Em seu dístico sobre o confronto
nipo-americano durante a 2ª. Guerra, composto por A
Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima,
Clint Eastwood concretiza um vigoroso exercício de
reflexão e relativização sobre questões como heroísmo,
submissão, patriotismo e as próprias razões da guerra.
Não se trata de uma visão anti-belicista rasteira,
partindo de conceitos mais que óbvios de que a guerra é ato
inútil, injusto e inumano, presentes, para também citar
um filme recente, no fraco Feliz Natal de Christian
Carion. Temos, sim, um questionamento sobre
o fato de que, uma vez que ela existe, como o ser humano
manifestaria diversas facetas de suas atitudes, de
seu comportamento, perante essa guerra. Fica flagrante
nos filmes-irmãos o fato de Eastwood estender seu questionamento
para o ufanismo e a visão auto-centrada que historicamente
sempre impregnou a maioria dos filmes hollywoodianos
que abordam a temática de confrontos bélicos.
Dito isso, poderíamos estender essa reflexão para dois filmes que Eastwood dirigiu
em um momento de sua carreira quando ainda – injustamente – não era, seja por
porção expressiva da crítica, seja pelo público, levado muito “a sério” como
cineasta, o que só viria a ocorrer de fato a partir de Bird (1988). Estes
dois filmes, Firefox – Raposa de Fogo (1982) e O Destemido Senhor da
Guerra (1986), trabalham com protagonistas frente a situações geradas pela
chamada Guerra Fria e foram realizados durante o período do governo Ronald Reagan,
calcado no permanente confronto EUA X URSS, capitalismo X comunismo, onde o ator-presidente
americano se propunha um arauto de um suposto bem-estar democrático (e imperialista)
perante aquilo que alcunhara de “império do mal”. Uma visão superficial de Firefox e O
Destemido Senhor da Guerra poderia enquadrá-los como filmes perfeitamente
coadunados com o espírito de sua época. Entretanto, rotulá-los supostamente como “imperialistas” ou
mesmo “fascistas”, parte de uma visão tremendamente preconceituosa e limitante.
Faz-se necessária uma reflexão mais atenta sobre eles, na qual, ao contrário
do que poderia causar uma primeira impressão, vemos Eastwood já esboçar e até mesmo
alinhar uma série de questões que viriam a desembocar de forma mais madura e
explícita em seus dois trabalhos mais recentes.
Um questionamento sobre a guerra pode ser encontrado já em um momento anterior
da carreira do Eastwood cineasta. Seu quinto longa, Josey Wales – O Fora da
Lei (1976), tem sua ação durante e logo após o final da Guerra Civil americana,
e se vemos o país dividido entre norte e sul, ele parece estar unificado no caos,
na violência desenfreada, na traição quase institucionalizada. Josey é um fora
da lei não por ser criminoso, mas justamente por não se submeter ao domínio de
uma suposta legalidade impositiva, que incluiria compactuar com os homens que
chacinaram sua família. Segue à margem em sua rota de fuga e vingança, enquanto
vai reconstruindo uma nova família, composta de excluídos (ou foras da lei) como
ele mesmo: índios, mulheres e mesmo um cachorro sarnento. Em suas sucessivas
e marcantes cuspidas, Josey aponta seu desprezo por uma sociedade injusta. Com
isso, Eastwood inicia um processo de desconstrução de uma série de conceitos
de igualdade e integração que parecem compor um suposto ideário americano. A
visão da conquista do território do oeste como fonte de oportunidades cai por
terra, à medida que ela se mostra excludente em sua essência. E vemos também
pela primeira vez em sua obra um retrato da guerra como uma força imposta por
instâncias superiores, que traga o homem comum, ao qual só resta dela participar
como peão, meio que alheio e desconhecedor de suas reais razões. É assim que
Josey Wales poderia ser considerado o avô ou bisavô de Doc Bradley ou do índio
Ira, em A Conquista da Honra, ou mesmo do japonês Saito de Cartas de
Iwo Jima.
