O
processo de recuperação de importantes obras da cinematografia
brasileira tem, nos últimos anos, conseguido prestígio
público. Projetos de restauro estão sendo aprovados,
novos editais abrindo, e os resultados estão sendo satisfatórios,
mesmo que ainda haja um limitador tecnológico (e acho
que nunca se escapa de um limitador financeiro). Porém,
creio que não há viv’alma que não se emocione com as
cores recuperadas de Macunaíma (Joaquim Pedro
de Andrade, 1969); com a recente re-exibição de Como
era Gostoso meu Francês (Nelson Pereira do Santos,
1971); ou com o retorno de Terra em Transe (Glauber
Rocha, 1967) às salas de cinema. Apesar de algumas lacunas
ainda existirem em relação à nossa historiografia, os
projetos estão se multiplicando, visto o surgimento
de novos estúdios de restauro possibilitados pelas novas
tecnologias. A restauração de O Ébrio surge aí
- entre a disponibilização tecnológica e uma volta de
atenção dada ao cinema de maneira geral -, e se apresentou
entre os pioneiros desta fase, com seu relançamento,
em 1998, numa nova cópia, em 35mm. Isto, na verdade,
reflete uma progressiva conscientização sobre a importância
da preservação audiovisual. Apreende-se a memória como
uma parte integrante da cultura que se relaciona intrinsecamente
com o contemporâneo. Um novo olhar sobre O Ébrio
suscita diversas noções, tanto do ponto de vista da
historiografia - a partir da própria trajetória do filme
-, quanto como parâmetro a se relacionar com as questões
e o contexto da reflexão recente.
A começar, com o material inédito esta versão conta
com 120 minutos, enquanto a versão original de 1946,
com o corte pressionado pelos exibidores, contava com
87 minutos. Desenvolveu-se o novo corte com base no
roteiro original e com sobras de negativo recuperadas,
e seu resultado permite apontar, segundo Hernani Heffner,
para uma reavaliação de Gilda Abreu perante a historiografia.
A remontagem "repara" erros anteriormente atribuídos
a uma falha na direção, e a restauração permitiu uma
valorização da fotografia e do som que há muito tinham
se perdido: através de um processo que aliava meios
digitais e analógicos, conseguiu-se recuperar o som
e os meios-tons da imagem, perdidos pela exaustiva copiagem
do negativo original.
A preservação da cultura também se dá perante o material
extra-fílmico. Partindo da premissa que o objetivo das
cinematecas ultrapassa os filmes, e seu universo de
trabalho alcança tudo que é próprio do Cinema, se repassa,
ao DVD, esta preocupação, tratando os extras com seriedade,
com o comprometimento da difusão não só do filme, mas
de uma reflexão e de um trabalho que cercou a obra.
E isto está, por exemplo, em O Ébrio, uma homenagem,
no qual, ao som da faixa-título, vemos uma ampla amostragem
de fotos de cena, recortes de jornais, revista, pôsteres,
etc., demonstrando-se assim um rico patrimônio que sobreviveu
ao longo dos últimos 60 anos. Ao se propor uma revisão,
e lançar bases para um novo olhar sobre o filme, os
extras incluem entrevistas que se voltam tanto para
situar o filme em seu contexto, quanto às condições
que propiciaram o seu restauro. São entrevistados: Alice
Gonzaga, continuadora da Cinédia; Hernani Heffner, pesquisador
responsável pelo processo de restauração; Antônio Urano,
diretor comercial da Riofilme; e José Carlos Avellar,
crítico de cinema. O DVD ainda disponibiliza o curta-documentário
Canção de Amor, de Gilda Abreu, uma cine-biografia
de Vicente Celestino composta também de imagens de arquivo
e recortes de jornais, e algumas tomadas feitas para
o filme. A preocupação biográfica se estende a entrevista
de Gilda Abreu a Miguel Pereira e, ainda mais importante,
ao depoimento de Adhemar Gonzaga (22 de agosto de 1974,
MIS-RJ).
A industrialização era, para Gonzaga, menos uma opção
estética do que uma necessidade para a produção do cinema
no Brasil. Para manter-se produzindo, em um fluxo contínuo,
o Brasil precisaria aprender a se estruturar segundo
as regras do modelo industrial. Só isto transformaria
os esporádicos surtos de produção em uma realidade ininterrupta.
E, tendo O Ébrio atingido o número recorde de
8 milhões de espectadores em seus muitos anos de relançamentos,
resta analisá-lo por este viés. O viés do filme que
possibilitou a continuidade da produção da Cinédia.
