Em Honkytonk Man, um
plano longo detém-se no rosto de Whit, enquanto este
observa seu tio gravar uma música no estúdio. O plano
nos inscreve na atmosfera da sala; mais particularmente,
nos põe em contato com o estado emotivo do menino naquele
momento. (1) Sabemos da amizade e do carinho crescente
entre os dois personagens, além de outros aspectos
de sua relação, desenvolvidos ao longo de filme, como
dependência e admiração. Mas caracterizações ou sentidos
desta ordem não são suficientes para dar a dimensão
de um plano como este, no qual um instante de ficção
ganha um mistério apenas presenciável.
Trata-se de um plano que dá a medida de uma operação constante na obra de Clint
Eastwood: a distensão e o esgarçamento da cena para além de suas necessidades
narrativas. Estas “janelas” abertas dentro da decupagem – ou desvios momentâneos
da narratividade – trabalham como uma espécie de fenda que suga o espectador
para um vazio além-filme, um vácuo no qual o sentimento se prolonga. O desenrolar
das ações que constroem pouco a pouco os sentidos do relato abrem espaço para
puras capturas de instantes, de diálogos ou de olhares, nas quais o cinema parece
contemplar de forma direta a vida que ele representa ou tenta emular. Nestas
ocasiões privilegiadas, podemos perceber a atenção concedida aos seres que habitam
este universo.
Sabe-se que o cinema de Clint Eastwood é, intensamente, um cinema do ator: um
cinema feito de planos pausados, de gestos e de expressões, no qual a câmera
nunca omite ou negligencia uma presença no espaço da ação. Todo personagem, mesmo
secundário, tem direito a uma imagem, ou a uma fala, ainda que pontuais, para
manifestar-se dentro de uma cena. É desta forma, ancorando-se abertamente num “fator
humano” inscrito no seio de um “classicismo”, que os sentidos suscitados pelas
ações ganham reverberações múltiplas e não-prescritas. De um lado, a materialização
de uma “realidade cinematográfica” pela decupagem e pela interpretação, de outro,
uma abstração do drama pela mise en scène. O dom de Clint para a descrição
faz com que os personagens se concretizem em suas ações, ao mesmo tempo em que
a psicologia que os conduziria se esvaece em nome de um sentimento do momento.
Há uma transparência cultivada na condução da narrativa, que evoca uma verdade
dos fatos e das presenças. Acima do roteiro, acima da decupagem e da montagem,
pairam os homens com suas expectativas, seus pensamentos e seus anseios, ainda
que a câmera não possa perscrutá-los e, no mais das vezes, apenas capte suas
manifestações físicas. Como protagonista, Clint encarna sempre variações de um
personagem que é fantasma de si mesmo: homens que carregam memórias (ou não-memórias)
dolorosas, que trazem atrás de si um passado “sem nome”. Homens que traçam, solitários,
seu próprio caminho no mundo e no tempo. No entanto, há nestes personagens, desenvolvidos
num trabalho de superfície, de visibilidade assertiva, uma abertura semelhante às
que irrompem na narrativa e os tornam reais: sua “ação pura” sintetiza
uma vida para além dela, sentimentos que percorrem os planos e se condensam no
intervalo entre eles. E descobrimos que, por trás de sua distância, de seu individualismo
ou de sua “dureza” de caráter, existe um pendor para a afetividade.
Pode-se dizer, portanto, que o percurso da narrativa eastwoodiana revela-se quase
sempre um percurso de conquista de um afeto. Isto se daria, precisamente, no
desdobramento da “trajetória” como elemento privilegiado da construção narrativa
(clássica). Tanto nos filmes que trabalham mais explicitamente com a herança
do road movie, como Rota Suicida, Josey Wales – o Fora da Lei, Bronco
Billy, Honkytonk Man ou Um Mundo Perfeito, quanto naqueles
em que a trajetória percorrida em conjunto é mais abstrata, como Interlúdio
de Amor (Breezy), Cavaleiro Solitário, O Destemido Senhor
da Guerra, Rookie – um profissional do perigo, As Pontes de Madison,
ou Menina de Ouro. Há sempre esse sentido de uma afetividade possível,
de um desenvolvimento ou recuperação de uma ligação significativa entre duas
ou mais pessoas. Em alguns casos, este movimento se manifesta inclusive de forma
paralela à trama “principal”, como o flerte entre John Kelso e Mandy e a amizade
que se delineia entre ele e Lady Chablis em Meia Noite no Jardim do Bem e
do Mal, ou a tentativa de aproximação de Luther com sua filha Kate em Poder
Absoluto.
