O IMPÉRIO DOS SENTIDOS
David Lynch expõe em Paris

Um dos elementos mais curiosos da exposição The Air is On Fire é um cenário. De filme. Na verdade, essa construção encerra o percurso - e faz muito sentido no caso de Lynch, falar em um percurso, como apontarei abaixo - da exposição montada na Fondation Cartier, em Paris. Mais na verdade ainda, o cenário é um jogo, como sempre jogo é o que Lynch cria. Jogo no sentido das regras lógicas e das ocultações. A operação: vê-se na parede um pequenino desenho (cerca de 10cm x 15cm) de uma sala. Não uma sala naturalista, mas uma sala, digamos, lynchiana. De poltronas kitsch, de chão colorido, de uma ambiance bizarra. Na parede. Ao se virar para o lado oposto, vê-se... O quarto. O mesmo que está desenhado. Mas em tamanho natural. Construído. Ao fundo dele, portas abertas. Pode-se passar por elas. E sair pelo outro lado da estrutura.

Estrutura, aliás, é aqui a palavra-chave. O que se vê atrás do quarto é que ele é um "set". Vêem-se os tapumes pretos e numerados típicos de uma construção para filmagens. É uma "estrutura aparente" a obra de Lynch vista ali.

Mas qual não é? O trabalho, construído para a exposição, é claramente inspirado em Inland Empire, último longa de Lynch. No filme, também se vêem estruturas de filmagem desnudadas. Mais que isso, o filme é todo construído por uma mecânica labiríntica de entrar e sair de cômodos. De passar por portas. A atriz que é revelada como personagem que é revelada como figura real que é revelada como atriz novamente que multiplamente transformada muda de regime de existência sempre ao atravessar um portal.

Essa construção "radiográfica", de exposição de esqueletos, de entranhas, é central na obra de Lynch. Na verdade, a se isolarem expressões-chave de sua obra, a primeira será "distorção estrutural", a segunda "estrutura aparente". De fato, será fácil diante da "complexidade" de filmes como A Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos ou Inland Empire enunciar versões "simples", "compreensivas" das histórias apresentadas na tela, histórias que foram distorcidas estruturalmente por ele a partir de uma exposição explícita de suas entranhas - será fácil, por exemplo, dizer que A Estrada Perdida "não passa" (muitas aspas aqui) da história da vingança de um marido impotente traído por sua esposa contra o mafioso com a qual ela tem um caso. Mas é claro que o jogo do filme é muito mais complexo que esse e que o que está em ação ali são formas de metamorfose estrutural de identidades.

E essa metamorfose é justamente o que grita na exposição. Como artista plástico, Lynch também desnuda estruturas, mas não exatamente (apenas) as construtivas/constitutivas. A primeira sala apresenta seus desenhos. Mais de 500. São momentos de Lynch alterando o sentido de objetos que chegam a suas mãos. Ele desenha em cartelas de fósforos, em guardanapos, em páginas de roteiro. Ele nunca desenhará em um livro de desenho. A lápis, caneta esferográfica ou hidrocor, desenhará coisas que "existem" (pessoas, cães) e coisas que "não existem" (formas abstratas, geometrismos). Mas tanto em um quanto no outro, trata-se de uma produção de lógica própria, ou seja, de abstrações. Lynch não desenha o que está diante de seus olhos (no sentido em que ele não está no restaurante desenhando no guardanapo e desenha um garçom. Prefere inventar um cachorro estranho). Desenha o que está dentro de sua cabeça.

A referência essencial de todos esses trabalhos parece ser o plot. Na mesma sala, uma coleção de pinturas a óleo, carvão, algodão, encáustica e outros meios. Em cada um deles, letras impressas em papel e coladas à tela servem de "título". E são sempre títulos com cara de roteiro: "That’s Me in Front of My House", "She Was Crying Just Outside the House", "Here I Am – Me as a House". Sim, a casa está em todas as pinturas, de uma forma ou de outra. Sempre uma casa deformada e primária, cercada de um background escuro, industrial - há uma forte sugestão de fuligem no fundo a óleo.

Essa conexão com a indústria está presente na obra de Lynch desde sempre. Em Eraserhead, seu primeiro longa, vemos um homem cercado por um universo fabril e por relações mecanizadas e por uma biologia fora de controle. E ouvimos toda essa problemática traduzida em desenho de som - feito quase sempre pelo próprio Lynch em seus filmes: ruídos mecânicos, de usina, somados a uma sonoplastia quase circense, lúdica. Na exposição, além das obras e da cenografia, Lynch assina também a trilha sonora: uma música tensa, semelhante às de seus filmes, toca o tempo todo. E botões colocados em pontos estratégicos da mostra permitem ao visitante interferir na música com ruídos industriais.

