Batismo de Sangue, splatter
movie da temporada. E quem disse que faltava ao
cinema brasileiro fazer filmes de gênero? Temos aqui
um exemplar perfeito, não apenas de um gênero, mas de
um subgênero específico do cinema de terror que se esmera
em filmar de forma impactante sangue escorrendo, membros
dilacerados, dores intoleráveis encenadas com requinte
state of the art. Sentando perto da tela, convém
nem vestir branco, porque pode espirrar, e mancha de
sangue é bem difícil de sair da roupa. É preciso notar
o extremo apuro com que Helvécio Ratton abnegadamente
estetiza cada choque elétrico, como a edição de som
cria barulhos impactantes para que possamos sentir cada
porrada com intensidade surpreendente. Estamos diante
de um verdadeiro filme de exploitation, que ainda
tem o mérito de tentar transformar toda essa violência
gráfica, paradoxalmente, em veemência anti-tortura e
libelo contra as injustiças da ditadura, fazendo o espectador
acompanhar de forma muito confortável o espetáculo,
com a firme crença que toda a sangueira exibida na tela
não corresponde às suas pulsões sádicas nem a um desejo
mesquinho de ser entretido com tripas, mas simplesmente
a um verismo documental e à luta pela liberdade. Um
pouco como se Jogos Mortais se mesclasse com
Diários de Motocicleta em seu pretenso humanismo,
como se Herschell Gordon Lewis tivesse alguma propensão
para Ken Loach: no fundo, o que conta é criar um entretenimento
de fatura tradicional com suplemento de alma para pessoas
sensíveis (ou "conscientes"). Ao fim das contas, o que
interessa a esse cinema é apenas o bom e velho feelgood,
trate ele do que tratar.
E não se está, com Batismo de Sangue, tratando
de uma coisa qualquer, de um episódio prosaico ou de
uma fantasia puramente ficcional. Ao contrário, estamos
diante de um episódio sério da história brasileira recente,
relato literário e história pessoal de um honroso intelectual
brasileiro, o Frei Betto. Acontecimento notável, cheio
de importância por si mesmo e por tudo que evoca: os
"grandes temas" da luta contra a desigualdade, pela
justiça, pela liberdade, pela crença num mundo melhor.
Um acontecimento filtrado através de uma história singular,
a de um frei que, por não conseguir conviver com as
terríveis lembranças das sessões de tortura, tirou sua
própria vida enforcando-se numa árvore. Há de se supor
que a um tema delicado como esse o filme deveria dar
um tratamento igualmente delicado, mais atento ao drama
humano do que aos efeitos de espetáculo e à "enxutez"
da narrativa, mais atento à sensibilidade de um espírito
do que ao prosseguimento pedestre das informações e
das ações. Nesse aspecto, o filme desabona qualquer
esperança já na primeira cena, em que a preparação para
a morte é filmada numa sucessão de planos meramente
informativos, nem castos o suficiente para fazer nascer
o candor (Bresson em Mouchette, por exemplo),
nem frios o suficiente para fazer nascer a crueldade
a partir do vazio de significação que uma decisão extrema
dessas provoca (Não Matarás de Kieslowski). Como
se uma morte pudesse ser encenada com propriedade da
mesma forma como se encena qualquer outra coisa, pela
simples descrição material "do que está acontecendo".
A partir daí, o filme procede "objetivamente" através
da narrativa, filmando mais o desenrolar da história
do que as emoções e tensões em seu corpo-a-corpo. Não
é só que falte um gosto particular às cenas. É que existe
aí uma oficialidade tamanha que tenta dar uma aura de
imponência ao relato histórico, mas que só funciona
para dar ao filme uma impessoalidade cretina que, no
fundo, é incapaz de dar conta da dimensão humana de
tudo que está ali envolvido: os encontros com Marighella,
as dúvidas ideológicas entre a militância política e
a vida religiosa (as próprias tensões entre duas ideologias
distintas da fé católica), a denúncia de um milico infiltrado
numa missa, as condições dos personagens aprisionados,
a construção psicológica dos chefes e dos carcereiros,
nada disso ganha corpo para além das simples necessidades
do esqueleto de estrutura dramática. Cada cena, percebe-se
claramente, serve apenas para estabelecer situação x
ou personagem y, e de lá parte para outra coisa. Instalação
num mundo, tempo lógico das situações e dos personagens?
Nada disso. Batismo de Sangue prefere seguir
o tempo genérico da eficiência (ou do que se supõe ser
eficiência) narrativa e, não atribuindo singularidade
a nada daquilo que se vê na tela, transforma um episódio
único em um (mal) construído sentimento de indignação,
ademais intercambiável entre filmes recentes. Há um
Olga, há um Zuzu Angel em Batismo de
Sangue, com toda sua veemência prêt-à-porter
e sua narrativa que jamais se deixa contaminar pelo
que é narrado. Frei Betto, Frei Tito e tutti quanti
acabam aprisionado no rol das generalidades.
Mas é quando o filme trata das cenas mais climáticas,
seja nas tão comentadas cenas de tortura quanto na progressão
da paranóia do Frei Tito ao final do filme, que Batismo
de Sangue sai da estupidez genérica e entra no terreno
da estupidez particular. No primeiro caso, o das cenas
de tortura, por utilizar de uma estratégia de alto impacto
(como os publicitários falam em campanhas e imagens
de alto impacto) como se fosse necessário um máximo
de gritos, pancadas e choques elétricos para fazer o
espectador acordar de sua percepção anestesiada. Como
se, aliás, fosse o "alto impacto" um instrumento de
criação de liberdade no espectador, e não apenas mais
um aumento na dose da anestesia. Amplificando uma situação,
Batismo de Sangue quis chegar à denúncia mas
aportou apenas na seara do gore. E gore
não assumido é sempre ridículo. Já nas cenas finais,
de transtornos, paranóias e delírios de Tito, o filme
pede o prumo totalmente, vampirizando seu personagem
pelo exterior sem nunca conseguir propriamente acompanhá-lo
em seu próprio tempo. Sem amparo cronológico ou mesmo
narrativo que ofereça proteção à fluência (afinal, é
só a progressão de um mal psicológico), essas seqüências
tornam-se cansativas, e aí até a eficiência como produto
mercantil é colocada em xeque, jogando a pá de cal que
faltava ao projeto. Batismo de Sangue, o filme,
já nasceu como um projeto paradoxal – satisfazer os
desejos mais primários do público a partir de um material
que em seu ponto de partida mais se prestaria a desafiá-lo
–, e rapidamente caiu vítima de seu paradoxo íntimo,
o duplo vínculo de ser ao mesmo tempo contundente e
cativante, ao mesmo tempo ser qualquer um e ser diferente,
ser ao mesmo tempo tudo e nada. Como nada, o filme faz
bem seu trabalho, mas nos momentos que deseja ser tudo
ele não consegue ser nada além de infame.
Ruy Gardnier
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