A
carreira prolífica do diretor novaiorquino Woody Allen
passa por uma das fases que incomodam seus apreciadores,
seja pelos caminhos incertos que os filmes traçam, com
misturas de gêneros sendo levadas de maneira insatisfatória,
seja por uma sensação de que o diretor está apenas batendo
o ponto, e isso se verifica especialmente nas posições
de câmera e nos cortes pouco rigorosos, que fazem com
que possibilidades de humor fiquem prejudicadas. Aconteceu
antes, após dois filmes muito bem recebidos por crítica
e público: Hannah e Suas Irmãs (1986) e A
Era do Rádio (1987). Naquele momento, Allen resolveu
purgar definitivamente suas inclinações bergmaninanas
em filmes desiguais, um sendo muito feliz na emulação
das neuroses do cineasta sueco (A Outra, de 1988),
outro sendo um porre pseudo-reverente de proporções
desastrosas mesmo entre seus fãs (Setembro, de
1987). A crise seguiu até Maridos e Esposas (1992),
filme que expunha como poucos sua vida extra-conjugal,
talvez assim liberando-o para fazer o que mais sabe:
provocar o riso. Ou melhor: provocar aquele sorriso
de satisfação intelectual, que tanto pode vir de uma
tirada realmente inteligente, como de uma desagradável
postura de quem pensa estar num patamar acima do resto
da humanidade. Alguns desses filmes que sugerem uma
superioridade intelectual estão, entretanto, entre os
melhores que ele fez, caso do inacreditável Desconstruindo
Harry (1997), que nunca foi uma unanimidade crítica.
Talvez seja justamente com Desconstruindo Harry
que se encerra a fase mais segura e inspirada do diretor,
que passa por pérolas como Misterioso Assassinato
em Manhattan (1993) e Tiros na Broadway (1994).
Scoop se insere em outro momento, numa fase em
que coexistem bons achados cômicos, em filmes como O
Escorpião de Jade (2001) e Dirigindo no Escuro
(2002); experiências fracassadas de estilo e trabalho
com o espaço, como em Igual a Tudo na Vida (2003);
e brincadeiras esteticamente pobres com gêneros cinematográficos
(Melinda e Melinda, de 2004, e Match Point
- Ponto Final, de 2005). É um momento em que a cada
filme Allen parece ter que provar que pode e deve seguir
a fórmula que lhe deu prestígio, ao mesmo tempo em que
acena para mudanças sutis de procedimentos estéticos.
É um ponto que não pode ser ignorado, e que perpassa
toda a duração de Scoop. Outro ponto a não se
subestimar é que o filme parece exigir conhecimento
prévio da carreira do diretor para que muito de sua
graça seja sentida numa primeira visão. É como se a
expectativa de certos gestos, certos tiques cômicos,
contribuísse para a melhor apreciação das gags, que
existem em volume ligeiramente superior ao de qualquer
outro de seus últimos trabalhos. As idéias visuais são
recicladas a partir do que havia dado certo em filmes
anteriores, daí a necessidade de se voltar à sua obra
pregressa de acordo com a opção de abordagem crítica
que se queira fazer, o que gera um novo risco: como
não cair na tentação pobre da comparação? Como evitar
que todos os filmes citados no texto até aqui lutem
contra os aspectos positivos de Scoop, deixando-o
numa posição incômoda de mais um filme menor. De fato:
um filme menor. Assim pode ser considerado, ainda que
alguns sinais de respiro para fora dessa fórmula manjada
sejam perceptíveis. Vamos a eles.
Em primeiro lugar, o trânsito pelos gêneros cinematográficos
– prática comum em muitos de seus filmes – consegue
ser bem solto e natural, como há muito tempo ele não
conseguia. Passamos do humor intelectual ao humor físico,
dois ingredientes de sub-gêneros da comédia, e do humor
ao suspense, sem que se abandone o humor. Ele brota
naturalmente, em situações insuspeitadas. Contribui
muito para isso a direção de atores, algo que parecia
adormecido em Allen, e que retorna aqui em grande estilo,
depois do pífio aproveitamento de atores de grande potencial
como Will Ferrell, Chloë Sevigny, Emily Mortimer, Christina
Ricci e a própria Scarlett Johansson. Não é negada aos
atores de Scoop qualquer oportunidade de extrapolar
no humor, o que talvez explique que as situações de
riso brotem dos mais estranhos momentos.
Um outro fator que pode significar um alento, no sentido
de fuga da fórmula que criou, é que a intelectualidade,
outro elemento onipresente em Allen, desta vez é colocada
à prova, sendo até satirizada em mais de um momento.
O personagem interpretado por Allen é um dos que mais
se aproveitam dessa intenção autocrítica, como quando
ele se diz personagem de Todos os Homens do Presidente
(Alan J. Pakula, 1976), e o diz como quem raramente
vê filmes, longe da pompa com que citava Bergman e outros
europeus em Manhattan (1979) ou Memórias
(1980), por exemplo. Esse momento faz lembrar um outro
momento, em filme muito superior: quando o protagonista
de Misterioso Assassinato em Manhattan, também
vivido por Allen, admite que não havia entendido patavinas
de O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais,
1961), filme que Allen já disse ter adorado. Momentos
como esse representam uma saudável tiração de sarro
consigo mesmo, e retomam o Allen mais irreverente de
outros tempos, ao mesmo tempo em que inserem no filme
atual uma aura de desprendimento de que ele parecia
fugir nos últimos anos, ainda que tentasse, sem sucesso,
em Match Point.
Mas o que faz de Scoop um filme acima da média
do cinema contemporâneo é a consumação de uma nova estrela
de cinema: Scarlett Johansson. Encontros e Desencontros,
o filme de Sofia Coppola que a transformou em atriz
fetiche, é muito superior a este Scoop. Mas analisando
apenas a interpretação de Johansson, sua verve cômica,
e seu aspecto Girl Next Door sendo levado às
últimas conseqüências – basta notar como ela difere
de um Hugh Jackman, muito bem no papel de um playboy,
ficando sempre desconfortável na companhia dele, não
por suspeita, mas pelo abismo social – notamos que seu
desempenho merece entrar para o rol de grandes atuações
femininas do cinema falado em inglês. Scarlett brilha
como nenhuma outra atriz de Allen brilhou. Porque Diane
Keaton, Dianne Wiest, Barbara Hershey, Mia Farrow e
Judy Davis brilharam em filmes que possuíam muitos outros
encantos. Scoop, apesar de bons momentos, permanecerá
como o filme que confirmou a maturidade de uma nova
deusa das telas.
Sérgio Alpendre
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