Borat parece começar a existir naquela seqüência
com a entrevista de Charlton Heston em Tiros em Columbine.
A disposição é a mesma: o retorno a um símbolo da América
branca e próspera, muito bem visto em seu tempo de glória,
mas no presente apenas a sombra mórbida daquilo que
um dia foi. Esse símbolo, combalido por anos de defesa
do conservadorismo num mundo que aparentemente crescia
em torno do seu oposto, o liberalismo, chega ao agora
como alvo fácil e bastante suscetível às investidas
de seus críticos mais radicais, já sem força e energia
o bastante para propor as batalhas verbais e físicas
que um dia se dispôs a promover, cansado demais, e já
seguro demais da justeza cega de seu ponto-de-vista,
para se digladiar uma outra vez. Sua situação é intrínseca
e evidentemente vexatória, e não importa se através
de uma agenda de propósitos bem definidos ou se pelo
simples estabelecimento de um canal de registro, o ato
de filmá-lo, a disponibilidade do olho da câmera às
suas idiossincrasias, torna a imagem daquele símbolo
inevitavelmente a imagem de seu constrangimento, de
sua diminuição.
Os dispositivos podem ser diferentes, não mais um documentário
que se construa ficcionalmente, mas uma ficção que se
disfarça de documentário, não mais uma campanha aberta
contra um alvo específico, mas a tentativa de uma certa
crônica das generalidades, não mais a figura do documentarista
como investigador perspicaz que busca na realidade os
traços confirmadores de sua crença, mas a paródia disso,
o repórter que quer se alimentar de uma realidade que
acredita ser melhor que a sua (e a de seu país originário).
No fim dessa linha, no entanto, há o mesmo desejo de
se flagrar certas convicções da América no exato momento
em que apodrecem, e uma vez ali perto, chutar este cachorro
morto, para talvez conseguir dele um último ganido hilário
de desespero. Michael Moore escondia esse sadismo vingativo
sob a nobreza indiscutível dos temas que o interessavam,
a cultura armamentista e o império bushista-republicano,
e aqui Larry Charles e Sacha Baron Cohen se despem desse
messianismo. Há uma aparente falta de compromisso com
a apenas suposta e nunca declarada agenda política que
liga todos os esquetes mockumentários entre si, e esse
desprendimento garante à Borat este passivo da
inconseqüência – permitido aqui mas negado à Moore –,
torna sua experiência a fruição de uma comédia de costumes
ligeiramente mais radical em seu diagnóstico da vida
miúda, essa mesma que serve tão bem de metonímia dos
pilares deste país: um rodeio no interior, o culto a
uma celebridade, um jantar na alta sociedade, uma viagem
adolescente de férias, aglomeração de diversos dos leit
motivs espalhados por dúzias de outros filmes, só
que agora com um pouco mais de fezes dentro do saco.
Mas o que quer Borat com tudo isso, afinal de
contas? Parece claro que o Cazaquistão aqui pouco interessa,
sendo tão somente a plataforma de lançamento para a
América, precisando conter tudo aquilo que de oposto
irá se encontrar no país desenvolvido, um Cazaquistão
sem singularidades, apenas tudo-aquilo-que-a-América-não-é.
Mas, ora, o modo de operação do repórter nos dois espaços
diversos é bastante semelhante. Sobre a terra original
são elencados uma série de dados culturais “verdadeiros”,
que Borat informa ao espectador como características
fundantes daquele meio social e histórico (a marginalidade
atroz, a sexualização de todas as relações, famílias
construídas por incesto, a pobreza como fruto da falibilidade
moral dos habitantes). Sua viagem ao país das projeções
de sucesso tem como meta o tal make benefit,
e portanto é uma viagem de absorção de novos valores.
Essa absorção, no entanto, em nenhum momento é efetiva,
ela se deixa contaminar por todas aquelas mesmas características
que Borat já trazia do Cazaquistão-fantasia, e assim
este sonhado aprendizado cultural não passa do restabelecimento
das velhas “verdades” marginais, sexuais e falíveis
de antes através do acúmulo de nova munição, e se não
mais a esposa gorda de bigode, agora a feminista de
cabelo curto e postura masculinizada, se não mais o
vizinho ganancioso, agora a classe rica do Meio Oeste:
outros personagens para as mesmas piadas. Aprender a
viver com a cartilha desta América carcomida é aprender
a viver sob o regime da deturpação, retirar as incongruências
de seu contexto e expô-las isoladas, para daí se fazer
o que bem quiser com ela (símbolo máximo dessa estratégia
é a retomada da piada do “not”, aprendida com um professor
de humor americano, e que Borat usa despropositadamente
quando é capturado pelos seguranças de Pamela Anderson:
é o americanismo típico assumido como uma reação que
não tem nada de americana, cazaque ou javanesa, mas
sim de pura gag desterritorializada).
Se de um lado temos tudo-aquilo-que-a-América-não-é,
o outro lado é fabricado como sendo somente-aquilo-que-queremos-enxergar-na-América,
e aqui, não há dúvida, a América está sobrando, não
tem nada a ver com isso. Eis a agenda de Borat:
comédia a custo zero, parasitária de certos traços anacrônicos
específicos da sociedade americana, piadas por conta
própria quando observadas por quem enxerga ali a falência
moral de uma ideologia ultrapassada, e talvez por isso
o repórter se exima de intervir na efusão espiritual
da igreja evangélica lotada, ou então oportunidades
para a aventura de um mestre de cerimônias atrevido,
como quando canta o hino nacional cazaque na melodia
do hino americano, no centro de uma arena de rodeiro
igualmente lotada: nada de uma consciência ética aguda
na relação com os objetos de interesse, que deixe nas
mãos do espectador, e não do personagem da ficção, a
escolha pelo riso diante do constrangimento evidente
de certas situações. Borat é dado a conveniências,
incrivelmente inconstante no tratamento aos diversos
episódios que acompanha, tendo na cabeça não outra vontade
que não a de exaltar o ridículo daquilo tudo.
É aí que o cultural do título original se pulveriza.
Diante da complexidade, a opção pela facilidade (é tão
mais simples fazer piada com um vendedor de armas que
indica a melhor pistola para acertar judeus, e com o
astro de cinema gagá que é padrinho da associação nacional
de atiradores, do que com aqueles que sejam capazes
de entrar no jogo e combater o sarcasmo e a ironia com
a mesma consciência e fôlego do humorista/documentarista).
A tentativa de sumário se perde, a cultura americana,
e não só seus ruídos mais incômodos, nem mesmo é arranhada.
Sobram os solos de comédia, e eles são muitos e bastante
interessantes (a substituição do ideário louro e peitudo
de Pamela Anderson pela prostituta negra e roliça sendo
o melhor deles). Mas no quesito “ó comédia-rainha, faz
do meu corpo um instrumento do teu prazer e de tua glória”
já temos há muito tempo, e com uma histeria muito menos
programática, o grupo de malucos em torno do Jackass.
Borat é a comédia física, estúpida e grosseira,
escondida dentro do armário da conseqüência. E assim,
ali dentro, se empobrece, domável e auto-indulgente.
Rodrigo de Oliveira
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