Partindo deste foco de atenção, é interessante notar o fato do primeiro filme
dirigido por Eastwood, Perversa Paixão, deter-se nos meandros da construção
de uma relação a dois. Vemos o delicado e sutil processo de envolvimento entre
duas pessoas evoluir de formas diversas e conflitantes ao longo da narrativa:
a tentativa de Dave de reatar seu relacionamento com Tobie é paralela (e oposta) à vontade
desesperada de Evelyn de consolidar uma ligação com ele. Por fim, aprendemos
que os afetos não surgem do desejo, mas de um trabalho de convivência,
como o que Dave procura desenvolver ao longo do filme. (2) E este trabalho não
vem destacado da operação de “abertura” descrita acima, ao contrário: são nos
longos e dispersivos idílios entre Dave e Tobie, que seu afeto toma corpo para
nós (ao mesmo tempo em que inviabiliza a loucura de Evelyn). Para o fluxo de
imagens de Clint, é preciso tomar desvios, criar pausas e espaços, para permitir
que os personagens ganhem consistência e a afetividade, substância. (Talvez por
isso o espaço-tempo do idílio de Dave e Tobie seja necessariamente elíptico e
abstrato.)
Este “trabalho de convivência”, ou “labor do afeto”, passa, então, a constituir
um refrão na sua obra, com tratamentos diferenciados e maior ou menor ênfase
de filme pra filme. E se havia em Perversa Paixão, para além de uma transparência
da narrativa, um desejo de transparência sentimental, o próprio título em inglês
do filme (Play Misty for Me) indica de alguma forma o caminho futuro do
personagem eastwoodiano: ser “nebuloso” para não cair nas armadilhas do afeto,
para encontrá-lo ocasionalmente, apenas e tão somente ali onde ele é pontual
(e verdadeiro). O passado torna-se, pois, pura sombra, que finge fazer tabula
rasa para um presente desafetado.
É o caso de O Estranho Sem Nome, seu filme seguinte e o primeiro de seus westerns,
no qual vemos Clint assumir uma “atualização” do seu Homem Sem Nome em Sergio
Leone para o seu próprio universo. O personagem precisa, agora, lidar diretamente
(ainda que se mantenha razoavelmente esquivo) com as pessoas ao seu redor. Mas
a convivência (em sociedade, no caso) mostra-se cínica e praticamente inviável.
E, como o filme insinua, talvez seja ela a própria razão dele ter se tornado
um drifter, sem nome, sem casa, sem passado. Resta então ao protagonista
expor os mecanismos falsos que regem a cidade e buscar alguma parceria com aquele
alijado desta convivência: o anão Mordecai.
Já em Josey Wales – o Fora da Lei, visualizamos pela primeira vez o perigo
maior do afeto, aquilo que o colocará em xeque: a morte (que já havia se delineado
nas pulsões homicidas de Evelyn em Perversa Paixão). Josey passa a se
proibir afeições pelo trauma da perda (“sempre que eu gosto de alguém, esse alguém
se vai”). No entanto, apesar de sua postura “nebulosa”, ele acaba encontrando
(e
aceitando)
novos laços, se permitindo constituir uma nova “família”, desta vez composta
por desgarrados diversos que também conhecem o peso da perda. De forma semelhante,
o pastor de Cavaleiro Solitário pratica o convívio em determinados núcleos;
embora sempre parta, não obstante os afetos que as pessoas nutram por ele. Aparentemente,
também como resultado de experiências desagradáveis do passado.
Em determinado ponto, porém, o afeto “renegado” por este cavaleiro nebuloso passa
a tentar abrir espaço em meio à trama: em Rota Suicida, Ben Shockley e
Gus Mally, contra todas as expectativas lançadas pela narrativa (e as suscitadas
por seus comportamentos), se envolvem e se apaixonam pela exposição a uma convivência
forçada. A ele seguem-se Bronco Billy e Honkytonk Man, nos quais
temos personagens se unindo em parcerias que se revelam como a razão em si da
trajetória.
