Houve sempre nos filmes
de Lírio Ferreira um sentido muito forte de reafirmação
de um certo passado cultural e popular do país,
algo que na passagem de Baile Perfumado para
Árido Movie se anuncia primordialmente
com o retorno a dois momentos fundantes da idéia
que do Brasil se criou, no século passado, a
literatura regionalista dos anos 30 e o cinema moderno
dos anos 60. Retorno, e não revisão: repetiam-se
certas fórmulas anteriores, aplicadas à
contemporaneidade sem qualquer critério, como
se a simples aproximação parasitária
de um pensamento canônico pudesse fazer reagir
naturalmente, no interior dos filmes, os elementos ali
dispostos em nome dessa recuperação cultural.
O projeto de Cartola tem essa mesma direção,
mas se nos filmes anteriores era dela que se partia,
aqui ela será o fim.
Assim, a figura do sambista carioca é tomada
como uma espécie de sumário da tradição
popular brasileira, naquilo que todos esses ícones
culturais teriam de recipientes (voluntários
e conscientes, ou não) dessa nossa identidade
forjada na comunicação entre expressões
diversas. A trajetória de Cartola se inicia pelo
fim, e sobre as imagens em preto e branco de seu funeral,
ouvimos Jards Macalé recuperar a primeira frase
das Memórias Póstumas. Importa
para o filme que Cartola tenha nascido no ano da morte
de Machado de Assis, e que a estrutura narrativa que
adote (do funeral se retorna ao nascimento do sambista,
para que então se avance linearmente) esteja
ligada à de Brás Cubas, mas não
apenas como uma curiosidade que se transforme em matriz
dramática. Lírio Ferreira e Hilton Lacerda
querem, de fato, colar a experiência machadiana
à de Cartola, nem diminuir uma da outra, nem
muito menos sobrepor, mas fazê-las dialogar. Os
dois foram, afinal, definidores daquilo que percebemos
hoje como cultura brasileira.
Definidor também é o próprio cinema,
e se a arqueologia natural desse tipo de projeto já
inclui a recuperação de imagens de arquivo
que ajudem a construir este personagem perdido, Cartola
buscará também na história do audiovisual
brasileiro este diálogo formador. São
sim as imagens das participações de Cartola
em filmes e programas de tevê, mas também
aquelas de seus companheiros de geração
(Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça), e ainda
outras onde não haja qualquer ligação
direta, trechos da memória visual do país
que, retirados de seu contexto e postos em comunicação,
dizem tanto sobre si quanto sobre aquilo que ajudaram
a construir enquanto idéia de cultura.
O que poderia sugerir um biografismo simples, revelando
informações e histórias de que
não se tinha conhecimento, construindo esse Cartola
menos mítico, mais humano, acaba se frustrando
diante de várias negativas do filme em mergulhar
e expor os detalhes dessa personalidade. Ferreira e
Lacerda insistem, na verdade, na própria mitologia
já estabelecida, desfazendo seu caráter
conformador de sentidos (a grande diferença do
que Árido Movie faz com o Cinema Novo,
por exemplo). Mito, mas talvez sem a real dimensão
e profundidade de sua própria história,
e desse modo colar à Cartola todo o Humberto
Mauro, Glauber Rocha, Carlos Manga e Julio Bressane
que se tem disponível, e também os clipes
de Welles e Carmen Miranda com um bombardeio da II Guerra,
ou a colagem de Mutantes, Roberto Carlos, Pelé
e uma tropa militar da ditadura, tendo partido, lá
no começo, do pecador original que foi Machado,
é ratificar, agora “com provas”,
a imanência do sambista sobre nossa formação
cultural, um papel de formador maior do que a falta
de memória e perspectiva histórica acabou
por perder.
Neste filme, Cartola sempre é. Se As
Rosas Não Falam aparece montada como tema
eterno e de domínio público, que sai da
flauta cretina de um músico andino numa praça
para Beth Carvalho ao violão, e depois para Altemar
Dutra diante duma orquestra em um show de tevê,
até que finalmente se complete com o próprio
compositor, esta diversidade é a própria
materialização do gênio popular
pela conjugação da imagem. Há nessas
afirmações todas um risco gigantesco,
mas é dessa coragem de dizer efetivamente algo
sobre sua fonte de inspiração/atuação
que os filmes anteriores de Lírio Ferreira mais
se ressentiam. Lida-se sim com o mito, mas não
para sugar desesperadamente suas últimas forças.
Cartola tem fôlego próprio, e é
por isso que consegue, se arriscando, mas ainda assim
com muita integridade, respirar na cadência superlativa
de seu personagem.
Rodrigo de Oliveira
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