O CRIADO
Joseph Losey, The Servant, Reino Unido, 1963

Há algo de profundamente enganoso em O Criado de Joseph Losey. Em sua superfície, o filme aparenta ser apenas aquilo pelos quais seus méritos, óbvios, são louvados: a história da dominação progressiva de um patrão por seu criado diabólico, a atuação espetacular de Dirk Bogarde em sua composição do servo inglês, os diálogos precisos e marcantes de Harold Pinter, a direção expressiva e climática de Losey, a fotografia cinzenta, a trilha sonora angustiante. Mas o que faz de O Criado um filme maior do que essas características isoladas, ou mesmo conjuntas, é aquilo que não está incluso nestes elementos, digamos, técnicos, ou melhor, aquilo que está escondido dentro deles.

Pois se a história da dominação sádica do criado pode explicar bastante sobre esse terreno pantanoso que costumamos chamar de natureza humana, o mote ganha muito mais força - e sentido – ao considerarmos sua presença dentro de outro tema, um pouco mais preciso, e um tanto quanto incerto. O Criado, ao sediar-se em um país sempre marcado por uma aristocracia de aparências e uma força sindical ativa, nos indica que os símbolos do filme – pois, sim, os elementos da obra, antes de tudo, são simbólicos -, não participam de um processo natural, mas, ao contrário, parecem querer entender de que é feito o processo histórico.

É nesse sentido que todos os elementos do filme ancoram-se em duas bases: ordem social e dialética. E é nesse sentido que poderíamos afirmar que o grande mérito de O Criado é trabalhar a permanente tensão, e o iminente conflito, que nascem desses elementos. Pois se o filme de Losey é enganoso é porque de cada aparência, de cada superfície, de cada camada apresentada, parece existir outra que possa destruir, reverter ou modificar de forma definitiva o que conhecemos. Se existe uma ordem, a História só é feita quando esta mesma ordem é quebrada.

Por isso, os arquétipos definidores dos personagens protagonistas não podem se bastar para qualificá-los. São, antes de vilões diabólicos ou pobres coitados, forças sociais maleáveis, e é dentro desta avaliação que a composição de Dirk Bogarde se mostra realmente perfeita. Pois não é ao longo da reviravolta assustadora que seu personagem toma que seus dotes de ator ficam mais claros, mas nas pequenas variações de olhares que dirige – para seu patrão, a namorada dele ou mesmo sua namorada –, nas alterações de voz, nos movimentos de corpo. Barrett, o servo, é uma energia sempre lutando para libertar-se e alcançar o posto que o outro tem, sem que nenhum direito maior justifique essa discrepância social. E essa energia, insaciável, é o que nos atemoriza e, simultaneamente, nos cativa. Afinal, não é mais injusta a insurreição sádica do criado do que a manutenção natural do patrão, ainda que este não seja exatamente um mau-caráter.

Essa energia permeia todo o filme, e não seria mentira afirmar que O Criado, já naturalmente uma obra de grande suspense, impregna-se de uma atmosfera de terror. A câmera em permanente movimento, seguindo os atores em uma casa tão claustrofóbica quanto enigmática – ao longo do filme, nunca conseguimos definir com exatidão o ambiente pelo qual passeamos durante quase duas horas -; os espelhos e sombras, que assombram a realidade da tela – e em especial a realidade de James Fox, o patrão -; a música-tema, que na primeira vez em que toca revela-se uma canção de amor, e na última já transmite o estado de desolação do protagonista. A atmosfera lânguida criada por Losey e seu diretor de fotografia o tempo todo nos instaura num clima de tensão aguda, como se a qualquer momento aquela ordem que conhecemos – e que, claramente, deveria ser mantida – pudesse ser destruída, ao olhar de Bogarde, às sombras na parede, à câmera, que adentra e esquece aposentos.

Pois a História está sempre em constante movimento – como nos afirmam novamente as panorâmicas e travellings que marcam o filme – e nunca poderemos saber o novo elemento que irá construí-la. É desta forma que a dialética do filme se faz ainda mais presente, e os conflitos afloram de modo ainda mais velado. De um lado, temos, por exemplo, a constante tensão entre a prosa teatral de Pinter e os artefatos cinematográficos de Losey, que parecem brigar, cada qual, pelo seu espaço predominante na tela. De outro, as composições de quadro elegantes e “marcadas” do diretor, que trazem para dentro de si a enorme ironia de serem, ao mesmo tempo, impossíveis de serem mantidas, pois toda ordem fixa subentende sua revolução. Por isso, de uma panorâmica podemos cortar para uma câmera na mão. De um plano de James Fox pode surgir um espelho com Dirk Bogarde. De uma composição perfeita adentrar uma nova sombra. O Criado funciona como o limite da mise-en-scène, sua afirmação maior e também sua falência.

Se essas dialéticas poderiam tornar O Criado um filme de tese, cujos símbolos se esgotam rapidamente, é o modo como são construídas que mantém o enorme interesse sobre a obra, quarenta e poucos anos depois de feita. Pois se de um lado temos as aparências e superfícies, que conservam o mundo como conhecemos, é nos escombros da imagem, no conflito entre a cena construída e o que se encontra por trás dela, na sutil transição entre uma sombra e uma pessoa, um rosto e um espelho, uma peça e um filme, um patrão e um criado, que a História surge, sempre, implacavelmente.


Leonardo Levis

(DVD Universal)

 

 







dialéticas:

luz...


e sombra


quadro...


e espelho