Um dos mais incríveis momentos
de A Conquista da Honra trata-se das imagens
da chegada dos americanos à praia da ilha de Iwo Jima
com a câmera dentro das “cavernas” japonesas; este olhar
“emoldurado” pelos buracos dos esconderijos é sem rosto
e silencioso (vemos os americanos se aproximarem através
do buraco e ao redor só existe a escuridão da caverna
e, além do olhar mediado pela câmera, nenhum indicio
dos corpos ou das vozes dos japoneses). A espreita e
o silêncio deste momento antecedem o primeiro ataque
dos japoneses aos americanos, em que a câmera já está
do lado de fora e soldados americanos são trucidados
em meio ao tiroteio nipônico.
Em Cartas de Iwo Jima, filme japonês sobre a
mesma batalha, este momento primeiro da invasão também
é filmado por Clint Eastwood. Depois de dias de bombardeio
aéreo americano sobre a ilha, acontecimento que fragiliza
a base de guerra japonesa, a tropa americana finalmente
chega à costa e o exército japonês se prepara para a
defesa. Eles estão naqueles mesmos lugares que o filme
americano sugere, mas agora têm rostos, armas e vozes.
Neste momento de tanta importância e tensão para o fato
histórico e para ambos os filmes, o que temos não são
versões do fato, não são dois lados de uma mesma coisa,
mas o mesmo lugar e o mesmo instante. Estes planos,
em A Conquista da Honra, para além da força das
imagens “enigmáticas” e do que eles representam para
o filme isoladamente, são uma nuance de extrema importância
para este projeto de Clint Eastwood como um todo, por
evocar, mesmo que não de forma explícita, o “outro”
filme, o que está por vir (no Brasil, Cartas de Iwo
Jima foi lançado duas semanas após A Conquista
da Honra). Mas sem chamá-lo de “outro”, pois, ao
menos neste ponto, para ambos os filmes, é exatamente
no mesmo lugar que a câmera do diretor está – não que
isto signifique que ela filma da mesma forma.
Este detalhe que vem por imagens nos fala um pouco da
complexidade do cinema de Clint, que, no caso desses
dois filmes, é muito mais do que mostrar versões, “dois
lados distintos do mesmo fato histórico”, colocá-los
como campo e contracampo a partir de um mesmo cinema.
Para ele, trata-se de buscar memórias afetivas evocadas
a partir de um fato marcante que se relaciona não só
com a História, mas com certas questões de cada sociedade
(americana e japonesa) e também, principalmente, com
aqueles seres humanos diretamente envolvidos.
É desta forma que nos chega Cartas de Iwo Jima,
filme bivitelino de Eastwood ao lado de A Conquista
da Honra. E “ao lado” não significa frente a, pois
não se trata de confronto, resposta ou complementação;
eles partem de dramaturgias e encenações distintas e
envolvem questões diversas, que dizem muito respeito
ao pais que cada filme representa. São existências auto-suficientes,
que, ao se construírem, demonstram marcas muito próprias,
embora originem filmes irmãos dentro da filmografia
do cineasta, por compartilharem um certo âmago que os
coloca lado a lado, que envolve uma memória sentimental
daqueles homens, trabalhada a partir daquele espaço
(ilha de Iwo Jima) pelo olhar de Clint, que adere aos
olhares, muito sincero e generoso.
O combate, no filme americano, se passa em flashback,
é lembrança factual, afetiva e sensória de personagens.
Em Cartas de Iwo Jima, a batalha também é evocada
a partir do presente, mas não de memórias narradas,
lembradas, e sim da memória arqueológica de um país,
que se forma de pequenos pedaços de relatos de homens
que podem nem mais estar vivos; seus pequenos pedaços
são cartas nunca enviadas a seus queridos que não foram
à Guerra, encontradas por um grupo de escavadores que
volta à ilha para procurar resquícios da batalha. Assim,
é em um grande e único flashback (que a princípio
não é íntimo, pessoal, mas múltiplo, memória histórica
formada por pedaços de memórias pessoais sobre a experiência
da guerra), que o filme nos conta sobre a vivência japonesa
daquele momento.
As cartas dos soldados japoneses, ao serem escritas,
encontram-se numa espécie de limbo espaço-temporal,
pois ao mesmo tempo em que relatam algo de seu momento
presente – a guerra –, trazem à tona momentos passados
dos personagens, que pretendem estabelecer algum contato
com seus entes, na esperança que as cartas cheguem a
salvo. Assim, ao escreverem as cartas ou falarem sobre
sua vida civil aos companheiros de batalha, alguns personagens
do filme trazem à narrativa momentos passados de suas
vidas, em flashbacks. Essa estrutura, contudo,
não pretende necessariamente explicar situações ou dar
respostas a fissuras narrativas, mas encarrega-se de
deixar o filme muito próximo de seus personagens, da
vida de cada um, dos sentimentos, das lembranças, dos
traumas, das saudades, dos afetos.
Ainda nos flashbacks dos personagens faz-se menção
à relação (que pode ser conflituosa) de valores envolvendo
o indivíduo e a cultura de uma pátria (general Kuribayashi
quando perguntado por amigos americanos se defenderia
seu País caso este entrasse em guerra com os EUA; Saigo
ao ser convocado ao exército, demonstrando, junto à
sua mulher grávida, resistência à convocação; Shimizu
ao desobedecer a ordem de seu superior militar de matar
um cachorro e por isto ser expulso do Kempeitai – policia
secreta japonesa). Esta relação o filme observa, relata,
respeita, tenta entender. Tanto que não é apenas nos
flashbacks que tal questão surge, ela permeia
o filme em muitos momentos da batalha, quando os soldados
são postos frente a valores de honra e patriotismo cobrados
por seus superiores (pelo País), abraçando-os ou confrontando-os,
mesmo que sem heroísmo pomposo, timidamente, por um
“herói” um tanto quanto desajeitado, “preguiçoso” e
reclamão – porque na verdade só quer estar perto de
sua família, conhecer sua filha recém-nascida.
É Saigo, junto ao general Kuribayashi, que de forma
sentimental (como Clint bem sabe trabalhar) tomamos
como herói e não é apenas nossa simpatia para com eles
que existe aí, é também uma admiração e simpatia entre
os dois personagens que os vai aproximando ao longo
do filme. Ao fim ainda acompanhamos Saigo, carregado
de danos que a guerra lhe causou, frágil, colocado ao
lado dos americanos feridos, cansado como o solo daquela
ilha. Um dos planos mais belos e emocionantes do filme
se dá nesse cansaço, nesse fim: o sol se põe em Iwo
Jima e Saigo, deitado sobre uma maca, tem seu rosto
exposto de perto, olhado de perto pela câmera enquanto
retorna seu olhar para esta. As paisagens em bonitos
planos gerais da ilha também são olhadas com carinho
pelo cineasta e aí existe uma bela cumplicidade. É que
Eastwood não precisa ser japonês para perceber aquele
espaço, os resquícios de vida, de memória, de sentimentos
que a História e os lugares carregam, a importância
que os valores culturais e os conflitos dos mesmos exercem
para o íntimo de cada pessoa e para as relações humanas,
seja abordando os EUA, seu país de origem, ou abraçando
questões de uma outra nação, um Japão inimigo em guerra
e irmão em humanidade, em busca por honra, em meio à
História, às memórias e aos afetos.
Luisa Marques
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