Teen
movie de época, baile new wave na corte de
Versalhes, desfile de moda com o tema “História da vida
privada”... Os rótulos possíveis são muitos, e acabam
dizendo alguma coisa sobre Maria Antonieta, mesmo
que negligenciem o essencial. Nem propriamente um filme
histórico, e nem somente uma melancolia fashion esvaziada
de intenções políticas, o que Sofia Coppola oferece
antes de tudo é uma prova de fidelidade a seu universo
de esteta. Com este terceiro longa, ela chega a uma
mescla interessante dos dois registros anteriores: a
atmosfera evanescente de Virgens Suicidas se
reveza com a mise en scène-intensidade de Encontros
e Desencontros para produzir um filme em que a leveza
é só o atributo provisório – e dilatado na sua duração
– de uma brutalidade extra-campo, que cobra seu lugar
no fim de tudo. Se há um rigor sendo posto em prática
em Maria Antonieta, é o de fazer um filme o mais
superficial possível, de confiar aos signos plásticos
não apenas a beleza de uma sensibilidade artística que
a diretora sem dúvida alguma esbanja, mas a capacidade
do próprio filme de se apresentar como conceito, como
obra questionadora. As aparências – as superfícies –
são os únicos portadores de enunciados “confiáveis”
do filme. Todo o resto é muito impreciso e passageiro
para fornecer algum relato sólido. Coppola marginaliza
o conteúdo histórico em seu sentido convencional, concentrando-se
na reconstituição – criativa, pessoal, minimalista –
de cores e costumes de época (século XVIII? década de
80?).
Maria Antonieta é um filme de figurantes. Em
parte porque a trama – ou o que resta dela após a liquefação
narrativa a que o filme é submetido – se dá a compreender
nos rostos de anônimos, nas expressões e falas fugidias
de personagens secundários, nos cochichos que chegam
pelas laterais do filme (sobretudo na sua primeira metade).
E em parte porque o figurante (ou o “extra”) é aquele
que participa de uma cena emprestando nada mais que
seu semblante, sua aparência, ou seja, justamente o
que mais importa a Coppola neste projeto. O filme que
se cria a partir disso irá precisar, como nenhum outro,
das falas e das posturas dos coadjuvantes para dar conta
da narrativa: Judy Davis, Asia Argento, Jason Schwartzman
(o Luís XVI tornado coadjuvante em seu próprio reino),
Mathieu Amalric (singela e divertida participação na
cena do baile de máscaras), Steve Coogan... todos menos
Kirsten Dunst devem fazer a história andar. A ela, protagonista,
é reservado um lugar de pura presença luminosa – nada
de invasões psicológicas, apenas ações que buscam partilhar
conosco os afetos da personagem. Isso rende ao filme
um aspecto insólito e até mesmo cool. Poses e
sensações se espalham por seu miolo, que transcorre
como uma brisa, já que as elipses, mesmo quando suprimem
meses ou até anos, são sempre suaves. Esse formato elíptico
suscita também uma indefinição temporal de todo conveniente
à diegese, que opera uma espécie de pregueamento histórico
de hedonismo e decadentismo (sinta-se o espectador conectado
aos livros de História ou a uma festa temática anos
80, ambos os cenários são válidos pro filme).
Mas o estilo posado é para ser visto com cuidado, pois
Coppola é também uma esteta que cultiva um certo desequilíbrio,
uma perda de controle sobre o material do filme, um
transbordamento da cena. Se em Encontros e Desencontros
havia aquela cena do karaokê para nos avisar desse
transbordamento, dessa guinada sentimental, em Maria
Antonieta o hype foi amortecido. Boa parte
do filme é constituída de elementos puramente plásticos
que se proliferam em detalhes, efeitos de escritura
não necessariamente implicados pela demanda narrativa,
gerando uma falsa impressão de que Maria Antonieta
existe em função do exercício de um estilo, ou
de uma precoce construção em abismo. Precisamente nesse
ponto o jogo de superfícies impõe sua dificuldade: como
alcançar a força e a fineza de uma reflexão sobre o
poder, a política e tudo aquilo que está subjacente
no deslumbre visual, na frivolidade, nas músicas? Sob
esse prisma, o projeto não pode ser taxado nem de fracassado
nem de brilhante.
Sofia Coppola sacrifica o enredo em favor de insistências
autorais? Sim e não. Algumas recorrências estéticas
(a exemplo do tipo de utilização da trilha sonora) e
alguns motivos visuais parecem de fato preceder qualquer
destino narrativo ou qualquer construção de sentido
dentro do filme. É assim que vemos a cineasta se reatar
temática e estilisticamente a seus trabalhos anteriores:
por trás do reflexo do vidro da carruagem, vemos o rosto
de Maria Antonieta observando a paisagem e refazendo
a pose de uma jovem tomada na sua solidão em relação
ao mundo incompreensível que a cerca, exatamente como
em Encontros e Desencontros (saem as luzes infinitas
de Tóquio, entram os jardins infinitos de Versalhes);
banhada pelo sol da tarde ou pela sombra de uma árvore,
Kirsten Dunst reencontra sua personagem de Virgens
Suicidas, desfrutando um lirismo às raias da morbidez.
A necessidade de assinatura, entretanto, não parasita
o filme. Se Maria Antonieta passa o tempo quase todo
sorrindo para seu destino fatal, e se por ventura nós
mesmos esquecemos o que a aguarda, há o momento em que
a História bate na porta e impõe sua participação à
força, momento extraordinário que obriga toda uma reavaliação
do que tinha sido mostrado até ali. Versalhes era uma
festa, mas Paris definitivamente não era. Apesar da
queda de popularidade que os gastos abusivos e as declarações
controversas (boatos?) acarretaram a Maria Antonieta,
nada previa aquilo no filme, e a chegada do povo a Versalhes
é um golpe abrupto. É uma segunda perda de inocência
para a personagem, em nada aliviante como havia sido
a primeira (lembrar dela deitada na grama, sorrindo
após perder a virgindade). A História vaza do fora-de-campo
e se instala violentamente no filme, ainda que permaneça
como um zumbido de fundo – a exemplo dos gritos da turba
que quer invadir o castelo assombrando o silêncio perturbador
do jantar do casal real. Maria Antonieta, então, com
uma graça e uma tristeza inesquecíveis, vai à sacada
oferecer sua cabeça à guilhotina, ou melhor, à História.
Antes da reviravolta histórica, o tom de efemeridade
e hedonismo se rivalizava com um cotidiano de protocolos
estúpidos, por vezes malignos. No limiar das revoluções
burguesas em marcha, o filme aborda uma era pré-tablóide,
mas na qual a falta de privacidade, o acesso deturpado
aos bastidores da vida de uma celebridade (pois Maria
Antonieta é exatamente isso no filme) já é aspecto constituinte
do seu dia-a-dia. Maria Antonieta é mostrada num estado
de curiosa e proposital leviandade em relação a seu
papel político: adolescente rica imersa num aquário
multicolorido (mais para As Patricinhas de Beverly
Hills do que para Segundas Intenções), vivendo
uma ficção ancorada tão-somente a suas pulsões e seus
êxtases momentâneos, totalmente desconectada do sentido
histórico a que seu cargo está destinado. Sofia Coppola
extrai disso um bonito filme, pleno de luz e de vitalidade
– mas no qual se infiltra, como reverso sombrio, o desespero
mudo da História.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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