Porém, à medida que a idade avança para a persona de Eastwood (e com ela
sua obra), os afetos deixam de se apresentar circunstancialmente, de forma imprevista
ou oculta, e tornam-se uma espécie de nó cego a ser “solucionado”. Os personagens
passam a nutrir uma vontade de reconstruir e resgatar afetos, de resolver questões
em suspenso em suas vidas. Em O Destemido Senhor da Guerra, o sargento
Tom Highway busca reatar um relacionamento com a ex-mulher; em Poder Absoluto,
Luther Whitney vai atrás de sua filha; em Sobre Meninos e Lobos, Sean
Devine precisa encontrar uma forma de se reconciliar com a mulher; em Menina
de Ouro, Frankie Dunn quer restabelecer também um contato com a filha.
Simultaneamente, os filmes ganham dobras e sentidos transversos; as narrativas
em torno dos personagens se complexificam e ganham outros matizes. Em Bird e Coração
de Caçador, por exemplo, um profundo afeto por uma arte é atravessado por
outros afetos e por uma empatia pela vida mesclada a uma pulsão de morte. Em O
Destemido Senhor da Guerra, a já citada tentativa do sargento de recuperar
um afeto perdido emparelha-se com outra situação de “convivência forçada” que
termina por criar ligações entre as pessoas: o processo de treinamento dos marines sob
sua responsabilidade. Algo semelhante ocorre em Os Imperdoáveis, em que
a eventualidade de uma convivência (o pedido do garoto de uma parceria para a
execução do serviço) traz à tona um afeto primeiro, da ordem do extracampo – o
amor entre Munny e sua falecida esposa, mistério inexplicável, tal como exposto
nas cartelas que iniciam e fecham o filme. Este amor que “salvou” o personagem
da crueldade, da bebida e de tudo que havia de ruim, mas que não podemos conhecer,
irá se refletir em diversos pontos do filme: na sua relação com os filhos, com
os animais, com Ned e, por fim, também com o garoto. Já em Menina de Ouro, é a
tentativa frustrada de Frank retomar um relacionamento com a filha que encontra
ecos na lida com seus lutadores e com Scrap e, finalmente, no convívio a princípio
indesejado com Maggie.
Compartilhar um convívio indesejado. Após Perversa Paixão, este convívio
torna-se, de fato, o trabalho pelo qual os personagens reconquistarão uma inserção
social qualquer. E Interlúdio de Amor (Breezy), neste sentido, é exemplar.
Breezy e Frank aprendem, um com o outro, a necessidade de contornar seu individualismo
e a possibilidade de investirem num relacionamento e não estarem mais sozinhos,
apesar do risco do fim. (3)
Novamente: o afeto nunca vem “de graça”, embora suas razões não sejam prescritíveis
ou determináveis. Esta é a tônica, ainda, de Um Mundo Perfeito e de As
Pontes de Madison, nos quais podemos observar um relacionamento particular
tomar forma, pouco a pouco, através de um jogo de ação e reação entre os personagens.
Mini-conflitos e situações cambaleantes fazem o afeto sobrevir como o resultado
de um trabalho. Em As Pontes de Madison, que estabelece um interessante
diálogo com Interlúdio de Amor, estamos no terreno do romance. Mas não
se trata de um romance mágico com ares de transcendência; o amor, por mais misterioso
que possa ser, se manifesta em toques, trocas de olhares, sorrisos e, principalmente,
conversas. O interesse mútuo crescente, transfigurado em desejo, delineia-se
nos diálogos entre Robert e Francesca. Através de suas falas e ações, vemos os
mundos e anseios de um se presentificarem ao outro, e, progressivamente, “costurá-los” emocionalmente.
Por fim, Robert, que, assim como Breezy, vagava pelos afetos do mundo sem se
apegar a nenhum em particular, “aprende” a convivência.
