SOBRE(A)VIDA EM CLINT EASTWOOD

A voz cansada brota da escuridão. Na fraca luz, divisamos uma silhueta, a forma de um rosto, de um alguém, em uma poltrona. É um observador. Diante dele, uma outra silhueta aparece iluminada, embora apenas parcialmente, e fala. Sua voz vem solene, moldando e conferindo sentido a uma narrativa que já vimos segundo uma outra lógica, esta referenciada numa noção de onipresença da câmera. De verdade de cinema sobre uma mentira historiográfica, aquilo a que assistimos é revelado como um conjunto de lembranças. Diante do narrador, o observador é um jovem. Ele ouve atento, entrega-se à atividade de reconstituir o passado, promovida por um senhor que uma troca de plano revela não tem um braço. Não é o único depoimento dado no filme, mas este tem uma decupagem diferente, mais “documental”. A cena, dotada de um certo quê de Cidadão Kane, confere à narrativa um tom de revelação: o dono da memória é um homem vivido. O passado só revive vigorosamente quando são revividos seus atores principais, hoje não mais jovens. A cena faz o cinema de Clint Eastwood dar uma volta sobre si. Ali, revela-se uma operação interna de A Conquista da Honra (2006) – cujo título original, Flags of Our Fathers merecia obviamente tradução melhor. Revela, ao mesmo tempo, uma operação central do próprio cineasta.

Veremos esse mesmo movimento outras vezes em Eastwood: um homem de idade mais avançada a sair da escuridão rumo à luz, operação feita sempre com uma iluminação dura, reveladora apenas de alguns traços, geralmente parte do rosto, geralmente parte das mãos. Vemos, por exemplo, o caubói veterano William Munny brotar das trevas para a vingança no saloon em Os Imperdoáveis (1992). Vemos o ladrão de idade avançada sair das sombras para ver melhor o crime praticado pelo presidente em Poder Absoluto (1997). Em Menina de Ouro (2004), primeiro vemos Scrap, o velho lutador de boxe cujo corpo ficou marcado com a perda de um olho, iluminado apenas da cintura para baixo, a sair das trevas para ajudar a jovem lutadora que treina. Depois, veremos Frankie, o treinador, sair três vezes da escuridão: na primeira para aceitar treinar a moça, na segunda para aceitar ser seu manager e, na derradeira, para aceitar ser seu anjo da morte.

Da escuridão para a luz. A operação se torna típica na filmagem de Eastwood a partir de Bird (1988). Não apenas com idosos. Ele já a utilizara em outros trabalhos, neles iluminando jovens/adultos, e claramente pegou-a emprestado de seu maior parceiro e mentor na direção, Don Siegel. Mas virou mesmo um elemento central de sua obra trazer, para uma outra ordem de relações, homens que já passaram por seus anos de plenitude e hoje (no tempo do filme) não os vivem mais. Em Clint, quem vive, já viveu.

Parece ter menos a ver com uma idéia de redenção dos personagens de idade avançada, de re-vida, ou com uma afirmação de que eles estavam mergulhados nas trevas e agora se permitem os holofotes. É isso também. Mas a semiologia parece mais complexa. Ela parece estar relacionada a dois elementos interligados, para os quais dois filmes são praticamente sínteses, Menina de Ouro e Cartas de Iwo Jima (2006).

O primeiro elemento simbólico é uma demonstração de que o personagem-guia, o protagonista, o narrador privilegiado, surgirá de um ponto oculto do plano, da história, um limbo produzido pela relação entre narração e memória. Ao sair da escuridão, esses personagens reapresentam o que foram (instância à qual não temos acesso), criam um ainda-ser. Esse surgimento - que para os personagens é sempre um ressurgimento – é uma demarcação, no plano, de uma operação lógica: passamos a ver o idoso que não víamos, porque talvez o víssemos de outra forma. É o que acontece radicalmente com Frankie, um velho ranzinza que vai se tornando pouco a pouco o pai da jovem, que vai se construindo como o verdadeiro lutador da trama. Ora, não conhecemos a juventude de Frankie. Sabemos dela apenas pelo que ouvimos e pelo que testemunhamos a seu redor. E sabemos sobretudo pela maneira como ele ocupa o plano: ele é aquele que é observado pelos outros. E isso acontecerá em vários momentos de Eastwood: ele criará imagens em que seus protagonistas estarão em face de outros personagens, que o reconhecem como aquele que ele já foi. Em Os Imperdoáveis, isso será patente. Desde a cena em que o rapaz, aprendiz de pistoleiro, chega e diz ser difícil acreditar que ele é um “desgraçado matador de homens” até o encontro com o escritor, chocado com ele ser “aquele que já matou tantos”.

