O CHEIRO DO RALO
Heitor Dhalia, Brasil, 2006

O Cheiro do Ralo começa com uma sugestão enganosa. Vemos o protagonista no trânsito de sua casa até o local de trabalho, mas a própria idéia de "trânsito", de movimento entre pólos, parece descartada. Heitor Dhalia coloca a câmera fixa, em enquadramentos rígidos, espalhada por diversos pontos desse trajeto na rua, e basta a Lourenço cruzar este quadro, restrito por seus limites, e basta à montagem organizar coerentemente estes planos, para que dali apareça esta idéia de fluidez. Mas o que fica claro, desde esse primeiro dispositivo, é que a possibilidade de qualquer fluxo está descartada, e que, mais que personagem ou narrador, Lourenço seja sempre apenas um conjunto de grãos, uma imagem a preencher o quadro sempre e sob as condições que o diretor deseje (curiosamente – ou nem tanto – o próprio Selton Mello repetiria esta mesma operação em seu curta Quando o Tempo Cair, só que agora com Jorge Loredo servindo de elemento de preenchimento). Nem propor, sem confrontar, nem muito menos dialogar, a O Cheiro do Ralo interessa, acima de tudo, submeter: seu protagonista, seus coadjuvantes, sua agenda de princípios, e tudo mais que seja frágil o bastante para tal.

Essa relação metonímica é a própria matéria-prima do drama de O Cheiro do Ralo: Lourenço toma a parte de uma mulher (sua bunda) pelo todo (um corpo, um relacionamento), quer que um olho de vidro e uma perna mecânica se transformem na memória de um pai perdido, talvez imaginado, projeta toda sua personalidade na constância implacável de um cheiro. Do mesmo modo, Dhalia enxerga seu personagem microscópico, confinado nesse drama, submetido a essa construção de imagem, como porta-voz de todo um universo de relações perversas ao qual o filme pretende atingir. Parábola da mercantilização do homem, tirada de um pequeno galpão de quinquilharias, O Cheiro do Ralo mostra, já desde cedo, sua vontade de fábula moral.

Cedo, mas não tanto assim. No primeiro terço do filme, longe de todo o peso e importância que se esperava reprisado aqui como em Nina, Dhalia se joga na comédia pura (mas sempre é preciso cuidado ao relacionar qualquer idéia de pureza ao trabalho do diretor). A sucessão de tipos e seus objetos bizarros, a loja de penhores de Lourenço, com uma secretária submissa e um segurança aparvalhado, e acima de tudo, o timing do texto – ajudado em muito pela presença de Selton Mello, cada vez mais investido de uma persona construída à luz do que um dia fez Paulo César Peréio – indicam uma leveza quase surpreendente (mas, novamente, pensemos duas vezes antes de falar em leveza aqui). Cúmulo da cretinice positiva em que parecia apostar, vemos Suzana "Tiazinha" Alves incorporando uma apresentadora de vídeo de ginástica oitentista, que é ao mesmo tempo graça e estilização sem culpa nenhuma. Mas isso porque, como já devíamos supor, a culpa está do outro lado, no Lourenço psicótico que assiste e interage com o vídeo, ele sim o depositário de todos os males que a piada constante, até ali, parecia esconder.

Aquela estilização rosa-choque sexy de Tiazinha acompanha todas as construções do filme, da fotografia e cenários aos personagens e suas ações. Dhalia opta pelo contorno, e não pelo traço, quer apenas relacionar por associação sua forma com o real, por esse resto de verdade que ainda resiste nesta nova matéria, transformada, estilizada enfim. Talvez por isso o impacto da revolta da Bunda seja tão grande: tendo finalmente descoberto que todo o interesse de Lourenço se resumia a seu traseiro enorme, pelo qual oferece dinheiro, a garçonete aplica um sermão moral no protagonista, com olhos mareados e tudo. Se tínhamos a impressão de que toda a comédia anterior aproveitaria esse momento dramático para ridicularizar qualquer tentativa de gravidade que invadisse seus domínios, O Cheiro do Ralo aproveita para finalmente mostrar a que veio. Dhalia acredita na reprimenda da garçonete, e para ratificar seus efeitos, coloca Lourenço na seqüência seguinte desabafando suas angústias com a empregada da casa, "honestamente". Nesse momento já sabemos que o filme não suporta seu protagonista (diferença primordial entre ele e o livro de Lourenço Mutarelli no qual se baseia), e que não terá pudor nenhum em executá-lo no final, como forma de punição.

Mas, ainda assim, embarcar na idéia de que a jovem viciada, freqüente na loja de penhores e espécie de alvo preferencial da soberania econômica e ascendência moral de Lourenço, é de fato o demônio (do modo que o protagonista a chama, em off), como se nem o inferno permitisse tamanha degradação, e por isso se encarregasse, ele mesmo, de eliminar a concorrência, é constranger qualquer possibilidade de relação com o filme à pregação pura e simples. Se quer realmente investigar os estatutos de poder na humanidade, Heitor Dhalia precisa, antes de tudo, abdicar do seu próprio, e assim talvez recuperar a substância de que o termo "humanidade" aparece esvaziada em seus filmes. "Então ninguém entra e ninguém sai", diz Selton Mello em sua última frase narrada, e é exatamente nessa mentira sobre o cinema que O Cheiro do Ralo nos quer fazer acreditar. Saiamos dessa, então.


Rodrigo de Oliveira

 

 





Um protagonista reduzido a um conjunto de grãos
que se movem pelo quadro (O Cheiro do Ralo).