Mas a vida pode ser traiçoeira em suas determinações e fazer com que este trabalho ganhe
contornos indesejáveis. O romance entre Francesca e Robert só poderá existir
em função de sua fugacidade. O afeto já não é renegado, muito pelo contrário,
mas sua durabilidade permanece restrita. Francesca deverá encarar sua situação, “medir” os
afetos de acordo com sua vivência diária, fazer escolhas e se posicionar, abrindo
mão, enfim, do seu amor. De forma análoga, Maggie, em Menina de Ouro, “obriga” Frank
a realizar a ação que dará um fim à sua vida e, portanto, ao seu afeto compartilhado.
Ambas as tragédias sentimentais carregam este peso das ações que pautam as relações
entre as pessoas, o aspecto trágico do labor da convivência: o que é necessário
ser feito em razão do afeto é aquilo que irá condená-lo. E, se em As Pontes
de Madison, esta “morte da convivência” é sublimada pela sobrevivência da
memória, através da escrita de Francesca e de sua transmissão aos filhos, e pela
segurança de saber que o casal não mais sofre no momento presente da narrativa,
em Menina de Ouro, ela vem acompanhada da própria aniquilação de uma vida – e
destrói o outro consigo. (4)
Acima de toda a vida, paira a sombra de sua morte. E é desta forma que Sobre
Meninos e Lobos e A Conquista da Honra ecoam esta problemática em
torno do afeto. Neste último, Bradley, frente à ameaça premente da morte, abre-se à amizade
circunstancial de Iggy na ocasião mesma de seu surgimento. E se esta atitude
em si parece ter dissipado toda a névoa, as trevas do mundo persistem, abrindo
rombos, lançando sombras fatais e engolindo as pessoas: Iggy sucumbe à guerra
e desaparece. A morte, apesar de vislumbrada, surpreende em sua potência aniquiladora.
No caso de Sobre Meninos e Lobos, as trevas estão disseminadas no interior
dos próprios homens – embora digam menos respeito ao passado do que ao seu próprio
estar no mundo. Os atos assombrosos dos “lobos” danificam toda a prática de convivência
de Dave; seu comportamento futuro termina por comprometer sua relação com a esposa,
assim como sua própria existência. Paralelamente, o ciúme do garoto Ray em relação
ao namoro do irmão acaba numa morte inesperada – que traz um fim amargo ao amor
de Jimmy pela filha.
Menina de Ouro parece deter-se exatamente neste ponto nevrálgico da
relação do cinema de Eastwood com o afeto: a eterna iminência de seu fim.
O lado reverso da alegria, da sensação de “pertencimento”, ou do ideal romântico;
aquilo que fará de um homem um “cavaleiro nebuloso” que circula solitário
nas sombras. É como se o filme se detivesse no sofrimento enfrentado por
Josey Wales nos minutos iniciais de Josey Wales – O Fora da Lei, fazendo-nos
vivenciar de fato o que ali apenas “aprendemos” de forma relâmpago; presenciar
o nascimento do afeto e a sua morte – o fim da vida – no momento exato em
que eles se dão.
Há um desequilíbrio primordial entre a vida e a morte que deve ser encarado.
Os afetos – questão de presenças, convivências, momentos –, será preciso vivê-los
enquanto o viver os comportar. Talvez seja essa a razão do apego incondicional
de Saito pela vida, em Cartas de Iwo Jima. Ele conquista o direito ao
amor (por sua esposa, por sua filha recém-nascida), por uma brava luta pelo direito à vida.
E se Bradley, em A Conquista da Honra, morre atormentado pela lembrança
do amigo, Saito confia à memória de suas vivências e de seus afetos (a simpatia
pelos colegas de batalha, o amor pela esposa) um legado de existência viva, assim
como Kuribayashi e todos os que escrevem as “cartas”.
É tempo de lidar com as memórias, este espectro fugidio da vida, espécie de decalque
da morte, como a carga de mundo que nos cabe. Toda a dispersão narrativa de Cartas
de Iwo Jima e sua imersão no tempo e no espaço visam contemplar um mundo
de nuances que se recusam a não existir, que precisam impregnar a imagem – mais
do que nunca em Eastwood. Porque no sol que Saito vê quando está deitado na praia,
na maca ao lado dos americanos, parece haver força suficiente para compensar
as sombras que atravessam os homens e se espalham pelo mundo. Em momentos como
estes, o amor ao cinema se confunde com o amor à vida.
Tatiana Monassa
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