Há
algo de profundamente enganoso em O Criado de
Joseph Losey. Em sua superfície, o filme aparenta ser
apenas aquilo pelos quais seus méritos, óbvios, são
louvados: a história da dominação progressiva de um
patrão por seu criado diabólico, a atuação espetacular
de Dirk Bogarde em sua composição do servo inglês, os
diálogos precisos e marcantes de Harold Pinter, a direção
expressiva e climática de Losey, a fotografia cinzenta,
a trilha sonora angustiante. Mas o que faz de O Criado
um filme maior do que essas características isoladas,
ou mesmo conjuntas, é aquilo que não está incluso nestes
elementos, digamos, técnicos, ou melhor, aquilo que
está escondido dentro deles.
Pois se a história da dominação sádica do criado pode
explicar bastante sobre esse terreno pantanoso que costumamos
chamar de natureza humana, o mote ganha muito mais força
- e sentido – ao considerarmos sua presença dentro de
outro tema, um pouco mais preciso, e um tanto quanto
incerto. O Criado, ao sediar-se em um país sempre
marcado por uma aristocracia de aparências e uma força
sindical ativa, nos indica que os símbolos do filme
– pois, sim, os elementos da obra, antes de tudo, são
simbólicos -, não participam de um processo natural,
mas, ao contrário, parecem querer entender de que é
feito o processo histórico.
É nesse sentido que todos os elementos do filme ancoram-se
em duas bases: ordem social e dialética. E é nesse sentido
que poderíamos afirmar que o grande mérito de O Criado
é trabalhar a permanente tensão, e o iminente conflito,
que nascem desses elementos. Pois se o filme de Losey
é enganoso é porque de cada aparência, de cada superfície,
de cada camada apresentada, parece existir outra que
possa destruir, reverter ou modificar de forma definitiva
o que conhecemos. Se existe uma ordem, a História só
é feita quando esta mesma ordem é quebrada.
Por isso, os arquétipos definidores dos personagens
protagonistas não podem se bastar para qualificá-los.
São, antes de vilões diabólicos ou pobres coitados,
forças sociais maleáveis, e é dentro desta avaliação
que a composição de Dirk Bogarde se mostra realmente
perfeita. Pois não é ao longo da reviravolta assustadora
que seu personagem toma que seus dotes de ator ficam
mais claros, mas nas pequenas variações de olhares que
dirige – para seu patrão, a namorada dele ou mesmo sua
namorada –, nas alterações de voz, nos movimentos de
corpo. Barrett, o servo, é uma energia sempre lutando
para libertar-se e alcançar o posto que o outro tem,
sem que nenhum direito maior justifique essa discrepância
social. E essa energia, insaciável, é o que nos atemoriza
e, simultaneamente, nos cativa. Afinal, não é mais injusta
a insurreição sádica do criado do que a manutenção natural
do patrão, ainda que este não seja exatamente um mau-caráter.
Essa energia permeia todo o filme, e não seria mentira
afirmar que O Criado, já naturalmente uma obra
de grande suspense, impregna-se de uma atmosfera de
terror. A câmera em permanente movimento, seguindo os
atores em uma casa tão claustrofóbica quanto enigmática
– ao longo do filme, nunca conseguimos definir com exatidão
o ambiente pelo qual passeamos durante quase duas horas
-; os espelhos e sombras, que assombram a realidade
da tela – e em especial a realidade de James Fox, o
patrão -; a música-tema, que na primeira vez em que
toca revela-se uma canção de amor, e na última já transmite
o estado de desolação do protagonista. A atmosfera lânguida
criada por Losey e seu diretor de fotografia o tempo
todo nos instaura num clima de tensão aguda, como se
a qualquer momento aquela ordem que conhecemos – e que,
claramente, deveria ser mantida – pudesse ser destruída,
ao olhar de Bogarde, às sombras na parede, à câmera,
que adentra e esquece aposentos.
Pois a História está sempre em constante movimento –
como nos afirmam novamente as panorâmicas e travellings
que marcam o filme – e nunca poderemos saber o novo
elemento que irá construí-la. É desta forma que a dialética
do filme se faz ainda mais presente, e os conflitos
afloram de modo ainda mais velado. De um lado, temos,
por exemplo, a constante tensão entre a prosa teatral
de Pinter e os artefatos cinematográficos de Losey,
que parecem brigar, cada qual, pelo seu espaço predominante
na tela. De outro, as composições de quadro elegantes
e “marcadas” do diretor, que trazem para dentro de si
a enorme ironia de serem, ao mesmo tempo, impossíveis
de serem mantidas, pois toda ordem fixa subentende sua
revolução. Por isso, de uma panorâmica podemos cortar
para uma câmera na mão. De um plano de James Fox pode
surgir um espelho com Dirk Bogarde. De uma composição
perfeita adentrar uma nova sombra. O Criado funciona
como o limite da mise-en-scène, sua afirmação
maior e também sua falência.
Se essas dialéticas poderiam tornar O Criado
um filme de tese, cujos símbolos se esgotam rapidamente,
é o modo como são construídas que mantém o enorme interesse
sobre a obra, quarenta e poucos anos depois de feita.
Pois se de um lado temos as aparências e superfícies,
que conservam o mundo como conhecemos, é nos escombros
da imagem, no conflito entre a cena construída e o que
se encontra por trás dela, na sutil transição entre
uma sombra e uma pessoa, um rosto e um espelho, uma
peça e um filme, um patrão e um criado, que a História
surge, sempre, implacavelmente.
Leonardo Levis
(DVD Universal)
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