Ao contrário da Vera Cruz, que apostava primordialmente
que a qualidade dos filmes garantiria o público, aqui
se trata de desenvolver os recursos cinematográficos.
Mais um enfoque de linguagem no estético, permitido
pela industrialização, do que um enfoque técnico, sobre
o signo da "qualidade". Em termos narrativos, o cinema
hollywoodiano surge como modelo, não sob uma ótica de
subserviência, mas de um reconhecimento do cinema como
uma linguagem universal. E apesar de poder se reconhecer
sim um mimetismo, isto por si só não elucida o seu grande
sucesso, visto outros tantos filmes que fracassaram,
e principalmente - como a crítica entusiasta da época
insiste em dizer - sua superação na bilheteria de outro
filme com data de lançamento próximo e com uma temática
parecida, Farrapo Humano (Billy Wilder, 1945).
Muitos críticos da época, e pesquisadores de hoje, costumam
apontar para a vulgaridade da chanchada, e seu contato
com a cultura brasileira, como pólo de atração de seu
público. Títulos como Tristezas não Pagam Dívidas
(José Carlos Burle, 1944) demonstram o tom que o filme
deveria ter para estabelecer este contato. O interessante
é como toda esta especulação se esvazia ao se tomar
o imenso sucesso de O Ébrio como exemplo. A fita
de Gilda Abreu é, sobretudo, um melodrama - seu pessimismo,
as motivações de seus personagens, seu caráter cíclico,
a fraqueza humana e a fatalidade do destino que já estão
impressas no seu início. Isto é o que predomina, apesar
dos alívios cômicos, de teor tão ingênuo que se torna
difícil para nós perceber como se agradou um público
já mais do que acostumado a consumir as divertidas baixarias
da Atlântida.
Como as chanchadas, o filme embarca no poder do rádio
na sociedade brasileira da década de 40. Considerando
a difusão do rádio dentro dos lares e sua influência
na cultura brasileira - que ganha ainda mais força a
partir do modelo getulista -, a proximidade do cinema
com o rádio já vinha rendendo frutos e havia possibilitado
o reerguimento da produção brasileira desde Coisas
Nossas (Wallace Downey, 1931). Aí já estavam presentes
todos os ingredientes que vigoram até hoje na transposição
mercadológica dentro da mídia. Mas se num momento o
cinema era mais um veículo dos artistas radiofônicos,
ancorado na ansiedade de se ver os famosos músicos
e comediantes, e uma antecipação das marchinhas de carnaval,
o seu contato com O Ébrio é ainda mais complexo.
O filme é pois uma adaptação a partir da famosa música
homônima do astro Vicente Celestino, e contou também
com uma prévia encenação nos populares teatros de revista,
com ele mesmo como protagonista. Não se tem um filme
que difusamente aproveita a rádio, mas que tem, concentrado
em um só artista, toda a base de sua motivação. E ainda
conta com uma estrutura que se espelha naquela de uma
novela radiofônica (diferente pois do molde de auditório,
de por exemplo, Alô Alô Carnaval, Adhemar Gonzaga,
1936), o que está bem expresso na sua estética - a narrativa,
o narrador e inclusive o modo de falar de seus personagens
estão impregnados por uma linguagem já afinada com o
público.
Analisando o trailer (por ele ser fundamentalmente uma
peça promocional) , já percebemos exatamente a que O
Ébrio se propõe, principalmente em termos de filão
do mercado. Sob a prática americana dos"8 aos 80", idealiza-se
o filme para abranger o maior público possível, e ainda
que isto esteja, ou não, na cópia final, isto é pelo
menos o que se anuncia, o que se vende. Afinal, os letreiros
são os mais diversos: realista, alegre, ação, ternura.
Isto demonstra não só uma implantação do modelo estético
e de produção hollywoodiana, mas implica também no abraçamento
pleno da idéia de indústria. Seu imenso sucesso vem
disso, de se propor e conseguir a atenção não de um
grande público, entendido como massa uniforme, mas de
embarcar os diversos pequenos públicos que fazem este
grande público. Seja pela pluralidade de seus anseios,
por seus momentos cômicos, pelas lágrimas de seu fim,
pela presença da música, o contexto do rádio, as figuras
famosas, O Ébrio não precisou recorrer ao velho
texto de que sexo vende, nem se encaixar nas fórmulas
correntes da produção cinematográfica. Se sua trama
resiste ou não ao tempo (o que na pior das hipóteses
apenas indica uma mudança natural do espectador) isto
não diminui a importância de sua recuperação, nem a
validade da discussão que este DVD, com seus extras,
suscita.
Lucas Barbi
(DVD Versátil)
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