A PONTA DE UM CRIME
Rian Johnson, Brick, EUA, 2005

Um telefonema misterioso e confuso desencadeia toda a aventura detetivesca de Brendan em A Ponta de um Crime, mas antes que ele o receba, já havíamos visto a pessoa do outro lado da linha, Emily Kostish, morta num túnel de esgoto da cidade, no pequeno prólogo que antecede os créditos iniciais. Brendan já estava, desde esta inversão cronológica simples, mergulhado inteiramente na história do crime contra sua ex-namorada, e quando atende o telefonema, ainda que não soubesse disso, já fazia parte daquele jogo, não poderia reagir à revelação das quatro palavras desconexas ditas pela menina senão com a determinação do involuntário participante de um tabuleiro que, uma vez dentro na partida, decide lutar até o final dela.

Rian Johnson quer aplicar essa mesma sensação a seu filme. Nunca estaremos propriamente envolvidos nesse submundo criado em A Ponta de um Crime, envolvimento que garantiria, no limite, segurança e alguma certeza de se saber por onde ir, a que artifícios de percepção recorrer. Como Brendan, agente exterior a esse meio que se vê obrigado a tomar parte dele, experimentaremos uma instalação, uma colocação sem apresentações ou mesuras dentro daquele mesmo tabuleiro, jogando pelas regras sem conhecê-las completamente, acumulando informações, nomes de suspeitos, locais de encontro e fisionomias sem que haja qualquer organização nisso. A ordem é a do movimento: como parece indicar a marca de cigarro recorrente ao longo do filme, que apresenta no filtro uma seta azul fundamental para o desenrolar da trama, seguir em frente sempre é a única opção.

A necessidade de um mergulho, de uma entrega que começa naquele telefonema inicial e só termina pela insistência dos créditos finais em tomar a tela, se dá certamente pelo fato de que este submundo de A Ponta de um Crime não existe como tal apenas porque o mundo oficial o empurrou para os esgotos. Há aqui a verdadeira ocorrência de um universo particular que, por sua força e imposição, se torna o oficial. Não há marcas do “mundo de fora”: todos os que aparecem na tela estão envolvidos diretamente com a organização criminosa que trafica drogas na escola, ou pelo menos a circundam, interessados em se infiltrar nela ou tomar seu lugar. Não poderia haver, portanto, ponto-de-vista exterior que fizesse esta narrativa de instalação conviver com sua antítese, com a câmera observadora imparcial, com o filme que é retrato de alguma coisa. O horror e a febre presenciados e experimentados por Brendan, herói ocasional, serão também as maiores marcas do filme que se faz sobre sua história.

Há um evidente desejo noir em Rian Johnson, que mira no cinema clássico, sobretudo por uma indisfarçável vontade de pingos nos is, onde tudo se mistura e se embola de maneira sufocante para que, no fim, os nós sejam desatados e a corda esteja reta e esticada novamente. Mas ali no meio, ali onde se respira com dificuldade, e onde A Ponta de um Crime é realmente valioso, a conversa é com outra tradição americana, produzida a partir do mesmo subterrâneo marginal existente aqui (e de reconhecimento tão igualmente marginal que o termo “tradição” só serve mesmo para quem – como nós – enxerga ali o cinema americano que mais interessa). É entre David Lynch e Francis Ford Coppola que A Ponta de um Crime se colocará, citações e reprodução de climas, confusão de sentidos e certa falta de percepção das incongruências entre as duas fontes, mas tudo isso colocado em ação sem parasitismos, porque há aqui a proposição de um outro espaço de atuação para todas essas forças históricas.

