Um
dos elementos mais curiosos da exposição
The Air is On Fire é um cenário.
De filme. Na verdade, essa construção
encerra o percurso - e faz muito sentido no caso
de Lynch, falar em um percurso, como apontarei abaixo
- da exposição montada na Fondation
Cartier, em Paris. Mais na verdade ainda, o cenário
é um jogo, como sempre jogo é o que Lynch
cria. Jogo no sentido das regras lógicas e das
ocultações. A operação:
vê-se na parede um pequenino desenho (cerca de
10cm x 15cm) de uma sala. Não uma sala naturalista,
mas uma sala, digamos, lynchiana. De poltronas
kitsch, de chão colorido, de uma ambiance
bizarra. Na parede. Ao se virar para o lado oposto,
vê-se... O quarto. O mesmo que está desenhado.
Mas em tamanho natural. Construído. Ao fundo
dele, portas abertas. Pode-se passar por elas. E sair
pelo outro lado da estrutura.
Estrutura, aliás, é aqui a palavra-chave.
O que se vê atrás do quarto é que
ele é um "set". Vêem-se os tapumes
pretos e numerados típicos de uma construção
para filmagens. É uma "estrutura aparente"
a obra de Lynch vista ali.
Mas qual não é? O trabalho, construído
para a exposição, é claramente
inspirado em Inland Empire, último longa
de Lynch. No filme, também se vêem estruturas
de filmagem desnudadas. Mais que isso, o filme é
todo construído por uma mecânica labiríntica
de entrar e sair de cômodos. De passar por portas.
A atriz que é revelada como personagem que é
revelada como figura real que é revelada como
atriz novamente que multiplamente transformada muda
de regime de existência sempre ao atravessar um
portal.
Essa construção "radiográfica",
de exposição de esqueletos, de entranhas,
é central na obra de Lynch. Na verdade,
a se isolarem expressões-chave de sua obra, a
primeira será "distorção estrutural",
a segunda "estrutura aparente". De fato, será
fácil diante da "complexidade" de filmes
como A Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos
ou Inland Empire enunciar versões "simples",
"compreensivas" das histórias apresentadas
na tela, histórias que foram distorcidas estruturalmente
por ele a partir de uma exposição explícita
de suas entranhas - será fácil, por
exemplo, dizer que A Estrada Perdida "não
passa" (muitas aspas aqui) da história da
vingança de um marido impotente traído
por sua esposa contra o mafioso com a qual ela tem um
caso. Mas é claro que o jogo do filme é
muito mais complexo que esse e que o que está
em ação ali são formas de metamorfose
estrutural de identidades.
E essa metamorfose é justamente o que grita na
exposição. Como artista plástico,
Lynch também desnuda estruturas, mas não
exatamente (apenas) as construtivas/constitutivas. A
primeira sala apresenta seus desenhos. Mais de 500.
São momentos de Lynch alterando o sentido de
objetos que chegam a suas mãos. Ele desenha em
cartelas de fósforos, em guardanapos, em páginas
de roteiro. Ele nunca desenhará em um livro de
desenho. A lápis, caneta esferográfica
ou hidrocor, desenhará coisas que "existem"
(pessoas, cães) e coisas que "não
existem" (formas abstratas, geometrismos). Mas
tanto em um quanto no outro, trata-se de uma produção
de lógica própria, ou seja, de abstrações.
Lynch não desenha o que está diante de
seus olhos (no sentido em que ele não está
no restaurante desenhando no guardanapo e desenha um
garçom. Prefere inventar um cachorro estranho).
Desenha o que está dentro de sua cabeça.
A referência essencial de todos esses trabalhos
parece ser o plot. Na mesma sala, uma coleção
de pinturas a óleo, carvão, algodão,
encáustica e outros meios. Em cada um deles,
letras impressas em papel e coladas à tela servem
de "título". E são sempre títulos
com cara de roteiro: "That’s Me in Front of My
House", "She Was Crying Just Outside the House",
"Here I Am – Me as a House". Sim, a casa está
em todas as pinturas, de uma forma ou de outra. Sempre
uma casa deformada e primária, cercada de um
background escuro, industrial - há
uma forte sugestão de fuligem no fundo a óleo.
Essa conexão com a indústria está
presente na obra de Lynch desde sempre. Em Eraserhead,
seu primeiro longa, vemos um homem cercado por um universo
fabril e por relações mecanizadas e por
uma biologia fora de controle. E ouvimos toda essa problemática
traduzida em desenho de som - feito quase sempre
pelo próprio Lynch em seus filmes: ruídos
mecânicos, de usina, somados a uma sonoplastia
quase circense, lúdica. Na exposição,
além das obras e da cenografia, Lynch assina
também a trilha sonora: uma música tensa,
semelhante às de seus filmes, toca o tempo todo.
E botões colocados em pontos estratégicos
da mostra permitem ao visitante interferir na música
com ruídos industriais.
