Um
telefonema misterioso e confuso desencadeia toda a aventura
detetivesca de Brendan em A Ponta de um Crime,
mas antes que ele o receba, já havíamos visto a pessoa
do outro lado da linha, Emily Kostish, morta num túnel
de esgoto da cidade, no pequeno prólogo que antecede
os créditos iniciais. Brendan já estava, desde esta
inversão cronológica simples, mergulhado inteiramente
na história do crime contra sua ex-namorada, e quando
atende o telefonema, ainda que não soubesse disso, já
fazia parte daquele jogo, não poderia reagir à revelação
das quatro palavras desconexas ditas pela menina senão
com a determinação do involuntário participante de um
tabuleiro que, uma vez dentro na partida, decide lutar
até o final dela.
Rian Johnson quer aplicar essa mesma sensação a seu
filme. Nunca estaremos propriamente envolvidos nesse
submundo criado em A Ponta de um Crime, envolvimento
que garantiria, no limite, segurança e alguma certeza
de se saber por onde ir, a que artifícios de percepção
recorrer. Como Brendan, agente exterior a esse meio
que se vê obrigado a tomar parte dele, experimentaremos
uma instalação, uma colocação sem apresentações ou mesuras
dentro daquele mesmo tabuleiro, jogando pelas regras
sem conhecê-las completamente, acumulando informações,
nomes de suspeitos, locais de encontro e fisionomias
sem que haja qualquer organização nisso. A ordem é a
do movimento: como parece indicar a marca de cigarro
recorrente ao longo do filme, que apresenta no filtro
uma seta azul fundamental para o desenrolar da trama,
seguir em frente sempre é a única opção.
A necessidade de um mergulho, de uma entrega que começa
naquele telefonema inicial e só termina pela insistência
dos créditos finais em tomar a tela, se dá certamente
pelo fato de que este submundo de A Ponta de um Crime
não existe como tal apenas porque o mundo oficial o
empurrou para os esgotos. Há aqui a verdadeira ocorrência
de um universo particular que, por sua força e imposição,
se torna o oficial. Não há marcas do “mundo de fora”:
todos os que aparecem na tela estão envolvidos diretamente
com a organização criminosa que trafica drogas na escola,
ou pelo menos a circundam, interessados em se infiltrar
nela ou tomar seu lugar. Não poderia haver, portanto,
ponto-de-vista exterior que fizesse esta narrativa de
instalação conviver com sua antítese, com a câmera observadora
imparcial, com o filme que é retrato de alguma coisa.
O horror e a febre presenciados e experimentados por
Brendan, herói ocasional, serão também as maiores marcas
do filme que se faz sobre sua história.
Há um evidente desejo noir em Rian Johnson, que
mira no cinema clássico, sobretudo por uma indisfarçável
vontade de pingos nos is, onde tudo se mistura e se
embola de maneira sufocante para que, no fim, os nós
sejam desatados e a corda esteja reta e esticada novamente.
Mas ali no meio, ali onde se respira com dificuldade,
e onde A Ponta de um Crime é realmente valioso,
a conversa é com outra tradição americana, produzida
a partir do mesmo subterrâneo marginal existente aqui
(e de reconhecimento tão igualmente marginal que o termo
“tradição” só serve mesmo para quem – como nós – enxerga
ali o cinema americano que mais interessa). É entre
David Lynch e Francis Ford Coppola que A Ponta de
um Crime se colocará, citações e reprodução de climas,
confusão de sentidos e certa falta de percepção das
incongruências entre as duas fontes, mas tudo isso colocado
em ação sem parasitismos, porque há aqui a proposição
de um outro espaço de atuação para todas essas forças
históricas.
São os carros envenenados, as ruas desertas no alto
de colinas, os fundos de uma lanchonete cheio de lixeiras
azuis e vagabundos se drogando, camarins de um teatro
decadente. A esquizofrenia dos subúrbios e da middle-America
não é apenas uma falha no sistema comportamental central,
uma deturpação do modo de vida estabelecido na superfície.