Seis anos na filmografia e mais de um século no tempo no qual se passa a ação
separam Josey Wales de Firefox. Nesse último a trama se aproveita
se uma situação básica de Guerra Fria: os russos desenvolvem o projeto de um
avião de combate (o Firefox do título), que se concretizaria em potente
arma de destruição fazendo com que as lideranças da OTAN recrutem um experiente
piloto militar americano para roubá-lo de uma base militar soviética. Trata-se
de um filme explicitamente de ação, mas, mesmo que de forma bem mais tangencial,
aqui Eastwood não se furta em tecer comentários críticos sobre situações de guerra.
A começar pelo protagonista, Mitchell Gant, que numa convocação quase que forçada – após
uma excelente e tensa seqüência de abertura – é levado a integrar-se na missão.
Partilha uma origem comum com outros protagonistas de Eastwood – Jonathan Hemlock
de Escalado Para Morrer, Bill Munny de Os Imperdoáveis, os veteranos
de Cowboys do Espaço – como alguém obrigado a deixar o sossego ou a aposentadoria
para cumprir uma função a contragosto. Temos novamente as instâncias superiores
tragando o indivíduo para guerra à sua revelia. E ao longo do filme, veremos
que Gant não faz o que precisa movido por heroísmo ou ideologia. Quer apenas
cumprir o que lhe foi determinado e voltar pra casa, como fica evidenciado na
seqüência final, quando o filme termina quase que abruptamente.
Mesmo que seguindo diretrizes clássicas do cinema de ação da Guerra Gria (um
herói americano, os russos como antagonistas), o conflito não é retratado em Firefox de
maneira maniqueísta ou simplista. Os líderes e generais, tanto os do bloco capitalista
como os soviéticos, não guardam muita diferença entre si, fazendo de seus comandados
meros joguetes para seus interesses políticos. O filme se mostra inclusive bem
mais cruel para com os líderes ocidentais, que ignoram o constante sacrifício
dos que colaboram para que Gant concretize o roubo do avião. A começar pelo momento
de choque no qual um sósia dele é morto friamente para que ele troque de identidade.
Podemos concluir então que, tendo em vista tais elementos, seria bastante discutível
enquadrar Firefox como uma simples peça de divulgação de uma doutrina
Reagan. Ou seja, a Guerra Fria está lá, mas o filme não manifesta adesão flagrante
a seus objetivos.
Vale também destacar que, mesmo longe de ser um dos trabalhos memoráveis da carreira
de Eastwood, não deixa de apresentar momentos de mise-en-scène que enunciam
seu rigor e sua paixão pelo cinema clássico. No miolo do filme, quando Gant vai
tendo suas identidades sucessivamente trocadas – a melhor parte do filme, diga-se
de passagem – até se infiltrar na base militar, vemos claras matizes do Hitchcock
de tramas políticas (Intriga Internacional, Cortina Rasgada). Passa
também pela citação explícita de um Billy Wilder pouco conhecido, Águia Solitária (1957),
onde o vôo solitário de Charles Lindberg (James Stewart) é reproduzido com Gant
e o Firefox. Mas o filme não fica apenas preso ao passado, dialogando
também com o presente na seqüência do duelo final entre os dois aviões, que claramente
ecoa Guerra nas Estrelas (1977) e aponta caminhos para o futuro, antecipando
o cinema-videogame que se consolidaria nas décadas seguintes.
Quatro anos depois viria o filme de Eastwood mais passível de uma leitura simplista
e momento sui generis em sua carreira: O Destemido Senhor da Guerra.
