SCOOP - O GRANDE FURO
Woody Allen, Scoop, EUA, Inglaterra, 2006

A carreira prolífica do diretor novaiorquino Woody Allen passa por uma das fases que incomodam seus apreciadores, seja pelos caminhos incertos que os filmes traçam, com misturas de gêneros sendo levadas de maneira insatisfatória, seja por uma sensação de que o diretor está apenas batendo o ponto, e isso se verifica especialmente nas posições de câmera e nos cortes pouco rigorosos, que fazem com que possibilidades de humor fiquem prejudicadas. Aconteceu antes, após dois filmes muito bem recebidos por crítica e público: Hannah e Suas Irmãs (1986) e A Era do Rádio (1987). Naquele momento, Allen resolveu purgar definitivamente suas inclinações bergmaninanas em filmes desiguais, um sendo muito feliz na emulação das neuroses do cineasta sueco (A Outra, de 1988), outro sendo um porre pseudo-reverente de proporções desastrosas mesmo entre seus fãs (Setembro, de 1987). A crise seguiu até Maridos e Esposas (1992), filme que expunha como poucos sua vida extra-conjugal, talvez assim liberando-o para fazer o que mais sabe: provocar o riso. Ou melhor: provocar aquele sorriso de satisfação intelectual, que tanto pode vir de uma tirada realmente inteligente, como de uma desagradável postura de quem pensa estar num patamar acima do resto da humanidade. Alguns desses filmes que sugerem uma superioridade intelectual estão, entretanto, entre os melhores que ele fez, caso do inacreditável Desconstruindo Harry (1997), que nunca foi uma unanimidade crítica. Talvez seja justamente com Desconstruindo Harry que se encerra a fase mais segura e inspirada do diretor, que passa por pérolas como Misterioso Assassinato em Manhattan (1993) e Tiros na Broadway (1994).

Scoop se insere em outro momento, numa fase em que coexistem bons achados cômicos, em filmes como O Escorpião de Jade (2001) e Dirigindo no Escuro (2002); experiências fracassadas de estilo e trabalho com o espaço, como em Igual a Tudo na Vida (2003); e brincadeiras esteticamente pobres com gêneros cinematográficos (Melinda e Melinda, de 2004, e Match Point - Ponto Final, de 2005). É um momento em que a cada filme Allen parece ter que provar que pode e deve seguir a fórmula que lhe deu prestígio, ao mesmo tempo em que acena para mudanças sutis de procedimentos estéticos. É um ponto que não pode ser ignorado, e que perpassa toda a duração de Scoop. Outro ponto a não se subestimar é que o filme parece exigir conhecimento prévio da carreira do diretor para que muito de sua graça seja sentida numa primeira visão. É como se a expectativa de certos gestos, certos tiques cômicos, contribuísse para a melhor apreciação das gags, que existem em volume ligeiramente superior ao de qualquer outro de seus últimos trabalhos. As idéias visuais são recicladas a partir do que havia dado certo em filmes anteriores, daí a necessidade de se voltar à sua obra pregressa de acordo com a opção de abordagem crítica que se queira fazer, o que gera um novo risco: como não cair na tentação pobre da comparação? Como evitar que todos os filmes citados no texto até aqui lutem contra os aspectos positivos de Scoop, deixando-o numa posição incômoda de mais um filme menor. De fato: um filme menor. Assim pode ser considerado, ainda que alguns sinais de respiro para fora dessa fórmula manjada sejam perceptíveis. Vamos a eles.

Em primeiro lugar, o trânsito pelos gêneros cinematográficos – prática comum em muitos de seus filmes – consegue ser bem solto e natural, como há muito tempo ele não conseguia. Passamos do humor intelectual ao humor físico, dois ingredientes de sub-gêneros da comédia, e do humor ao suspense, sem que se abandone o humor. Ele brota naturalmente, em situações insuspeitadas. Contribui muito para isso a direção de atores, algo que parecia adormecido em Allen, e que retorna aqui em grande estilo, depois do pífio aproveitamento de atores de grande potencial como Will Ferrell, Chloë Sevigny, Emily Mortimer, Christina Ricci e a própria Scarlett Johansson. Não é negada aos atores de Scoop qualquer oportunidade de extrapolar no humor, o que talvez explique que as situações de riso brotem dos mais estranhos momentos.

Um outro fator que pode significar um alento, no sentido de fuga da fórmula que criou, é que a intelectualidade, outro elemento onipresente em Allen, desta vez é colocada à prova, sendo até satirizada em mais de um momento. O personagem interpretado por Allen é um dos que mais se aproveitam dessa intenção autocrítica, como quando ele se diz personagem de Todos os Homens do Presidente (Alan J. Pakula, 1976), e o diz como quem raramente vê filmes, longe da pompa com que citava Bergman e outros europeus em Manhattan (1979) ou Memórias (1980), por exemplo. Esse momento faz lembrar um outro momento, em filme muito superior: quando o protagonista de Misterioso Assassinato em Manhattan, também vivido por Allen, admite que não havia entendido patavinas de O Ano Passado em Marienbad (Alain Resnais, 1961), filme que Allen já disse ter adorado. Momentos como esse representam uma saudável tiração de sarro consigo mesmo, e retomam o Allen mais irreverente de outros tempos, ao mesmo tempo em que inserem no filme atual uma aura de desprendimento de que ele parecia fugir nos últimos anos, ainda que tentasse, sem sucesso, em Match Point.

Mas o que faz de Scoop um filme acima da média do cinema contemporâneo é a consumação de uma nova estrela de cinema: Scarlett Johansson. Encontros e Desencontros, o filme de Sofia Coppola que a transformou em atriz fetiche, é muito superior a este Scoop. Mas analisando apenas a interpretação de Johansson, sua verve cômica, e seu aspecto Girl Next Door sendo levado às últimas conseqüências – basta notar como ela difere de um Hugh Jackman, muito bem no papel de um playboy, ficando sempre desconfortável na companhia dele, não por suspeita, mas pelo abismo social – notamos que seu desempenho merece entrar para o rol de grandes atuações femininas do cinema falado em inglês. Scarlett brilha como nenhuma outra atriz de Allen brilhou. Porque Diane Keaton, Dianne Wiest, Barbara Hershey, Mia Farrow e Judy Davis brilharam em filmes que possuíam muitos outros encantos. Scoop, apesar de bons momentos, permanecerá como o filme que confirmou a maturidade de uma nova deusa das telas.


Sérgio Alpendre