Desde
sua estréia com Lutador de Rua em 1975, Walter
Hill construiu uma carreira como diretor de filmes tensos
e vigorosos, se exercitando pelos mais diversos terrenos
do cinema de ação, entre os quais o western.
As demandas por orçamentos e arrecadações milionárias
cada vez mais crescentes em Hollywood foram aos poucos
lhe fechando portas. No entanto, Hill soube aproveitar
bem o processo de migração de produções de temáticas
mais arriscadas para o universo da TV e ressurgiu de
forma grandiosa com o comando do episódio-piloto da
série Deadwood (2004), que lhe rendeu a redescoberta
de seu nome e os primeiros prêmios após quase 30 anos
no ofício.
Sabiamente, já que em time que está ganhando não se
mexe, Hill optou por realizar seu trabalho seguinte
também para a TV, um outro faroeste, num registro mais
ambicioso: um filme em duas partes, com 1 hora e meia
cada. O argumento básico parte de uma situação modelo
do gênero: dois vaqueiros, tio e sobrinho, necessitam
fazer uma longa jornada transportando uma manada de
cavalos a ser vendida no fim de seu trajeto. Logo vem
à mente a lembrança de um dos maiores clássicos do western:
Rio Vermelho, de Howard Hawks (1948).
Mas logo na primeira seqüência, Rastro Perdido
vem se estabelecer como um filme com uma identidade
própria. As imagens iniciais parecem até sugerir que
estamos diante do DVD errado. Surgem várias mulheres
chinesas sendo humilhadas e aparentemente vendidas como
escravas. Cinco delas vão parar nas mãos de um homem
bruto, com todos os cacoetes clássicos de um vilão,
que declara que irá vendê-las como prostitutas. Só então
surgem os créditos e, em seguida, somos apresentados
ao Tio Pren (Robert Duvall) que vem propor ao seu sobrinho
Tom (Thomas Haden Church) o negócio do transporte dos
cavalos. Iniciada a trilha, logo seu caminho se cruza
com o das chinesas e seu algoz, que tenta roubá-los,
desencadeando um processo que os levará a se tornarem
guardiões das garotas, que passam a acompanhá-los em
seu trajeto.
A primeira parte de Rastro Perdido vai se desenvolvendo
de maneira episódica, com os percalços da travessia
sendo apresentados de maneira bem seca, direta, como
no momento em que o Tio Pren executa, quase a sangue
frio, uma dupla de bandoleiros que estaria contaminada
com varíola. O grande diferencial da ação vem a se caracterizar
pela observação deste universo inóspito, violento e
masculino pelas chinesas, que acompanham tudo sem muito
entender, sejam as palavras, sejam as ações de seus
protetores. Hill transmite nessas cenas uma interessante
noção de estranhamento para um universo de signos tão
intensamente codificados, como o da dramaturgia essencial
do cinema de faroeste. Surgem pontualmente na trama
alguns tipos bastante peculiares, numa abordagem mais
superficial, porém semelhante ao inventário de figuras
folclóricas do velho oeste que Clint Eastwood apresentara
em Josey Wales, o Fora da Lei(1976).
Nos 30 minutos que encerram a primeira parte, Hill retorna
um pouco ao ambiente de Deadwood. A cidade de
Cariboo, à qual Tom e o ajudante Gilpin se dirigem no
intuito de deixarem as garotas, tem muito do vilarejo
que deu título à consagrada série, antes da chegada
do futuro xerife Seth Bullock. Não existe a presença
da lei instituída e temos a cidade controlada pela proprietária
do saloon-prostíbulo, Big Rump Kate (Rusty Schwimmer),
nada menos que um alter-ego feminino de Al Swearengen.
Se essa parte, com a estranha coincidência da tropa
se dirigir justamente ao local onde as chinesas deveriam
ser entregues, marca a única ressalva a ser feita ao
perspicaz roteiro original de Alan Geoffrion, ela vem
a guardar também seus trunfos, como a inteligente ambientação
que Hill impõe à sua mise-en-scène, pisando em
terreno já anteriormente explorado, além da introdução
de personagens que se tornarão fundamentais no episódio
2, como a velha prostituta Nola (Greta Scacchi) e o
bandidão Big Ears (Chris Mulkey) e de encerrar este
episódio com um forte gancho para o desenvolvimento
do momento seguinte da trama.
Com este gancho, a segunda parte tem início com a aparente
sugestão de que essa irá se desenvolver como uma grande
perseguição, tensa e adrenalinada. Para nossa surpresa,
e para o bem do filme, a narrativa de Rastro Perdido
vai aprofundando cada vez mais uma característica já
presente no episódio anterior: a história ir avançando
não através de incidentes ocorridos no transporte de
gado ou no confronto com antagonistas, explorados à
exaustão em filmes com argumento similar. A narrativa
vai priorizando exatamente os momentos de interrupção
no trajeto: as paradas para sono e refeições, onde vão
sendo delineadas de forma cada vez mais intensa as relações
entre personagens.
Tom, e em especial o Tio Pern, vão se caracterizando
não como arquétipos da mitologia do velho oeste, mas
como personagens ricos, cuja história pregressa vai
aos poucos se configurando, através de diálogos e situações
que deixam bem claro a passagem do tempo como um dos
temas centrais do filme. As cenas nas quais o Tio Pern
interage com Nola, com quem terá um envolvimento romântico,
e os longos comentários que faz ao grupo sobre sua vida,
vão ressaltar cada vez de forma mais intensa seu retrato
como um herói de contornos trágicos, dando a Robert
Duvall a oportunidade de mais uma atuação inesquecível,
numa carreira que alterna erros e acertos, assim como
a vida de seu personagem. Por outro lado, se uma grande
performance de Duvall não é nenhuma surpresa, essa vem
surgir a partir de um trabalho sóbrio e silencioso por
Thomas Haden Church, ator caracterizado por excessivo
histrionismo em seus trabalhos anteriores para TV (a
série cômica Wings) e cinema (Sideways – Entre
Umas e Outras).
É nessa segunda parte também que a força da direção
de Walter Hill se mostra de maneira mais intensa. Hill
consegue o feito de ao mesmo tempo dominar todas as
convenções de um gênero, filmando suas seqüências mostrando-se
íntimo das técnicas clássicas dos grandes mestres, e
inserir ao mesmo tempo um sopro intimista no seu cinema
normalmente taquicárdico. Exceto pelo duelo climático
ao final do filme, a tensão da aproximação de Big Ears
e seu bando se faz presente mais por sugestão, não se
configurando como força motriz do filme. As cenas de
confronto, desde a primeira parte, são sempre objetivas
e breves. Rastro Perdido consegue surpreendente
ser um faroeste de novo fôlego, fugindo à repetição
de modelos canônicos, ao revisionismo de um Clint Eastwood
e à abordagem próxima do sociológico e do ultra-realismo
da série Deadwood. Walter Hill tem aqui sua melhor
e mais madura incursão no gênero, aproveitando suas
três horas para contar sua história sem pressa e, ao
mesmo tempo, sem perder o senso de ritmo. E para os
que se sentiriam afugentados pela longa duração, é bom
lembrar que Rastro Perdido foi concebido em duas
partes, e que assisti-las com uma pausa, mesmo de um
dia, só vem a trazer vantagens para a fruição desse
belo filme.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Sony Pictures)
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