O segundo é traduzido por um detalhe do filme sobre os soldados japoneses: o fato de Eastwood transformar jovens em idosos. Todo o filme é regido pelo fato de que os nipônicos, sobretudo o general Kuribayashi, sabem que vão morrer. O militar sabe que vai perder a batalha, sabe que não há vida possível depois da juventude, nem para ele e nem para seus homens. Toda a lógica que move o drama ali é a possibilidade de viver-um-pouco-mais-e-com-plenitude. Kuribayashi traça suas ações para ser o melhor general derrotado, para ter sobrevida.

E essa parece ser a palavra-chave. Em vários filmes de Eastwood, veremos a voz da sabedoria dos anos vir em auxílio da problemática da história. Obra a obra, nos últimos anos, o cineasta tem mostrado uma preocupação com esse mesmo tema, a possibilidade de manter uma “vida ativa” (por vezes num sentido arendtiano mesmo) depois – ou, digamos, ao longo – do envelhecimento. Ou, em um sentido mais geral, a possibilidade disso que poderíamos chamar de sobrevida. Ele estabelece uma relação com a distância em relação à morte que aparece como fantasma a alimentar esses personagens. Outrora longa, essa distância agora se reduziu e pesa sobre a maneira como eles lidam com a trama.

O movimento parece constante desde Coração de Caçador. É um filme bastante tentador para se estabelecer como marco. Foi feito em 1990, com o diretor precisamente aos 60 anos. E faz bastante sentido se localizado biofilmograficamente: pouco antes, em 1988, ele havia feito dois filmes que parecem circular como satélites em torno desse marco. O primeiro, como ator, Dirty Harry na Lista Negra, seu último trabalho como o inspetor Harry Calahan, personagem que o tornou um superastro nos EUA (e para o qual retornará agora, em 2007). O outro, como diretor, Bird, que lhe deu aclamação como “cineasta sério”, marcada não apenas pela participação em Cannes como pelo Globo de Ouro de direção. O primeiro lhe deu uma porta para fechar, o segundo uma nova para abrir. Quando se pensa que Harry foi abandonado com uma afirmação do próprio Eastwood de que estava “velho demais para ele”, não parece ser muito difícil dar sentido à decisão. E esse abandono de Harry faz mais sentido ainda quando se pensa em filmes feitos depois como ator e/ou diretor, no qual o personagem do grande policial é revisto sob a ótica do policial veterano, especialmente em Na Linha de Fogo (1993), dirigido por Wolfgang Petersen, em Rookie – Um profissional do perigo (1990), e em Dívida de Sangue (2002), estes dois dirigidos pelo próprio Eastwood.

Pois bem, logo depois desses dois trabalhos marcantes, vêm Coração de Caçador. No filme, o próprio Eastwood incorpora o antológico diretor John Huston, personagem real que não deixa de ser simbólico para ser vivido por um ator-cineasta (Huston morrera em 1987, três anos antes do lançamento do filme de Eastwood, que nunca chegou a trabalhar com ele) e que, curiosamente, procurou, no final de sua carreira, uma espécie de sobrevida, indo a suas origens para filmar Os Vivos e os Mortos a partir de um conto de James Joyce. Ao mesmo tempo, o filme de Eastwood opera justamente com as possibilidades de um eterno bon vivant manter o vigor da juventude aventureira.

Na verdade, mesmo antes desse marco, já estava presente na obra do cineasta o interesse por uma operação de revisão biográfica, por uma recolocação de personagens interditados em buscas pela manutenção da vida ativa. Pode-se ver, aqui e ali, um movimento semelhante de medida de possibilidades de vida fora de uma certa esfera de validade. O personagem de Honkytonk Man (1982), Red, não é idoso. Mas está morrendo, assim como a América que representa, a da música country, a da poesia, a da busca pessoal. O mesmo ocorre em Bronco Billy (1980) no qual a interdição é a do loser diante ser diante do mundo do espetáculo e de um modelo de show diante daquela mesma América que muda. Em ambos os filmes, digamos, há já um idoso que tenta continuar vivo: a visão de mundo de seu protagonista. Em Bird há uma operação de mesma monta, no qual a vida artística fora dos limites impostos pela correção física é disputada. Charlie Parker é esmagado pelo fato de que, vivendo como vivia, não chegaria à velhice. Não poderia ser o mesmo sempre.

Mas é no campo de uma problemática de imposição etária, e a partir de 1990, que Eastwood se estabeleceu mais fortemente como autor. A partir dali, esse mesmo conjunto de questões tem assumido várias formas plásticas em seus filmes, segundo diferentes estratégias. Eastwood tem emprestado sua câmera e (em geral) seu corpo para uma galeria de personagens que se deparam com um mesmo dilema: será possível continuar a exercer o papel de personagem em um mundo com a morte no horizonte?