O industrialismo se verá (mas não se ouvirá) também no subsolo, em que ele apresenta suas fotografias - e em que um cinema com cara do teatrinho de Eraserhead exibe seus curtas-metragens e suas séries de animação, todos claramente influenciados pelo trabalho de Norman McLaren, havendo inclusive em vários trabalhos referências explícitas a Neighbors, o filme mais conhecido e celebrado do animador canadense. Do mesmo modo, suas fotos constantemente apresentam vizinhanças de indústrias, assim como figuras cujas formas são mais ou menos deslocadas de sua semiologia original (ele mesmo aparece em duas fotos, aliás, em uma delas fora de foco, em outra, em um espelho).

Lynch por vezes exagera na invenção. Sua série de Distorted Nudes não chega a ser muito mais do que apenas uma demonstração de idéia. Mas o plot acaba superando o "filme": o artista coleciona desde moleque uma série de fotografias eróticas. Há algum tempo - a maior parte das obras da mostra não é datada e nem recebe nome - ele começou a pegar as fotos, escaneá-las e a as alterar no Photoshop. O resultado são cenas bizarras de sexo, com falos distorcidos e outras fantasias.

Mas é na segunda sala, ainda no térreo, que Lynch exercita mais fortemente seu projeto. Sua pintura na série Bob é o que mais se aproxima de seu ideal de recriação dos objetos, das identidades e das estruturas. Aqui também, títulos com cara de roteiro, ou seja, plots, mas com cenas que reinventam absolutamente os sentidos dos materiais e das "histórias". São assemblages. Lynch mistura tinta óleo e cera com objetos (cabeças de boneca queimadas, gravetos, sacos plásticos, jornais). Quatro painéis maiores mostram o personagem Bob em situações de fundo fotográfico (Lynch hiper-amplia uma imagem digitalizada e pinta sobre ela). No segundo deles, vemos Bob a segurar uma faca. Suas calças são um jeans verdadeiro colado na tela. Sua camisa também é um objeto real. Idem a faca. Diante dele, em um sofá (fotográfico), uma mulher tem uma saia e uma calcinha reais abaixadas. Ele pergunta: "Do You Want to Know What I Really Think?" Ela: "No". Mas serão mesmo os corpos dos dois que chamarão mais a atenção. De massa e cera, apresentam uma fisicalidade distorsida, aproximada da que se pode sentir em Homem Elefante ou em Eraserhead.

O mesmo efeito-roteiro se obtém, por exemplo, em This Man Was Shot 0,9502 Seconds Ago, em que um personagem (todo vestido "a caráter", ou seja, com roupas reais igualmente pregadas à tela), em face a um cenário de foto, tem o peito dilacerado por tinta vermelha e do qual salta uma bexiga de plástico envolvida em bandagens. Ao lado do estranho objeto e ligado a ele por uma seta indicativa, um texto: "Spirit". O rosto do homem também chamará a atenção por sua materialidade, digamos, "lamacenta". Mas a idéia de paralisação temporal será o elemento mais forte do, digamos, plano.

Um dos quadros mais impactantes da série é Bob Finds Himself in a World for which He Has No Understanding, que, como os outros, traz seu longo título pintado na tela. Formado, aliás, por duas telas, quadradas e contíguas, para juntas criarem um retângulo e virarem uma tela "de cinema", ele mostra o personagem a caminhar por uma espécie de floresta. Nas extremidades direita e esquerda da imagem formada cortinas emolduram e confirmam esse desejo de semelhança com o film theater.

Desejo que se multiplicará mesmo nos momentos mais abstratos da sala, como em Bob’s Anti-Gravity Factory, em que uma fábrica recortada em papelão e pintada de preto é colada à tela e um fundo terra. Ela, como o título sugere, flutua, dando vazão às aventuras do personagem da série.

Essa conexão com o cinema, entretanto, retorna à noção de cenografia. Um dos procedimentos mais habituais da filmagem de Lynch é o uso de um traveling subjetivo-abstrato pela escuridão em busca de um objeto que, iluminado, servirá de referência para a trama. Abajures, telefones que tocam, livros, fotos em porta-retratos, Lynch sempre perseguirá esses pontos na escuridão. Mais que isso, uma câmera-personagem o fará. Em Estrada Perdida, por exemplo, desconfiaremos que essa câmera (que encontra telefones e corredores ocultos) é Fred, mas nos perderemos nessa desconfiança. Desconfiaremos também do Mistery Man. Mas essa subjetividade observadora parece mesmo ser Lynch. Assim como a que guia a primeira sala e o subsolo da exposição. Em ambos os espaços, andamos pela escuridão, cercados por música onipresente e guiados por iluminações localizadas em objetos - as obras, claro. É de um percurso que se trata, então. É de movimento. De cinema.


Alexandre Werneck

 

 





Lynch 1: Cenário criado para a exposição
a partir de um desenho.


Lynch 2: Desenho sem título e
sem data a partir do qual se cria o cenário.


Lynch 3: Desenho sem título e
sem data que dá título à exposição


Lynch 4: Imagem digital da série “Distorted Nudes”


Lynch 5: Pintura “Here I Am – Me as a House” (1990)


Lynch 6: Pintura “Do you want to know
what I really think” (2003)


Lynch 7: Pintura “Rain” (2005)


Lynch 8: Auto-retrato sem data e sem título