O
Cheiro do Ralo começa com uma sugestão
enganosa. Vemos o protagonista no trânsito de
sua casa até o local de trabalho, mas a própria
idéia de "trânsito", de movimento
entre pólos, parece descartada. Heitor Dhalia
coloca a câmera fixa, em enquadramentos rígidos,
espalhada por diversos pontos desse trajeto na rua,
e basta a Lourenço cruzar este quadro, restrito
por seus limites, e basta à montagem organizar
coerentemente estes planos, para que dali apareça
esta idéia de fluidez. Mas o que fica claro,
desde esse primeiro dispositivo, é que a possibilidade
de qualquer fluxo está descartada, e que, mais
que personagem ou narrador, Lourenço seja sempre
apenas um conjunto de grãos, uma imagem a preencher
o quadro sempre e sob as condições que
o diretor deseje (curiosamente – ou nem tanto – o próprio
Selton Mello repetiria esta mesma operação
em seu curta Quando o Tempo Cair, só que
agora com Jorge Loredo servindo de elemento de preenchimento).
Nem propor, sem confrontar, nem muito menos dialogar,
a O Cheiro do Ralo interessa, acima de tudo,
submeter: seu protagonista, seus coadjuvantes, sua agenda
de princípios, e tudo mais que seja frágil
o bastante para tal.
Essa relação metonímica é
a própria matéria-prima do drama de O
Cheiro do Ralo: Lourenço toma a parte de
uma mulher (sua bunda) pelo todo (um corpo, um relacionamento),
quer que um olho de vidro e uma perna mecânica
se transformem na memória de um pai perdido,
talvez imaginado, projeta toda sua personalidade na
constância implacável de um cheiro. Do
mesmo modo, Dhalia enxerga seu personagem microscópico,
confinado nesse drama, submetido a essa construção
de imagem, como porta-voz de todo um universo de relações
perversas ao qual o filme pretende atingir. Parábola
da mercantilização do homem, tirada de
um pequeno galpão de quinquilharias, O Cheiro
do Ralo mostra, já desde cedo, sua vontade
de fábula moral.
Cedo, mas não tanto assim. No primeiro terço
do filme, longe de todo o peso e importância que
se esperava reprisado aqui como em Nina, Dhalia
se joga na comédia pura (mas sempre é
preciso cuidado ao relacionar qualquer idéia
de pureza ao trabalho do diretor). A sucessão
de tipos e seus objetos bizarros, a loja de penhores
de Lourenço, com uma secretária submissa
e um segurança aparvalhado, e acima de tudo,
o timing do texto – ajudado em muito pela presença
de Selton Mello, cada vez mais investido de uma persona
construída à luz do que um dia fez Paulo
César Peréio – indicam uma leveza quase
surpreendente (mas, novamente, pensemos duas vezes antes
de falar em leveza aqui). Cúmulo da cretinice
positiva em que parecia apostar, vemos Suzana "Tiazinha"
Alves incorporando uma apresentadora de vídeo
de ginástica oitentista, que é ao mesmo
tempo graça e estilização sem culpa
nenhuma. Mas isso porque, como já devíamos
supor, a culpa está do outro lado, no Lourenço
psicótico que assiste e interage com o vídeo,
ele sim o depositário de todos os males que a
piada constante, até ali, parecia esconder.
Aquela estilização rosa-choque sexy de
Tiazinha acompanha todas as construções
do filme, da fotografia e cenários aos personagens
e suas ações. Dhalia opta pelo contorno,
e não pelo traço, quer apenas relacionar
por associação sua forma com o real, por
esse resto de verdade que ainda resiste nesta nova matéria,
transformada, estilizada enfim. Talvez por isso o impacto
da revolta da Bunda seja tão grande: tendo finalmente
descoberto que todo o interesse de Lourenço se
resumia a seu traseiro enorme, pelo qual oferece dinheiro,
a garçonete aplica um sermão moral no
protagonista, com olhos mareados e tudo. Se tínhamos
a impressão de que toda a comédia anterior
aproveitaria esse momento dramático para ridicularizar
qualquer tentativa de gravidade que invadisse seus domínios,
O Cheiro do Ralo aproveita para finalmente mostrar
a que veio. Dhalia acredita na reprimenda da garçonete,
e para ratificar seus efeitos, coloca Lourenço
na seqüência seguinte desabafando suas angústias
com a empregada da casa, "honestamente". Nesse
momento já sabemos que o filme não suporta
seu protagonista (diferença primordial entre
ele e o livro de Lourenço Mutarelli no qual se
baseia), e que não terá pudor nenhum em
executá-lo no final, como forma de punição.
Mas, ainda assim, embarcar na idéia de que a
jovem viciada, freqüente na loja de penhores e
espécie de alvo preferencial da soberania econômica
e ascendência moral de Lourenço, é
de fato o demônio (do modo que o protagonista
a chama, em off), como se nem o inferno permitisse
tamanha degradação, e por isso se encarregasse,
ele mesmo, de eliminar a concorrência, é
constranger qualquer possibilidade de relação
com o filme à pregação pura e simples.
Se quer realmente investigar os estatutos de poder na
humanidade, Heitor Dhalia precisa, antes de tudo, abdicar
do seu próprio, e assim talvez recuperar a substância
de que o termo "humanidade" aparece esvaziada
em seus filmes. "Então ninguém entra
e ninguém sai", diz Selton Mello em sua
última frase narrada, e é exatamente nessa
mentira sobre o cinema que O Cheiro do Ralo nos
quer fazer acreditar. Saiamos dessa, então.
Rodrigo de Oliveira
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