A
última imagem de À Procura da Felicidade mostra
o horizonte de São Francisco a partir do alto de uma
colina. Golden Gate ao fundo, a arquitetura típica da
cidade emoldurando a descida até mar, o mesmo bairro
rico que pareceu sempre tão distante das possibilidades
de Chris Gardner, mas por onde agora ele caminha com
uma sensação indisfarçável de pertencimento. A conversa
divertida com seu filho é interrompida por dois letreiros,
fundo preto com letras brancas, que nos informam que
a felicidade fora de fato encontrada por eles dois:
sucesso na firma de corretagem de ações, conseqüente
abertura de uma firma própria, e depois a sonhada cifra
milionária. No intervalo entre uma informação e outra,
o Chris da ficção cruza com o Chris da realidade, aquele
em cuja história o filme se inspira, e há um reconhecimento
mútuo, uma satisfação compartilhada. O personagem real
sai por cima, enquanto o personagem fictício desce a
ladeira com o filho, até que desapareça de vista. Sobra
então, como no começo da cena, apenas o horizonte da
cidade.
Ali, naquela cena final, o filme de Gabriele Muccino
encontra as duas maiores razões de sua existência, e
elas são radicalmente opostas. Primeiro concretiza-se
a promessa do título, e para isso servem os letreiros
e a aparição do Chris Gardner real, mas logo em seguida
esse encontro com a felicidade é suplantado por tudo
aquilo que sustentara o filme até então, e a derradeira
imagem não é a do objetivo alcançado, mas sim o símbolo
do trajeto percorrido até ele: o horizonte de São Francisco,
porque À Procura da Felicidade não conseguiria
viver se não existissem os horizontes à sua frente.
Só foi possível construir todo o drama a partir dessa
estratégia de acumulação do desespero – onde sempre
se chegava ao fundo do poço apenas para ter certeza
de que ainda havia muito mais lama na qual se afundar
– porque cada plano do filme já estava investido de
um “este é só um momento ruim necessário para que a
salvação do final pareça ainda mais gloriosa”. Muccino
nunca encena a dúvida desse desfecho, não há seqüência
do filme em que o sofrimento do protagonista sugira
a fatalidade da ruína: sabemos desde sempre que toda
aquela dor tem um encontro marcado com a felicidade.
Então por que não ir direto a ela, por que encurtar
tanto o momento em que se está, finalmente, vivendo
a alegria da meta atingida? Se a felicidade é um tiro
certo, por que então fazer um filme sobre sua procura?
Primeiro porque essa é uma garantia dada ao povo americano,
desde o documento de Declaração da Independência. Como
citado recorrentemente por Chris Gardner ao longo do
filme, Thomas Jefferson colocou lá a procura da felicidade
como um direito do cidadão, direito tão importante e
valioso quanto a liberdade e a autodeterminação. É como
se a América estivesse destinada, desde sua “certidão
de nascimento”, a ser a terra da perseguição do sonho,
e nunca do sonho propriamente dito. Aqui se justifica
toda uma cultura da auto-ajuda que se formou no país,
da qual À Procura da Felicidade é um produto
dos mais sofisticados. Nada dos programas de “siga estes
passos”, dos livros que enumeram as qualidades a serem
almejadas e os defeitos a serem descartados (é uma estrutura
de auto-ajuda que não funciona mais, ou por acaso o
personagem de Greg Kinnear em Pequena Miss Sunshine
conseguiu vender a idéia de seu programa motivacional?).
O que se busca aqui é a dramatização do caminho para
o sucesso, o romance da conquista do paraíso, e nisso
é notável que a narração em off de À Procura da Felicidade,
em seu tom pesaroso e sua análise crítica condoída das
imagens que sublinha, se aproxime tanto do dispositivo
novelesco/jornalístico usado por Oprah Winfrey nas “reportagens
da vida real” de seu programa.
É o elogio do “sempre em frente”, uma variante de mercado
do positivismo, onde tudo o que se espera de seus protagonistas
é respeito à ordem, tudo o que se pode garantir a eles
é o rumo do progresso. A nova possibilidade aqui é a
de não mais ser destinado ao sucesso por alguma instância
superior, mas a de construir-se, pelo suor e pelo trabalho,
como um dos eleitos. É isso que destaca Chris Gardner
da multidão de pobres em que se encontra momentaneamente
misturado. Essa, aliás, nem é a palavra certa: há uma
clara distinção entre a massa de sem-teto e miseráveis
dos abrigos de caridade e as figuras de Chris e seu
filho, sempre melhor iluminadas, com roupas mais claras
e caráter mais íntegro que os outros.
Assim, a história que supostamente trataria da ascensão
social de um pobre tem em Chris, na verdade, apenas
um rico ainda não aflorado. Sua medida de “felicidade”
é sair chorando do escritório depois de saber que conseguiu
o disputadíssimo emprego e então, com todas as honras
da pressa e do terno-e-gravata, se misturar à massa
de yuppies que avança em bloco pela rua – essa
sim a turma a qual ele pertence, e na qual consegue
finalmente se misturar, se equivaler. Aquilo que sobra,
aqueles fracos demais para enfrentar e vencer a vida,
estes filhos submissos de uma política governamental
desastrada, mas, no fundo, apenas derrotados naturais
e incontornáveis, bem, sobre eles nunca se faria um
filme.
Do mesmo modo que nunca se poderia fazer um filme sobre
aquele momento final no bairro rico de São Francisco,
sobre a experiência plena do sucesso alcançado, porque
ninguém mais sabe (ou se arrisca a) filmar a felicidade.
É o trágico encontro do cinema americano com o destino
traçado para o país desde a Declaração da Independência,
constatação da incapacidade de se admitir a felicidade
e o bem-estar como parte da vida presente, e não apenas
como objeto do futuro. Por isso a estrutura narrativa
clássica que termina sempre com um final feliz: ninguém
em Hollywood sabe o que fazer depois que se chega à
felicidade, o manual não ensina como filmar uma cena
em só hajam sorrisos, e não lágrimas, e por isso só
resta mesmo terminar os filmes exatamente nesse momento
(o filme-fantasma dessa incapacidade segue sendo As
Duas Faces da Felicidade, de Agnès Varda, onde a
pergunta maior não é se o casal protagonista sobreviverá
ou não à entrada de uma amante na história, se a morte
da esposa foi suicídio ou acidente, se a amante conseguirá
ou não substituir a mãe morta, mas sim como aquela gente
toda ainda consegue ser tão insuportável e verdadeiramente
feliz mesmo com esse currículo de desgraças nas costas).
Resta importar um diretor daquela cinematografia de
filmes oníricos e exóticos, para tentar imprimir algum
fôlego novo nessa repetição da saga americana por excelência;
resta deixá-lo filmar com mais afeto e urgência as inúmeras
cenas em que Will Smith corre, simplesmente corre pelas
ruas, materialização patética de toda a mensagem afirmativa
que se está vendendo aqui. E resta esperar por filmes
“inspirados em eventos verdadeiros” que consigam lidar
com alguma outra verdade que não essa da corrida eterna
pelo ouro. Porque é impossível ignorar que, longe da
simpática happiness soletrada com “y”, a última
palavra dita em À Procura da Felicidade, lá naqueles
letreiros finais, é a pragmática e objetiva dollars.
Eis aqui seu horizonte permanente, seu único objetivo.
Rodrigo de Oliveira
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