símbolo ou ritual é suficiente para conjurar essa energia bruta. Como em Olhos de Serpente, Ferrara mostra novamente que a família é um núcleo atravessado por forças centrífugas. Em algum momento essas forças se tornam irrefreáveis. O filme marca o término da parceria do diretor com o roteirista Nicholas St. John. A despeito do receio que alguns devem ter sentido na época, a obra de Ferrara não se tornou mais palatável a partir de Os Chefões. Pelo contrário: o filme seguinte, The Blackout, afirmaria um mergulho vertiginoso, uma total perda de controle sobre o mundo e sobre o cinema. (LCOJr.)

BLACKOUT
The Blackout, EUA, 1997
Muitos cineastas, especialmente aqueles mais preocupados com a natureza da imagem, parecem compelidos cedo ou tarde a nos dar a sua releitura de Vertigo. Blackout é a de Ferrara, mas a opção aqui é significativa por outra razão: trata-se do primeiro filme do cineasta após seu rompimento com seu roteirista regular Nicholas St. John, com quem trabalhava desde os primeiros curtas no começo dos anos 70. Blackout é logo um genuíno novo começo, sua estrutura em duas partes reproduzindo o próprio estado de espírito do cineasta. Uma purgação, mas também um salto numa nova e excitante direção para sua obra. O material aqui é típico de Ferrara – um bom tanto de álcool, droga, culpa, a impressão de um mundo fugindo do controle, mais algumas reflexões sobre atores e cinema que retrabalham elementos de Olhos de Serpente – mas Blackout nunca se assemelha a um filme que existe só para regurgitar glórias passadas do cineasta. Como o subseqüente New Rose Hotel, Blackout é um mergulho subjetivo de um homem que tenta recuperar uma imagem de uma mulher. Ele tem como facilitador/parceiro/duplo um amigo cineasta experimental que tenta realizar um remake quase caseiro de Nana (e reforçando a idéia de imagens recuperadas Ferrara originalmente pretendia usar Matt Dillon e Mickey Rourke, que trabalharam juntos antes no Selvagem da Motocicleta de Coppola, antes de ter que se contentar com Matthew Modine e Dennis Hopper). Blackout cobre muito do mesmo terreno do Godard tardio, mas de maneira mais direta, focada e menos enamorada com sua própria retórica. Um filme sobre todas as nossas imagens e sobre como elas são organizadas e freqüentemente programadas para nos fazer esquecê-las. Um filme que existe para o ato de encorpar, celebrar e se despedir da imagem cinematográfica. (FF)  

O ENIGMA DO PODER
New Rose Hotel, EUA, 1998
Como é possível haver tamanha consonância entre a adaptação de um escritor cultuado, a perfeita assimilação de um relato estranho ao universo do próprio artista e uma resposta em imagens às questões que uma arte – a audiovisual, a família "cinema" – enfrenta num determinado momento de sua história? New Rose Hotel é a realização desse triplo empenho, uma homenagem a William Gibson (depois que pegou o projeto, o trabalho de Ferrara foi "desadaptar" o roteiro), um dos filmes mais bem-sucedidos artisticamente de Ferrara e ao mesmo tempo um tratamento sensacional de um novo regime de curto-circuito de informações e imagens naquele momento apenas esboçado. Vídeo, câmera de vigilância, pagers, celulares, fluxos invisíveis de dinheiro, conspirações e contra-conspirações, encurtamento de distâncias geográficas, África, América do Norte, Europa, Ásia. Abel Ferrara acena para um mundo maquinizado, corporativo, para dentro dele melhor entender o humano, a diferença que é estar vivo, em qualquer circunstância, em qualquer panorama. Um trio de personagens, três jogadores, estabelecem entre si um jogo de sedução (sedução pelo poder, pelo sexo, pela sensação de estar na crista da onda) e encetam a intriga de um thriller futurista que quase imperceptivelmente se transforma num filme experimental, em que o peso de cada imagem assume a dimensão de um parágrafo proustiano, em que cada lembrança amalgama uma série de construções e desejos, ao ponto que nós espectadores ficamos sem saber se X, o personagem-enigma de Willem Dafoe, busca em sua mente os signos que revelam o momento em que ele poderia ter descoberto o nascimento de sua penúria, ou se simplesmente ele busca através delas um último conforto antes de ser encontrado por seus perseguidores. É o momento da cinematografia de Ferrara em que toda desorientação moral ou espaço-temporal da trama se transforma em desorientação estrutural, ontológica, que faz nascer algo inefável, e que não sentíamos desde O Espelho, de Tarkovski. Puras imagens-afeto. (RG)

