A
fertilidade da obra de Andy Warhol estendeu-se a todas
as áreas pelas quais o artista se aventurou. No que
diz respeito ao cinema, embora não pudesse contar com
uma técnica como o silk-screen, que o ajudou a produzir
um número incontável de pinturas, chegou à impressionante
marca de 65 filmes dirigidos em 6 anos, entre curtas
e longas que chegavam a mais de 190 minutos. Por isso,
é bastante curioso o critério, se é que houve algum,
responsável por agrupar esses lançamentos em grupos
de dois. Vinyl e The Velvet Underground and
Nico: A Simphony of Sound estão separados por apenas
um ano, porém 17 filmes. My Hustler e I, a
Man têm entre si dois anos, 24 filmes e uma mudança
bastante significativa: entre um e outro, Paul Morrissey
passou a co-dirigir os filmes da Factory até eventualmente
assumir sua liderança, imprimindo estilo e estética
pessoais. Warhol passou a figurar mais como patrono
que agente direto.
O ritmo de produção na Factory era urgente, acelerado.
Filmes eram rodados na mesma velocidade com que se faziam
novas pinturas. Era a arte na linha de produção, em
todas as suas expressões. Sobre Vinyl, por exemplo,
Warhol gostava de dizer que havia sido filmado de uma
vez, sem ensaio, nada. De fato, há apenas um quadro
e um plano-seqüência que vai até o fim do rolo, quando
este é trocado e dá continuidade ao mesmo quadro. Há
alguns zooms no começo, mas esta é toda a interferência
na ação. My Hustler apresenta algumas mudanças
formais, a mais óbvia sendo a existência de alguma movimentação
de câmera, mas ainda encontramos nele dois grandes planos-seqüência
- para os filmes desse período, Warhol costumava usar
dois rolos de 30 minutos. Mais dissonante no grupo é
I, a Man: é o único em cores, com uma metragem
que ultrapassa os 60/70 minutos habituais.
Vinyl é uma adaptação aloprada de Laranja
Mecânica, de Anthony Burgess, trama bem conhecida
do público devido ao filme de Stanley Kubrick, realizado
5 anos mais tarde. Na versão warholiana, Alex é Victor,
interpretado por seu protegé Gerard Malanga.
O filme começa com um close no rosto do belo rapaz;
o plano abre e somos apresentados ao quadro que acompanharemos
até o fim. No centro encontra-se Victor, que se apresenta
como um JD (juvenile delinquent). À sua esquerda,
um homem sentado em uma cadeira; à direita, uma mulher,
a única em Vinyl, Edie Sedgwick, que entra muda
e sai calada. Malanga passa os primeiros minutos levantando
pesos e posando com um ar desafiador. Uma voz anuncia:
Andy Warhol's Vinyl. A partir daí, um solilóquio
do personagem principal explicando que sua natureza
é violenta e ele a cumpre. O quadro estático transforma
o espectador em voyeur, alguém que observa os movimentos
daquela juventude por uma fresta, um buraco de onde
só consegue o mesmo quadro. A carga homoerótica é tremenda
e simples. Warhol não tem intenção de colocar a questão
gay em pauta ou em, dentro dela, discutir problemas.
Ele usa os corpos em cena em seu sentido mais material:
o corpo de Victor, enquanto dança, bate, apanha e depois
é humilhado, é um corpo desejável. Mais que isso, é
um corpo desejável que só existe dentro do universo
da masculinidade. Todas as suas relações se dão com
homens, do amigo ao inimigo, médico e policial. A única
mulher presente na ação, Edie, não age. É possível dizer:
não existe. Está presente apenas para reforçar que o
jogo sensual que acontece ali pertence apenas aos homens.
A experiência feita em Victor, em vez de transformá-lo
em cidadão de bem, cria uma vítima. Depois de purgado
de sua maldade, ele é humilhado pelo médico, que arma
uma cena de clara insinuação sadomasoquista. O homem
que "escolhe não ter escolha", maneira como o policial
descreve o experimento, vê-se submetido à vontade de
um senhor tão cruel como ele era. Comentário político
sim, mas no sentido das relações possíveis e existentes
entre homens.
Co-dirigido por Chuck Wein, que mais tarde largaria
o cinema para estudar ocultismo, My Hustler também
é um estudo sobre masculinidade e homossexualidade.
A câmera move-se como move o olho de um observador desejante:
passa boa parte do tempo observando o michê contratado
por Bald John. O rapaz, que John diz ter conseguido
através do serviço dial-a-hustler, tem dois momentos
no filme. No primeiro toma sol em uma praia e é observado
por três outros personagens: aquele que o contratou,
uma mulher e um michê mais velho. Os três o desejam.
