E
então você acreditou que, depois de Deuses
e Monstros e do relatório Kinsey,
cair um musical nas mãos de Bill Condon significaria
necessariamente um toque refinado, uma atenção
maior ao detalhe, enfim, um registro menos ramerrame
do que a impessoal, até inepta, encenação
dos musicais oscarizáveis dos últimos
anos (pensamos, evidentemente, em Chicago)?
Tudo bem, era uma crença louvável, mas
Dreamgirls não a sustenta sequer por dez
minutos. OK, a cor é forte, a palheta cromática
ressalta a pele negra e lembra o trabalho de fotografia
em Ray, mas tudo no filme chama o espalhafato
e nele se instala. Nenhuma apreensão mais detida,
nenhum enfoque em um drama: os fiapos de estrutura
narrativa escoam tão rápido que por vezes
pensamos que estamos diante de um filme de vavnguarda
à maneira de Raul Ruiz, apenas para em seguida
nos depararmos com o fato de que o filme não
se presta a muito mais que um desfile de lantejoulas
e de amostras de técnica vocal que pouco têm
a ver com expressividade. A lógica de Dreamgirls
e nisto pode se encontrar talvez alguma influência
de Moulin Rouge, o que, assim colocado, instalaria,
quem sabe, um trend do musical pó-mó
nõ é tanto narrativa, de acompanhamento
dos dramas e das caracterizações psicológicas
dos personagens, mas uma lógica de enredo de
escola de samba. Exemplo: se fazemos um desfile sobre
abacaxis, vai ter carro alegórico sobre o Chacrinha.
É só assim que é possível
compreender a entrada de elementos tão acessórios
que em nada acrescentam à trama (grande exemplo,
os Jackson 5) ao passo que algumas elipses, delicadas
com passo de elefante, servem para "resolver"
os futuros de personagens dos quais já havíamos
perdido a rédea há muito tempo. Resta
essa mise-en-scène genérica, banal, do
corte rápido, da ubiqüidade da câmera
que, sob a pecha de filmar todos os lados e parecer
dinâmica, só revela uma esquálida
criatividade e uma completa descrença no colocar
de uma câmera e em como isso impulsiona uma emoção.
Sai-se de Dreamgirls como de um rolo compressor: vemos
um monte de coisa, algumas delas parecem artísticas,
mas o acavalamento, a falta de harmonia e um extremo
mau gosto revelam a completa incapacidade de criar um
mínimo de força visual ou narrativa.
Ruy Gardnier
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