Como nos filmes de David Lynch (sobretudo Veludo
Azul e Cidade dos Sonhos), a febre é a própria
matriz das emoções deste universo, e tudo o que está
circunscrito nele sofre suas convulsões e alucinações
doentias. Enquanto produto do inconsciente, estas convulsões
não precisam se ligar de maneira tão evidente para que
uma imagem se produza daí, basta apenas que existe entre
elas alguma afinidade secreta, algo capaz de fazer as
peças distantes se aproximarem no quebra-cabeça das
idéias. A Ponta de um Crime nunca exige de si
mesmo as razões pelas quais se apresenta do jeito que
é. Faltam as conexões, não há mecanismos expostos, e
ainda assim a máquina segue funcionando do mesmo jeito
(de onde Brain tira tantas informações para o herói
Brendan, como se construiu a figura extravagante do
Pin, o chefe do tráfico, o que deu início a toda a guerra
entre gangues: as respostas não importam aqui).
Um estado de corpo, e não de espírito. É como quando
o Rusty James de O Selvagem da Motocicleta toma
um golpe na cabeça durante uma briga, e na experiência
de quase-morte que vive em seguida o truque cinematográfico
inverte a ordem da matéria, e é o corpo do rapaz que
sai do espírito e fica pairando pela cidade, enquanto
este permanece no chão, imóvel, translúcido. O corpo
sempre estará sujeito às inconstâncias do submundo,
é a ponte entre as pulsões íntimas e a virulência do
meio, e por isso sofre, apanha, perde vida quando alvejado
por um tiro. O que era puro sonho (pensemos na seqüência
em que Brendan é espancado pelo capanga do chefe do
tráfico num estacionamento, e insistente na tentativa
de chegar até o centro do poder, quase é atropelado
por Tug: imagens da mão balançando com o vácuo do carro
em alta velocidade, o barulho da aproximação, a sensação
de vertigem, tudo filmado com um pé na fantasia), passa
a se misturar também com um certo pesadelo da realidade,
que é igualmente perturbador, mas que ao mesmo tempo
sente necessidade de atuar com princípios e propósitos
sobre um determinado objeto, dar-lhe sentido amplo,
conseqüência, inscrevê-lo dentro de um projeto de vida,
de humanidade, de cinema.
A febre cede lugar ao horror, aquele que atinge diretamente
os homens e seus corpos, que exige deles o sacrifício
físico: a trajetória de Michael Corleone e do Capitão
Willard são verdadeiros épicos do definhamento, e no
fim desta última o que encontra é a própria materialização
desta loucura que, na verdade, é totalmente pragmática
e lúcida, Coronel Kurtz escondido nas sombras, o horror,
o horror. Eis a descoberta mais dolorosa de Brendan
(e a inviabilidade do equilíbrio entre Coppola e Lynch,
tentativa fracassada de A Ponta de um Crime):
para cada porção de absurdo e de alucinação existe um
equivalente em violência e realidade.
Mas o risco de se lidar com cinemas tão poderosos parece
ser diretamente proporcional à aventura de fazê-lo naquele
que é o ambiente da irresponsabilidade por excelência:
a high school. Não mais os motoqueiros em preto-e-branco,
os outsiders fãs de Elvis, mafiosos italianos ou jovens
promissores do subúrbio. A face ainda limpa e intacta
o bastante para ser marcada pelas cicatrizes e traumas
dos tempos de agora é a do jovem estudante americano,
e é particularmente delicioso o modo como Rian Johnson
vai adicionando ao clima tenso da caça ao assassino
de Emily uma série de intervenções da vida colegial,
e sob o perigo de ser encontrado pelo vice-diretor inescrupuloso,
ao invés de se preocupar com um plano de fuga, o que
se pergunta é se o sujeito já ligou para a mãe do herói.
No rosto e no corpo de Joseph Gordon-Levitt (que se
confirma aqui, depois do deslumbre de Mistérios da
Carne, como o grande ator de sua geração), atingidos
de maneira definitiva, esta última fronteira da mitologia
americana renovada.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Imagem Filmes)
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