Ao contrário dos personagens citados anteriormente, que ambicionam preservar
uma vida reservada e distante do passado, o sargento Highway insiste em se manter
na ativa, não assumindo que seu tempo passou. Highway simplesmente não “funciona” em
tempos de paz e seu comportamento belicoso aflora em qualquer momento do seu
dia-a-dia, que o mostra na cadeia, contando histórias de seus tempos de glória
militar, nos confrontos da Coréia e do Vietnã. Uma frase caracteriza explicitamente
o personagem: “O fato de não estar ocorrendo uma guerra não lhe dá o direito
de começar uma cada vez que fica bêbado”. Highway é, em certo momento do filme,
definido como uma relíquia, uma peça de museu, resto de uma época que se foi,
como se foram os John Wayne da vida. Apesar de retratado com um certo carinho,
fica flagrante que Eastwood – que tem aqui aquele que talvez seja seu trabalho
mais complexo como ator – impõe sempre uma visão crítica do personagem.
Highway resume em si próprio diversos aspectos inerentes ao seu país de origem.
Como os EUA, vive propagando sua sobrevivência dentro de uma necessidade de permanente
conflito. Para ele, como para os EUA, a guerra se torna imperativa, mesmo que
não fiquem claras as suas reais razões. É difícil assumir a paz, conviver em
uma época que já foi atravessada pela contestação, pela multiculturalidade, como
fica patente no retrato do pelotão que vai ser comandado pelo sargento. E essa
dificuldade de convivência na paz pode ser observada em duas instâncias: uma
delas no macrocosmo da nação americana, na qual poderia se refletir num prejuízo
da política interna, no descaso com o cidadão comum; a outra, no microcosmo individual
de Highway, desaguando na impossibilidade em assumir um relacionamento familiar,
no caso específico com a ex-esposa (Marsha Mason, extraordinária atriz hoje também
esquecida). Eastwood carrega seu filme nas tintas cômicas, que podem se manifestar
por vezes de forma excessivamente caricatural, como no caso dos soldados, mas
que sempre se preocupam em evidenciar o teatro do ridículo que está por trás
da instituição militar.
O sargento Highway, entretanto, acaba passando como uma figura ambígua. Ultrapassada,
mas, em determinados momentos, necessária. Com isso, Eastwood também perpassa
a possibilidade de uma relação dúbia com as políticas de seu país. Mantém diversos
pontos de sua abordagem crítica: o descaso dos oficiais superiores para com os
subalternos, a alienação dos combatentes quanto aos reais objetivos da guerra.
No caso específico do filme, vemos que os marines da tropa de Highway
seguem para a missão em Granada sem saber onde fica, quem irão combater, por
que irão combater e até mesmo o que fazer. Entretanto, a partir das cenas de
combate, o autor por vezes parece pactuar que, uma vez que o combate se faz necessário,
deve-se fazer o melhor possível. Mas essa ambigüidade faz com que, mesmo nas
cenas de batalha, fiquem sempre acentuadas as instâncias patéticas dentro das
missões de guerra.
O retrato que passa ao largo de uma crítica assumida das razões de uma ação militar
imperialista – no caso, a invasão de Granada –, além do simples ato dos soldados
do filme irem ao combate contra tropas cubanas, leva O Destemido Senhor da
Guerra a ser chamado freqüentemente de “fascista” ou “reacionário”, o que
seria reduzir a mera propaganda um filme de facetas extremamente complexas. Se
Eastwood não formula uma contradição explícita das razões para a invasão, uma
sutileza da seqüência final destaca um assumido ceticismo para com o patriotismo
e o militarismo cegos. Highway dá as costas à bandeira americana e parte com
a ex-esposa. É chegada hora de ver que servir a uma pretensa pátria-mãe não é tudo,
de repensar vida e objetivos. É o que, assim como o sargento, Eastwood vem a
fazer a partir de então, passando em sua carreira a explorar de forma cada vez
mais intensa os lados sombrios da sociedade e do sonho americano, o que vai gradualmente
concretizando numa impressionante sucessão de grandes filmes que deságua na maturidade
reflexiva de A Conquista da Honra e Cartas de Iwo Jima.
Gilberto Silva Jr.
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