Vemos Eastwood no papel de um fotógrafo da National Geographic que vive um grande amor com uma mulher casada – e também de meia idade em As pontes de Madison (1995). É uma história de amor-depois-da-idade-de-ser-personagem-de-história-de-amor. Vemos Eastwood como líder de um grupo de astronautas aposentados que retorna à ativa em Cowboys do Espaço (2000). Vemos Eastwood como o agente do FBI que precisou receber um transplante cardíaco para continuar vivendo – a primeira cena deste Dívida de Sangue (2002), aliás, é o próprio manifesto desse movimento, com o ator/diretor perseguindo um bandido a pé, sentindo-se fatigado e sofrendo um ataque. Vemos Eastwood como o xerife moderno que, tônico Geritol nas mãos, persegue (em um trailer) o fugitivo pelas estradas de Um Mundo Perfeito (1993). E vemos, vez por outra, a mesma operação de iluminação de seu personagem lançado na escuridão, além de uma série de outras, que explorarei abaixo.

Mesmo em Sobre Meninos e Lobos (2003), trama que aparentemente não envolve idades tão avançadas, ele introduz o mesmo recurso visual das sombras. É na escuridão, apenas com uma parca luz em parte de seu rosto, diante de um Jimmy também apenas parcialmente visível, que Dave finge ser o culpado pelo assassinato da jovem Katie. Dave não é idoso.

Mas, ora, a vida já acabou para ele desde a infância. Dave viu toda sua vida passar diante dos olhos sem mesmo vivê-la, no dia em que entrou no carro dos falsos policiais e sofreu abusos sexuais. E a desculpa para o tal assassinato que ele não cometeu – embora tenha cometido um outro – é o fato de que ela, a jovem, lhe lembrou “o sonho de juventude” que ele “nunca teve”. O filme é sobre mortes de jovens e sobrevivência de adultos e sobre um homem que se transforma em velho e que não tem como retornar à vida. A grande chave de Dave para si mesmo é o vampiro, o morto-vivo, aquele que vive depois de ter vivido. Não há vida depois da vida em Sobre Meninos e Lobos, senão a do zumbi. Por isso mesmo, só vemos a luz de fato com o disparo de Jimmy contra Dave.

É claro, em toda essa galeria, o papel de maior destaque cabe a William Munny, o pistoleiro de Os Imperdoáveis. De todos esses filmes, este é o que mantém mais determinada a operação de lançamento de personagens “que desistiram” em um arco de necessidade de “tentar novamente”. Ali, vemos o caubói grisalho, cheio de rugas e, claro, cicatrizes. Físicas e morais. Ele não enxerga mais direito e, por isso, claro, não atira mais tão bem. Sua coluna e suas pernas já não obedecem. Por isso, montar é um desafio – o que Eastwood apresenta com requintes de comédia repetindo um mesmo enquadramento para as seguidas quedas do cavalo. Além disso, ele é trazido de volta para um mito de juventude, o pistoleiro do western, o mesmo pistoleiro impiedoso que ele mesmo encarnou. Mas desta vez sem o garbo da juventude, sem a capacidade física de ser aquilo que outrora foi.

Essa série de operações chama a atenção para algo que estranhamente parece secundário no cinema de Eastwood – que sempre chama mais a atenção para a atitude: o corpo. Uma abordagem como essa dificilmente poderia prescindir de um olhar particular sobre o corpo físico. Ainda mais no caso de Eastwood, um ex-soldado, ex-instrutor de natação e ex-alpinista – que chegou a fazer sem dublê as cenas de escalada de Escalado Para Morrer.

O corpo oferece a ele uma abordagem de revalidação, de refundação. O corpo idoso digladia-se com o corpo jovem, contido na memória e também imposto diante de si (por vezes violentamente ferido). E isso se dá em diferentes níveis. Da mais banal competição pura e simples, como a que acontece abertamente em Cowboys do Espaço, à impossibilidade de rejuvenescimento inscrita no personagem do xerife de Um Mundo Perfeito. Este filme, aliás, é um jogo particularmente poderoso de criação de um lugar de sobrevida no plano do roteiro – o que pode sugerir até a questão sobre o domínio temático que o cineasta possui de sua obra, mesmo não sendo autor dos textos de seus filmes. É um road movie. Mas, diferentemente do uso que o gênero em geral faz da estrada, Eastwood não a faz metáfora da descoberta de si pela descoberta do outro. O road movie é, em geral, um conjunto de estações, como a via-crúcis – embora nem sempre com o sofrimento. É viagem iniciática. Em Um Mundo Perfeito, não são tanto as paradas que criam e recriam os personagens, mas o fato de andarem mesmo. Tudo por conta da metáfora enunciada em seu próprio script, pelo presidiário fugitivo que leva o menino: “Este carro é uma máquina do tempo”. O personagem de Kevin Costner fala sobre chegar no futuro a toda velocidade e sobre estar no presente lentamente. O tempo vira estrada tanto quanto a estrada vira o tempo. Vemos três tempos em conflito, três gerações: o menino, que quer ser uma criança normal ao mesmo tempo em que quer crescer “o mais rápido possível”; o adulto/jovem que não teve uma infância normal, perdeu-a, foi obrigado a crescer e tenta fazer as pazes com o tempo “o mais rápido possível”; e o idoso, que só quer ver o tempo passar e, quem sabe, retomar alguns momentos da juventude, e tem que capturar seu fugitivo “o mais rápido possível”. Os três viajam rumo a um mesmo destino: a possibilidade de uma infância perdida.

