RASTRO PERDIDO
Walter Hill, Broken Trail, EUA/Canadá, 2006

Desde sua estréia com Lutador de Rua em 1975, Walter Hill construiu uma carreira como diretor de filmes tensos e vigorosos, se exercitando pelos mais diversos terrenos do cinema de ação, entre os quais o western. As demandas por orçamentos e arrecadações milionárias cada vez mais crescentes em Hollywood foram aos poucos lhe fechando portas. No entanto, Hill soube aproveitar bem o processo de migração de produções de temáticas mais arriscadas para o universo da TV e ressurgiu de forma grandiosa com o comando do episódio-piloto da série Deadwood (2004), que lhe rendeu a redescoberta de seu nome e os primeiros prêmios após quase 30 anos no ofício.

Sabiamente, já que em time que está ganhando não se mexe, Hill optou por realizar seu trabalho seguinte também para a TV, um outro faroeste, num registro mais ambicioso: um filme em duas partes, com 1 hora e meia cada. O argumento básico parte de uma situação modelo do gênero: dois vaqueiros, tio e sobrinho, necessitam fazer uma longa jornada transportando uma manada de cavalos a ser vendida no fim de seu trajeto. Logo vem à mente a lembrança de um dos maiores clássicos do western: Rio Vermelho, de Howard Hawks (1948).

Mas logo na primeira seqüência, Rastro Perdido vem se estabelecer como um filme com uma identidade própria. As imagens iniciais parecem até sugerir que estamos diante do DVD errado. Surgem várias mulheres chinesas sendo humilhadas e aparentemente vendidas como escravas. Cinco delas vão parar nas mãos de um homem bruto, com todos os cacoetes clássicos de um vilão, que declara que irá vendê-las como prostitutas. Só então surgem os créditos e, em seguida, somos apresentados ao Tio Pren (Robert Duvall) que vem propor ao seu sobrinho Tom (Thomas Haden Church) o negócio do transporte dos cavalos. Iniciada a trilha, logo seu caminho se cruza com o das chinesas e seu algoz, que tenta roubá-los, desencadeando um processo que os levará a se tornarem guardiões das garotas, que passam a acompanhá-los em seu trajeto.

A primeira parte de Rastro Perdido vai se desenvolvendo de maneira episódica, com os percalços da travessia sendo apresentados de maneira bem seca, direta, como no momento em que o Tio Pren executa, quase a sangue frio, uma dupla de bandoleiros que estaria contaminada com varíola. O grande diferencial da ação vem a se caracterizar pela observação deste universo inóspito, violento e masculino pelas chinesas, que acompanham tudo sem muito entender, sejam as palavras, sejam as ações de seus protetores. Hill transmite nessas cenas uma interessante noção de estranhamento para um universo de signos tão intensamente codificados, como o da dramaturgia essencial do cinema de faroeste. Surgem pontualmente na trama alguns tipos bastante peculiares, numa abordagem mais superficial, porém semelhante ao inventário de figuras folclóricas do velho oeste que Clint Eastwood apresentara em Josey Wales, o Fora da Lei(1976).

Nos 30 minutos que encerram a primeira parte, Hill retorna um pouco ao ambiente de Deadwood. A cidade de Cariboo, à qual Tom e o ajudante Gilpin se dirigem no intuito de deixarem as garotas, tem muito do vilarejo que deu título à consagrada série, antes da chegada do futuro xerife Seth Bullock. Não existe a presença da lei instituída e temos a cidade controlada pela proprietária do saloon-prostíbulo, Big Rump Kate (Rusty Schwimmer), nada menos que um alter-ego feminino de Al Swearengen. Se essa parte, com a estranha coincidência da tropa se dirigir justamente ao local onde as chinesas deveriam ser entregues, marca a única ressalva a ser feita ao perspicaz roteiro original de Alan Geoffrion, ela vem a guardar também seus trunfos, como a inteligente ambientação que Hill impõe à sua mise-en-scène, pisando em terreno já anteriormente explorado, além da introdução de personagens que se tornarão fundamentais no episódio 2, como a velha prostituta Nola (Greta Scacchi) e o bandidão Big Ears (Chris Mulkey) e de encerrar este episódio com um forte gancho para o desenvolvimento do momento seguinte da trama.

Com este gancho, a segunda parte tem início com a aparente sugestão de que essa irá se desenvolver como uma grande perseguição, tensa e adrenalinada. Para nossa surpresa, e para o bem do filme, a narrativa de Rastro Perdido vai aprofundando cada vez mais uma característica já presente no episódio anterior: a história ir avançando não através de incidentes ocorridos no transporte de gado ou no confronto com antagonistas, explorados à exaustão em filmes com argumento similar. A narrativa vai priorizando exatamente os momentos de interrupção no trajeto: as paradas para sono e refeições, onde vão sendo delineadas de forma cada vez mais intensa as relações entre personagens.

Tom, e em especial o Tio Pern, vão se caracterizando não como arquétipos da mitologia do velho oeste, mas como personagens ricos, cuja história pregressa vai aos poucos se configurando, através de diálogos e situações que deixam bem claro a passagem do tempo como um dos temas centrais do filme. As cenas nas quais o Tio Pern interage com Nola, com quem terá um envolvimento romântico, e os longos comentários que faz ao grupo sobre sua vida, vão ressaltar cada vez de forma mais intensa seu retrato como um herói de contornos trágicos, dando a Robert Duvall a oportunidade de mais uma atuação inesquecível, numa carreira que alterna erros e acertos, assim como a vida de seu personagem. Por outro lado, se uma grande performance de Duvall não é nenhuma surpresa, essa vem surgir a partir de um trabalho sóbrio e silencioso por Thomas Haden Church, ator caracterizado por excessivo histrionismo em seus trabalhos anteriores para TV (a série cômica Wings) e cinema (Sideways – Entre Umas e Outras).

É nessa segunda parte também que a força da direção de Walter Hill se mostra de maneira mais intensa. Hill consegue o feito de ao mesmo tempo dominar todas as convenções de um gênero, filmando suas seqüências mostrando-se íntimo das técnicas clássicas dos grandes mestres, e inserir ao mesmo tempo um sopro intimista no seu cinema normalmente taquicárdico. Exceto pelo duelo climático ao final do filme, a tensão da aproximação de Big Ears e seu bando se faz presente mais por sugestão, não se configurando como força motriz do filme. As cenas de confronto, desde a primeira parte, são sempre objetivas e breves. Rastro Perdido consegue surpreendente ser um faroeste de novo fôlego, fugindo à repetição de modelos canônicos, ao revisionismo de um Clint Eastwood e à abordagem próxima do sociológico e do ultra-realismo da série Deadwood. Walter Hill tem aqui sua melhor e mais madura incursão no gênero, aproveitando suas três horas para contar sua história sem pressa e, ao mesmo tempo, sem perder o senso de ritmo. E para os que se sentiriam afugentados pela longa duração, é bom lembrar que Rastro Perdido foi concebido em duas partes, e que assisti-las com uma pausa, mesmo de um dia, só vem a trazer vantagens para a fruição desse belo filme.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Sony Pictures)