BATISMO DE SANGUE
Helvécio Ratton, Brasil, 2006

Batismo de Sangue, splatter movie da temporada. E quem disse que faltava ao cinema brasileiro fazer filmes de gênero? Temos aqui um exemplar perfeito, não apenas de um gênero, mas de um subgênero específico do cinema de terror que se esmera em filmar de forma impactante sangue escorrendo, membros dilacerados, dores intoleráveis encenadas com requinte state of the art. Sentando perto da tela, convém nem vestir branco, porque pode espirrar, e mancha de sangue é bem difícil de sair da roupa. É preciso notar o extremo apuro com que Helvécio Ratton abnegadamente estetiza cada choque elétrico, como a edição de som cria barulhos impactantes para que possamos sentir cada porrada com intensidade surpreendente. Estamos diante de um verdadeiro filme de exploitation, que ainda tem o mérito de tentar transformar toda essa violência gráfica, paradoxalmente, em veemência anti-tortura e libelo contra as injustiças da ditadura, fazendo o espectador acompanhar de forma muito confortável o espetáculo, com a firme crença que toda a sangueira exibida na tela não corresponde às suas pulsões sádicas nem a um desejo mesquinho de ser entretido com tripas, mas simplesmente a um verismo documental e à luta pela liberdade. Um pouco como se Jogos Mortais se mesclasse com Diários de Motocicleta em seu pretenso humanismo, como se Herschell Gordon Lewis tivesse alguma propensão para Ken Loach: no fundo, o que conta é criar um entretenimento de fatura tradicional com suplemento de alma para pessoas sensíveis (ou "conscientes"). Ao fim das contas, o que interessa a esse cinema é apenas o bom e velho feelgood, trate ele do que tratar.

E não se está, com Batismo de Sangue, tratando de uma coisa qualquer, de um episódio prosaico ou de uma fantasia puramente ficcional. Ao contrário, estamos diante de um episódio sério da história brasileira recente, relato literário e história pessoal de um honroso intelectual brasileiro, o Frei Betto. Acontecimento notável, cheio de importância por si mesmo e por tudo que evoca: os "grandes temas" da luta contra a desigualdade, pela justiça, pela liberdade, pela crença num mundo melhor. Um acontecimento filtrado através de uma história singular, a de um frei que, por não conseguir conviver com as terríveis lembranças das sessões de tortura, tirou sua própria vida enforcando-se numa árvore. Há de se supor que a um tema delicado como esse o filme deveria dar um tratamento igualmente delicado, mais atento ao drama humano do que aos efeitos de espetáculo e à "enxutez" da narrativa, mais atento à sensibilidade de um espírito do que ao prosseguimento pedestre das informações e das ações. Nesse aspecto, o filme desabona qualquer esperança já na primeira cena, em que a preparação para a morte é filmada numa sucessão de planos meramente informativos, nem castos o suficiente para fazer nascer o candor (Bresson em Mouchette, por exemplo), nem frios o suficiente para fazer nascer a crueldade a partir do vazio de significação que uma decisão extrema dessas provoca (Não Matarás de Kieslowski). Como se uma morte pudesse ser encenada com propriedade da mesma forma como se encena qualquer outra coisa, pela simples descrição material "do que está acontecendo".

A partir daí, o filme procede "objetivamente" através da narrativa, filmando mais o desenrolar da história do que as emoções e tensões em seu corpo-a-corpo. Não é só que falte um gosto particular às cenas. É que existe aí uma oficialidade tamanha que tenta dar uma aura de imponência ao relato histórico, mas que só funciona para dar ao filme uma impessoalidade cretina que, no fundo, é incapaz de dar conta da dimensão humana de tudo que está ali envolvido: os encontros com Marighella, as dúvidas ideológicas entre a militância política e a vida religiosa (as próprias tensões entre duas ideologias distintas da fé católica), a denúncia de um milico infiltrado numa missa, as condições dos personagens aprisionados, a construção psicológica dos chefes e dos carcereiros, nada disso ganha corpo para além das simples necessidades do esqueleto de estrutura dramática. Cada cena, percebe-se claramente, serve apenas para estabelecer situação x ou personagem y, e de lá parte para outra coisa. Instalação num mundo, tempo lógico das situações e dos personagens? Nada disso. Batismo de Sangue prefere seguir o tempo genérico da eficiência (ou do que se supõe ser eficiência) narrativa e, não atribuindo singularidade a nada daquilo que se vê na tela, transforma um episódio único em um (mal) construído sentimento de indignação, ademais intercambiável entre filmes recentes. Há um Olga, há um Zuzu Angel em Batismo de Sangue, com toda sua veemência prêt-à-porter e sua narrativa que jamais se deixa contaminar pelo que é narrado. Frei Betto, Frei Tito e tutti quanti acabam aprisionado no rol das generalidades.

Mas é quando o filme trata das cenas mais climáticas, seja nas tão comentadas cenas de tortura quanto na progressão da paranóia do Frei Tito ao final do filme, que Batismo de Sangue sai da estupidez genérica e entra no terreno da estupidez particular. No primeiro caso, o das cenas de tortura, por utilizar de uma estratégia de alto impacto (como os publicitários falam em campanhas e imagens de alto impacto) como se fosse necessário um máximo de gritos, pancadas e choques elétricos para fazer o espectador acordar de sua percepção anestesiada. Como se, aliás, fosse o "alto impacto" um instrumento de criação de liberdade no espectador, e não apenas mais um aumento na dose da anestesia. Amplificando uma situação, Batismo de Sangue quis chegar à denúncia mas aportou apenas na seara do gore. E gore não assumido é sempre ridículo. Já nas cenas finais, de transtornos, paranóias e delírios de Tito, o filme pede o prumo totalmente, vampirizando seu personagem pelo exterior sem nunca conseguir propriamente acompanhá-lo em seu próprio tempo. Sem amparo cronológico ou mesmo narrativo que ofereça proteção à fluência (afinal, é só a progressão de um mal psicológico), essas seqüências tornam-se cansativas, e aí até a eficiência como produto mercantil é colocada em xeque, jogando a pá de cal que faltava ao projeto. Batismo de Sangue, o filme, já nasceu como um projeto paradoxal – satisfazer os desejos mais primários do público a partir de um material que em seu ponto de partida mais se prestaria a desafiá-lo –, e rapidamente caiu vítima de seu paradoxo íntimo, o duplo vínculo de ser ao mesmo tempo contundente e cativante, ao mesmo tempo ser qualquer um e ser diferente, ser ao mesmo tempo tudo e nada. Como nada, o filme faz bem seu trabalho, mas nos momentos que deseja ser tudo ele não consegue ser nada além de infame.

Ruy Gardnier