O industrialismo se verá (mas não se ouvirá)
também no subsolo, em que ele apresenta suas
fotografias - e em que um cinema com cara do teatrinho
de Eraserhead exibe seus curtas-metragens e suas
séries de animação, todos claramente
influenciados pelo trabalho de Norman McLaren, havendo
inclusive em vários trabalhos referências
explícitas a Neighbors, o filme mais conhecido
e celebrado do animador canadense. Do mesmo modo, suas
fotos constantemente apresentam vizinhanças de
indústrias, assim como figuras cujas formas são
mais ou menos deslocadas de sua semiologia original
(ele mesmo aparece em duas fotos, aliás, em uma
delas fora de foco, em outra, em um espelho).
Lynch por vezes exagera na invenção. Sua
série de Distorted Nudes não chega
a ser muito mais do que apenas uma demonstração
de idéia. Mas o plot acaba superando o
"filme": o artista coleciona desde moleque
uma série de fotografias eróticas. Há
algum tempo - a maior parte das obras da mostra
não é datada e nem recebe nome - ele
começou a pegar as fotos, escaneá-las
e a as alterar no Photoshop. O resultado são
cenas bizarras de sexo, com falos distorcidos e outras
fantasias.
Mas é na segunda sala, ainda no térreo,
que Lynch exercita mais fortemente seu projeto. Sua
pintura na série Bob é o que mais
se aproxima de seu ideal de recriação
dos objetos, das identidades e das estruturas. Aqui
também, títulos com cara de roteiro, ou
seja, plots, mas com cenas que reinventam absolutamente
os sentidos dos materiais e das "histórias".
São assemblages. Lynch mistura tinta óleo
e cera com objetos (cabeças de boneca queimadas,
gravetos, sacos plásticos, jornais). Quatro painéis
maiores mostram o personagem Bob em situações
de fundo fotográfico (Lynch hiper-amplia uma
imagem digitalizada e pinta sobre ela). No segundo deles,
vemos Bob a segurar uma faca. Suas calças são
um jeans verdadeiro colado na tela. Sua camisa também
é um objeto real. Idem a faca. Diante dele, em
um sofá (fotográfico), uma mulher tem
uma saia e uma calcinha reais abaixadas. Ele pergunta:
"Do You Want to Know What I Really Think?"
Ela: "No". Mas serão mesmo os corpos
dos dois que chamarão mais a atenção.
De massa e cera, apresentam uma fisicalidade distorsida,
aproximada da que se pode sentir em Homem Elefante
ou em Eraserhead.
O mesmo efeito-roteiro se obtém, por exemplo,
em This Man Was Shot 0,9502 Seconds Ago, em que
um personagem (todo vestido "a caráter",
ou seja, com roupas reais igualmente pregadas à
tela), em face a um cenário de foto, tem o peito
dilacerado por tinta vermelha e do qual salta uma bexiga
de plástico envolvida em bandagens. Ao lado do
estranho objeto e ligado a ele por uma seta indicativa,
um texto: "Spirit". O rosto do homem também
chamará a atenção por sua materialidade,
digamos, "lamacenta". Mas a idéia de
paralisação temporal será o elemento
mais forte do, digamos, plano.
Um dos quadros mais impactantes da série é
Bob Finds Himself in a World for which He Has No
Understanding, que, como os outros, traz seu longo
título pintado na tela. Formado, aliás,
por duas telas, quadradas e contíguas, para juntas
criarem um retângulo e virarem uma tela "de
cinema", ele mostra o personagem a caminhar por
uma espécie de floresta. Nas extremidades direita
e esquerda da imagem formada cortinas emolduram e confirmam
esse desejo de semelhança com o film theater.
Desejo que se multiplicará mesmo nos momentos
mais abstratos da sala, como em Bob’s Anti-Gravity
Factory, em que uma fábrica recortada em
papelão e pintada de preto é colada à
tela e um fundo terra. Ela, como o título sugere,
flutua, dando vazão às aventuras do personagem
da série.
Essa conexão com o cinema, entretanto, retorna
à noção de cenografia. Um dos procedimentos
mais habituais da filmagem de Lynch é o uso de
um traveling subjetivo-abstrato pela escuridão
em busca de um objeto que, iluminado, servirá
de referência para a trama. Abajures, telefones
que tocam, livros, fotos em porta-retratos, Lynch sempre
perseguirá esses pontos na escuridão.
Mais que isso, uma câmera-personagem o fará.
Em Estrada Perdida, por exemplo, desconfiaremos
que essa câmera (que encontra telefones e corredores
ocultos) é Fred, mas nos perderemos nessa desconfiança.
Desconfiaremos também do Mistery Man. Mas essa
subjetividade observadora parece mesmo ser Lynch. Assim
como a que guia a primeira sala e o subsolo da exposição.
Em ambos os espaços, andamos pela escuridão,
cercados por música onipresente e guiados por
iluminações localizadas em objetos -
as obras, claro. É de um percurso que se trata,
então. É de movimento. De cinema.
Alexandre Werneck
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