GANGUES DO GUETO
‘R Xmas, EUA, 2001
O filme começa com um letreiro dizendo que dezembro de 1993 é o último mês de mandato do prefeito de Nova York David Dinkins. E termina com um letreiro dizendo que Rudolph Giuliani assumiria no mês seguinte, acrescido de "to be cont...", assim mesmo, com reticências completando a palavra. Sabemos que Giuliani, com seu programa "Tolerância Zero", dificultou um bocado o trabalho dos pequenos traficantes. Assim, o que vemos em todo o miolo do filme é o cotidiano de um desses traficantes (Lillo Brancato), de sua esposa (Drea de Matteo) e familiares. Um cotidiano agitado, claro, pois além do crescimento da venda de drogas na época natalina há o desespero das compras do período, com lojas abarrotadas e consumidores estressados. Mas também um cotidiano que está prestes a acabar, pois o próximo prefeito não daria trégua a eles. Há uma seqüência brilhante no carro, com o casal de traficantes mudo durante todo o trajeto, passando por pontes que refletem no parabrisa. Não se trata de uma quebra na interação do casal – saberemos logo, mas de um cansaço típico da época, quando cada um quer se silenciar, mas não pode, pois tem que correr atrás dos presentes. Um outro plano essencial, curiosamente simbólico de toda essa correria de fim de ano, é o que mostra De Matteo tentando arranjar dinheiro para libertar o marido seqüestrado, acompanhada da boneca que a filha quer de presente no banco de trás. Imagens da boneca refletida no retrovisor se mesclam ao desespero dela ao saber do seqüestro do marido. É um belo exemplo da maneira como Ferrara trata o material com leveza, extraindo texturas belíssimas com as fusões que se acumulam. Fusões de papelotes de droga para notas de dinheiro, daí para os olhares concentrados do casal, daí para os amigos do casal. Temos também o policial corrupto interpretado por Ice T, responsável pelo seqüestro do traficante – sua indecisão, sua hesitação. Seus constantes avisos, quase implorando para eles pararem de vender drogas. Como um anjo da guarda tortuoso, ele parecia anunciar tempos mais difíceis para a profissão. Um belo filme sobre um cotidiano efêmero, uma felicidade periclitante. (Sérgio Alpendre)

MARIA
Mary, EUA/França/Itália, 2005
A trip de Marie, personagem de Juliette Binoche neste filme de Abel Ferrara, seu mais recente até agora, não é as drogas, nem a dificuldade de criação. Após interpretar Maria Madalena num filme dirigido por Tony (Matthew Modine), que relê a vida do Cristo a partir dos evangelhos apócrifos, ela entra numa jornada de fé tão dedicada que passa a viver em Jerusalém e visitar locações sagradas diariamente. O combustível da redenção é outro, mas a obsessão da busca, o embate de forças interiores e exteriores, o espanto diante da magnitude da empreitada de autodescoberta e autodigestão é o mesmo de Kathleen (The Addiction), de X (New Rose Hotel), de Matty (The Blackout), do policial "mau" (Vício Frenético). Ou dos outros personagens de Maria: Tony e a busca de um diálogo impossível através de seu filme, Ted (Forest Whitaker) e a busca da salvação para sua esposa e seu filho recém nascido. Onde procurar a fé em um mundo sem Deus? Ted vaga de táxi pela noite nova-iorquina, vai à casa de uma amante, atriz amiga de Marie, passa a noite com ela e "suga" de sua agenda telefônica o número de Marie. Ele se comporta, nessa seqüência de eventos, como um Nosferatu na mesma medida de Chistopher Walken em O Rei de Nova York ou Harvey Keitel na obra-prima Vício Frenético. A princípio interessado nela como elemento de exploitation para seu programa televisivo, Ted encontra nas conversas por celular com Marie uma forma de religião. Ele tenta religar-se ao divino através de uma presença-ausência no mundo, um mediador espiritual que traz a boa notícia, a da salvação. Marie é também Cristo. Na cena em que participa por telefone do programa de TV que Ted apresenta, ela diz algo como ter descoberto "que estava conectada ao passado". Nesse já recorrente universo do filme dentro do filme na obra de Ferrara, encarnar um personagem não é vestir uma segunda pele, mas descobrir uma pele anterior, que estava calada sob a epiderme. Uma vez que o ator descobre esse personagem sob sua própria pele e, pior ainda, uma vez que descobre que esse personagem existia antes mesmo dele, não há mais como fugir. Isso se expande ao filme como um todo: Maria, de certa forma, é na sua própria estrutura um filme que não consegue fugir de si mesmo. Maria e possivelmente a maior parte dos filmes de Abel Ferrara: eles ficam correndo atrás da imagem que veio antes, a imagem ausente que lhes deu origem, como se fossem remakes de obras escondidas (não é à toa que Tony adapta para o cinema os evangelhos que foram escondidos e renegados). O último plano de Maria não é tão diferente do último plano de New Rose Hotel: a imagem fugidia, no limite do virtual, de uma mulher que deu um passo à frente de todos os homens, que pegou uma tangente enigmática na história, ou que simplesmente se furtou à história. Como Asia Argento em New Rose Hotel, Marie é no fundo um vetor sem rumo. O filme em si também funciona como uma pura descarga de energia do presente, uma imbricação de personagens-vetores em suas jornadas turbulentas, por vezes extremas. A melhor tradução visual desse amálgama confuso são as lentíssimas fusões que abundam como recurso de estilo e escritura em Maria. Ferrara confirma, simultaneamente, uma propensão a volta e meia filmar de pontos de vista ingratos, compondo planos soltos, "mal" enquadrados, jogando muitas vezes com a abstração passageira, suspensões momentâneas do filme, mesmo se a cena instiga o espectador a querer entendê-la, decifrá-la. Essa sabotagem da cognição pode ser a prova de uma verdadeira profissão de fé. (LCOJr.)


 

 





Anjo da Vingança (1981)


Rei de Nova York (1990)


Olhos de Serpente (1994)


Enigma do Poder (1998)


Mary (2005)