A câmera também. Por sobre sua imagem, ouve-se a conversa
que travam os pretendentes. Cada um, um tipo bem definido:
um gay endinheirado que gosta de ter belos rapazes a
seu lado, um michê que envelhece e uma mulher que sempre
se interessa por homossexuais. A novidade do filme de
Warhol reside no aparecimento de tais personagens, totalmente
marginais, e no tratamento que dá a eles. Ele desenha
figuras até ali desconhecidas do cinema, e os trata
com total naturalidade. Aliás, essa é a impressão mais
forte que a segunda parte suscita. Nela, os dois michês
tomam banho e se barbeiam, habitando um quadro que volta
a ser estático. Discutem temas relacionados à sua profissão
e, assim, colocam em xeque certas idéias a respeito
do amor entre homens. Por exemplo, até onde é aceitável
ser afeminado ou, inversamente, gostar de fazer sexo
com mulheres; se podem deixar transparecer o desejo
por mulheres para aqueles que os contratam ou se um
comportamento muito feminino afastaria clientes. Nenhuma
dessas questões havia sido levantada pelos grupos homossexuais
que, mesmo com a revolução sexual acontecendo, traziam
em sua agenda apenas a vontade política da aceitação.
Em Warhol não há vontade de integração. Há, sim, a vontade
de trazer para a luz pessoas e situações que freqüentavam
guetos e eram invisíveis. Exibir esses indivíduos não
como aberrações, mas como simples sujeitos, ainda que
de vidas não ortodoxas. A abordagem que seu cinema faz
desses desviantes certamente inspirou a cultura gay
a partir dali.
The Velvet Underground and Nico: A Simphony of Sound
é bem distante do projeto de cinema dos outros filmes.
Registro de um concerto da banda que Warhol produzia,
apela para um experimentalismo maior no tratamento da
imagem, como se se quisesse fundir o caos da música
crua e marginal do grupo com imagens da mesma estirpe.
Talvez seja preciso encará-lo como uma pintura a qual
foi adicionado som. Um tipo de escultura/instalação
cuja única intenção é a de excitar os sentidos. O uso
do zoom e o espectador são levados ao limite. Durante
o show, em que a banda permanece estática, a imagem
se move freneticamente, restando a quem assiste apenas
a possibilidade de entregar-se à experiência. Fruir
torna-se um desafio que não permite hesitações. Música
após música, o filme joga com a capacidade de o espectador
permanecer com ele. Parece que só há uma saída possível,
e é a ela que se é convidado: o transe. Mas então, sem
nenhuma espécie de aviso, a polícia interrompe o show,
portanto, também o filme.
Esses são todos filmes pré-Paul Morrissey, a não ser
I, a Man. O primeiro traço de distinção normalmente
apontado pelos estudiosos é que esse seria o primeiro
filme heterossexual de Warhol. De fato, trata-se de
um homem e de suas relações com mulheres. Mas, se a
homossexualidade não aparece, a questão em torno de
ser homem, de possuir um corpo masculino e lidar com
sua materialidade e desejo está presente. Tom Baker
é o macho, envolvido com mulheres com quem divide a
cena, uma de cada vez, oito vezes. Entre as oito moças
visitadas por Tom estão Nico e Valerie Solanas, que
tentou matar Warhol um ano mais tarde. Sua seqüência
é, aliás, uma das mais interessantes do filme. Ela é
a única que Tom não consegue seduzir e permanece o tempo
todo desafiando-o em sua condição de homem. Não há indício
de temporalidade seqüencial; os encontros podem ter
acontecido na mesma semana, ao longo de muitos anos
ou mesmo vários em um mesmo dia. A edição de cada cena
era feita enquanto se filmava, usando-se o strobe
cut, técnica em que a câmera é desligada e ligada
e o resultado é mantido, criando o efeito de um flash
de luz, além de um corte artificial no som. Esse efeito
tem como resultado um esvaziamento de importância da
relação e do tempo dedicado por Tom a cada uma de suas
companheiras, como se cada duração fosse um amontoado
de buracos em branco. O final do filme, abrupto, sem
nada que o indique, reforça essa idéia: a vida sexual
do homem é sem sentido, ele busca e continua buscando,
sem conseguir satisfazer-se. Passa seu tempo entre momentos
agradáveis e desagradáveis; mas o que é pior: passa
muito do seu tempo em momentos esquecíveis.
Comum a todos os filmes, perpassa a vontade de Warhol
de trazer para a tela aqueles para quem o sol não costumava
brilhar. Michês, travestis, histéricas. Seu cinema fez
emergir personagens novos e brilhantes. O lançamento
desses DVDs é a possibilidade de entrar em um mundo
paralelo ao do sonho americano. Mundo de homens, sobretudo,
de pequenas vidas infames que Warhol foi capaz de pintar
com cores, vibrantes; criando um universo particular
onde transviados, famélicos e loucos eram superstars.
A Factory como a Hollywood dos drogados e carentes.
Juliana Fausto
(DVD Magnus Opus)
|