Ora, o xerife toma um tônico de rejuvenescimento e viaja em um trailer, um veículo tradicionalmente associado às lentas jornadas dos aposentados em férias. Ele pouco se move, embora seu veículo se mova. Seu corpo apresenta o estatuto de seu lugar na temporalidade da história. É de uma posição de sabedoria que ele fala, do lugar de quem já viu a história se repetir tantas vezes, que já sabe finais prováveis demais. Diante dele, coloca-se uma juventude desafiadora, a da detetive vivida por Laura Dern. Jovem e mulher, ela inscreve uma presença corporal diferente. A tensão sexual é de gênero. É produzida pelo choque entre o que o corpo masculino velho pode fazer que o corpo feminino jovem não pode.

Há também as demonstrações de desgaste físico. Em Os Imperdoáveis, além das várias quedas, Munny tenta atirar com um revólver, mas, sem precisão, troca-o por um rifle. Seu companheiro, Ned, tenta dormir sozinho, mas já não consegue mais se afastar de sua mulher, com a qual se acostumou. Em Menina de Ouro, o velho treinador se ajoelha para rezar com dificuldades. E, supremo exercício do filme, ele transfere seu desejo de sobrevida para o corpo de seus pupilos. Quando vê o aprendiz que o abandonara lutar para ser campeão, ele vai movendo os pés, as mãos, como se fosse ele próprio no ringue. Quando vê Maggie lutar, faz o mesmo. Ao mesmo tempo, vive em Maggie uma paternidade que perdeu. Todo o jogo ali é construído por uma vida no corpo do outro. E, no fundo, talvez seja suicídio o que Frankie faz no final das contas, ao matar sua pupila no leito de hospital. Talvez fosse a única forma de sobrevida possível.

Em Cowboys do Espaço, esse desgaste aparece inscrito na exposição mesma do corpo idoso, como na cena do exame médico, em que eles aparecem perfilados e nus. O filme todo, aliás, será praticamente um manifesto das possibilidades do corpo idoso. Há o idoso que se apaixonará – e conquistará – uma jovem, mas descobrirá um câncer. Há o idoso que não agüentará o treinamento. Há uma galeria de situações de demonstração de desgaste físico.

Um momento particularmente importante desta abordagem é a forma como ele apresenta um corpo idoso sensual em As Pontes de Madison. Ali, vemos não apenas o fotógrafo ser apresentado como um homem desejável aos olhos da dona de casa vivida por Meryl Streep – ela chega a dizer que tudo que dizia respeito a ele parecia-lhe erótico –, como há uma aura de desejo físico em todo o filme. Eastwood filma a mulher a observá-lo enquanto ele se lava no quintal, sem camisa. É um corpo vivido, marcado de cicatrizes, mas é, por isso mesmo, um corpo válido, revalidado: é um corpo que traz em si as experiências que teve, a vida que tanto falta àquela mulher, que nada viveu. O erotismo pelo corpo idoso que ela sente é o erotismo por um corpo que é sobretudo “cheio de vida”.

E toda essa atenção ao corpo é uma atenção transferida para a câmera. Ela se torna minuciosa em Eastwood porque quer apresentar o desgaste. E é uma minúcia impressionante, dada a opção do diretor por utilizar o cinemascope em quase todos os seus filmes – tensão que faz lembrar a promovida por outro de seus mestres, Sergio Leone. De todo modo, a câmera deixa claro, em closes – tantos os extremos e fantasiosos de Menina de Ouro quanto os médios estratégicos de vários filmes – como o desgaste se inscreve nos homens. Mas nesse caso, inscreve-se uma opção filosófica: não é nem tanto o protagonista quem vive “apesar do desgaste”, é uma noção de desgaste mesma que existe “apesar do protagonista”. A câmera de Eastwood, ao mesmo tempo em que acentua a dimensão de degradação física e espiritual de seus personagens, trata-os como personagens que são. Não os destaca do mundo, pelo contrário, normaliza-os. Ninguém é herói, no plano bem desenhado de Clint, porque dispara com pontaria apesar da câimbra nas costas. Dispara com boa pontaria porque acumulou história e isso fica inscrito na vivência física.

Alexandre Werneck