“Talvez
o amor seja um antro de assassinos”
Este ano de 2006 foi bastante animado para admiradores
de R. W. Fassbinder, pois contou com o lançamento em
DVD de seis filmes do cineasta. Essa quantidade é razoável
para um ano, mas, se relativizada com o número de filmes
da obra de Fassbinder, trata-se apenas da abordagem
da última fase da carreira do alemão. Desde seu primeiro
longa, em 1969 (O Amor é Mais Frio que a Morte),
ele realizou em média mais de um filme por ano até 1982,
ano de sua morte. Querelle, último trabalho do
diretor, foi o mais recente dos filmes de Fassbinder
lançados em DVD no Brasil, e se relaciona de alguma
forma com os outros pelo fato de que todos estes foram
realizados entre os anos de 1979 e 1982 (com exceção
de Martha, 1974).
Inspirado pela força e contradição de seus personagens,
passando por Martha, Maria Braun, Lili Marleen, Lola
e Veronika Voss, Fassbinder chega ao marinheiro Querelle
de Brest, de Jean Genet. Desta forma, esse cinema que
vinha se consolidando como uma obra de forte diálogo
com uma matriz clássico-narrativa e melodramática (sendo
igualmente autoral e criativa) se depara com um transbordamento
provocador e derradeiro, que é este ultimo filme, dando
um corpo muito próprio a seu cinema, fundindo de tal
forma suas influências e inquietações a ponto de escancarar
a marginalidade, o desespero, a amargura e o lado traiçoeiro
dos seres.
Em seu filme anterior, O Desespero de Veronika Voss,
o cineasta uniu primorosamente elementos melodramáticos
e clássico-narrativos a uma mise-en-scène elaborada,
bem como a um caráter excessivo das imagens; o branco
estourado do P&B é cortante e grita em nome da protagonista
e do cineasta. Já em Querelle, uma certa estilização
da imagem também é elemento vital para o filme, mas
desta vez o trabalho com uma iconografia muito particular
é levado ao extremo e constrói-se um cinema que perpassa
o kitsch e o dramático, utilizando-se de uma certa encenação
“teatral” no que diz respeito à cenografia e ao trabalho
(principalmente de movimentação) com os atores – vide
duelo dos dois irmãos na “rua” (que, como todos os lugares
do filme – do cais ao bordel -, é um cenário).
A mise-en-scène proposta por Fassbinder em Querelle
a priori já propõe um forte estranhamento, portanto
distanciamento, ao espectador, sendo tal distanciamento
potencializado com narração que acompanha o filme e
cartelas com trechos da obra literária de Genet e frases
de outros autores que no contexto comentam o filme.
Esse jogo do distanciamento, contudo, só se completa
para Fassbinder se for trabalhado a partir de certo
pathos, engajamento. Desta forma, o cineasta
está a todo momento nos aproximando e distanciando do
filme e esses dois movimentos são simultâneos. Fassbinder
se apropria maravilhosamente bem de uma certa linguagem
cinematográfica, um fazer cinema que trabalha o sentimento,
o anseio, a emoção e ao mesmo tempo nos choca, põe seus
personagens e a sociedade em cheque, trata do desespero
da existência, compõe planos que se rompem e nos rompem
de tão deslumbrantes e excessivos, de tantas camadas
de luzes, atores, objetos cênicos, brilhos e cores:
os famosos sobreenquadramentos do diretor.
Essa riqueza na composição de imagens Fassbinder sabe
trabalhar como poucos diretores e o fez em grande parte
de sua carreira, mas a principal marca na realização
de Querelle além das questões já citadas, tão
caras à filmografia do diretor, parte de certos clichês
iconográficos de um universo muito próprio, gay e marginal.
Já no início do filme o narrador, em voz over, nos introduz
a história falando de elementos desse mundo e relacionando-os:
mar e homens resultam em assassinatos, marinheiros evocam
sexualidade e amor. Ao evocar sexualidade e amor, vamos
do amplo plano dos marinheiros em sua embarcação a uma
cena em que uma mulher de vestes pretas e batom vermelho
dança ao som de uma música sensual; Fassbinder está
trabalhando com imaginários. Mais especificamente, neste
caso, trabalha com um imaginário relacionado à sexualidade
e à sensualidade, de uma forma envolvente, mas também
quase agressiva, pois se trata de uma trama dramática
de traições, amores, incesto, sexo e crimes em um mundo
exclusivamente masculino. Homens fortes exalando sexualidade
em vestes de uniformes (marinheiros, policiais, operários),
trazendo à tona clichês de um universo gay estereotipado,
preenchem a tela enquanto uma Jeanne Moreau já bem acabadinha
vai perdendo seu lugar naquele “universo do qual a mulher
é banida”, segundo as palavras do próprio narrador.
Neste filme, não se trata de Martha, Veronika, Lola,
Maria... À dona do Bordel, Lysiane, a função delegada
é de cantar “Each man kills the thing he loves, Each
man kills the thing he loves”, embalando e comentando
os corpos, as vontades e as amarguras daqueles homens
que se bastam, se desejam e se matam.
Luisa Marques
(DVD Versatil)
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