São os carros envenenados, as ruas desertas no alto de colinas, os fundos de uma lanchonete cheio de lixeiras azuis e vagabundos se drogando, camarins de um teatro decadente. A esquizofrenia dos subúrbios e da middle-America não é apenas uma falha no sistema comportamental central, uma deturpação do modo de vida estabelecido na superfície. Como nos filmes de David Lynch (sobretudo Veludo Azul e Cidade dos Sonhos), a febre é a própria matriz das emoções deste universo, e tudo o que está circunscrito nele sofre suas convulsões e alucinações doentias. Enquanto produto do inconsciente, estas convulsões não precisam se ligar de maneira tão evidente para que uma imagem se produza daí, basta apenas que existe entre elas alguma afinidade secreta, algo capaz de fazer as peças distantes se aproximarem no quebra-cabeça das idéias. A Ponta de um Crime nunca exige de si mesmo as razões pelas quais se apresenta do jeito que é. Faltam as conexões, não há mecanismos expostos, e ainda assim a máquina segue funcionando do mesmo jeito (de onde Brain tira tantas informações para o herói Brendan, como se construiu a figura extravagante do Pin, o chefe do tráfico, o que deu início a toda a guerra entre gangues: as respostas não importam aqui).

Um estado de corpo, e não de espírito. É como quando o Rusty James de O Selvagem da Motocicleta toma um golpe na cabeça durante uma briga, e na experiência de quase-morte que vive em seguida o truque cinematográfico inverte a ordem da matéria, e é o corpo do rapaz que sai do espírito e fica pairando pela cidade, enquanto este permanece no chão, imóvel, translúcido. O corpo sempre estará sujeito às inconstâncias do submundo, é a ponte entre as pulsões íntimas e a virulência do meio, e por isso sofre, apanha, perde vida quando alvejado por um tiro. O que era puro sonho (pensemos na seqüência em que Brendan é espancado pelo capanga do chefe do tráfico num estacionamento, e insistente na tentativa de chegar até o centro do poder, quase é atropelado por Tug: imagens da mão balançando com o vácuo do carro em alta velocidade, o barulho da aproximação, a sensação de vertigem, tudo filmado com um pé na fantasia), passa a se misturar também com um certo pesadelo da realidade, que é igualmente perturbador, mas que ao mesmo tempo sente necessidade de atuar com princípios e propósitos sobre um determinado objeto, dar-lhe sentido amplo, conseqüência, inscrevê-lo dentro de um projeto de vida, de humanidade, de cinema.

A febre cede lugar ao horror, aquele que atinge diretamente os homens e seus corpos, que exige deles o sacrifício físico: a trajetória de Michael Corleone e do Capitão Willard são verdadeiros épicos do definhamento, e no fim desta última o que encontra é a própria materialização desta loucura que, na verdade, é totalmente pragmática e lúcida, Coronel Kurtz escondido nas sombras, o horror, o horror. Eis a descoberta mais dolorosa de Brendan (e a inviabilidade do equilíbrio entre Coppola e Lynch, tentativa fracassada de A Ponta de um Crime): para cada porção de absurdo e de alucinação existe um equivalente em violência e realidade.

Mas o risco de se lidar com cinemas tão poderosos parece ser diretamente proporcional à aventura de fazê-lo naquele que é o ambiente da irresponsabilidade por excelência: a high school. Não mais os motoqueiros em preto-e-branco, os outsiders fãs de Elvis, mafiosos italianos ou jovens promissores do subúrbio. A face ainda limpa e intacta o bastante para ser marcada pelas cicatrizes e traumas dos tempos de agora é a do jovem estudante americano, e é particularmente delicioso o modo como Rian Johnson vai adicionando ao clima tenso da caça ao assassino de Emily uma série de intervenções da vida colegial, e sob o perigo de ser encontrado pelo vice-diretor inescrupuloso, ao invés de se preocupar com um plano de fuga, o que se pergunta é se o sujeito já ligou para a mãe do herói. No rosto e no corpo de Joseph Gordon-Levitt (que se confirma aqui, depois do deslumbre de Mistérios da Carne, como o grande ator de sua geração), atingidos de maneira definitiva, esta última fronteira da mitologia americana renovada.


Rodrigo de Oliveira

(DVD Imagem Filmes)

 

 







Entre Lynch...


... e Coppola


Joseph Gordon-Levitt, rosto marcado do jovem colegial:
a última fronteira das mitologias americanas