À PROCURA DA FELICIDADE
Gabriele Muccino, The pursuit of happyness, EUA, 2006

A última imagem de À Procura da Felicidade mostra o horizonte de São Francisco a partir do alto de uma colina. Golden Gate ao fundo, a arquitetura típica da cidade emoldurando a descida até mar, o mesmo bairro rico que pareceu sempre tão distante das possibilidades de Chris Gardner, mas por onde agora ele caminha com uma sensação indisfarçável de pertencimento. A conversa divertida com seu filho é interrompida por dois letreiros, fundo preto com letras brancas, que nos informam que a felicidade fora de fato encontrada por eles dois: sucesso na firma de corretagem de ações, conseqüente abertura de uma firma própria, e depois a sonhada cifra milionária. No intervalo entre uma informação e outra, o Chris da ficção cruza com o Chris da realidade, aquele em cuja história o filme se inspira, e há um reconhecimento mútuo, uma satisfação compartilhada. O personagem real sai por cima, enquanto o personagem fictício desce a ladeira com o filho, até que desapareça de vista. Sobra então, como no começo da cena, apenas o horizonte da cidade.

Ali, naquela cena final, o filme de Gabriele Muccino encontra as duas maiores razões de sua existência, e elas são radicalmente opostas. Primeiro concretiza-se a promessa do título, e para isso servem os letreiros e a aparição do Chris Gardner real, mas logo em seguida esse encontro com a felicidade é suplantado por tudo aquilo que sustentara o filme até então, e a derradeira imagem não é a do objetivo alcançado, mas sim o símbolo do trajeto percorrido até ele: o horizonte de São Francisco, porque À Procura da Felicidade não conseguiria viver se não existissem os horizontes à sua frente.

Só foi possível construir todo o drama a partir dessa estratégia de acumulação do desespero – onde sempre se chegava ao fundo do poço apenas para ter certeza de que ainda havia muito mais lama na qual se afundar – porque cada plano do filme já estava investido de um “este é só um momento ruim necessário para que a salvação do final pareça ainda mais gloriosa”. Muccino nunca encena a dúvida desse desfecho, não há seqüência do filme em que o sofrimento do protagonista sugira a fatalidade da ruína: sabemos desde sempre que toda aquela dor tem um encontro marcado com a felicidade. Então por que não ir direto a ela, por que encurtar tanto o momento em que se está, finalmente, vivendo a alegria da meta atingida? Se a felicidade é um tiro certo, por que então fazer um filme sobre sua procura?

Primeiro porque essa é uma garantia dada ao povo americano, desde o documento de Declaração da Independência. Como citado recorrentemente por Chris Gardner ao longo do filme, Thomas Jefferson colocou lá a procura da felicidade como um direito do cidadão, direito tão importante e valioso quanto a liberdade e a autodeterminação. É como se a América estivesse destinada, desde sua “certidão de nascimento”, a ser a terra da perseguição do sonho, e nunca do sonho propriamente dito. Aqui se justifica toda uma cultura da auto-ajuda que se formou no país, da qual À Procura da Felicidade é um produto dos mais sofisticados. Nada dos programas de “siga estes passos”, dos livros que enumeram as qualidades a serem almejadas e os defeitos a serem descartados (é uma estrutura de auto-ajuda que não funciona mais, ou por acaso o personagem de Greg Kinnear em Pequena Miss Sunshine conseguiu vender a idéia de seu programa motivacional?). O que se busca aqui é a dramatização do caminho para o sucesso, o romance da conquista do paraíso, e nisso é notável que a narração em off de À Procura da Felicidade, em seu tom pesaroso e sua análise crítica condoída das imagens que sublinha, se aproxime tanto do dispositivo novelesco/jornalístico usado por Oprah Winfrey nas “reportagens da vida real” de seu programa.

É o elogio do “sempre em frente”, uma variante de mercado do positivismo, onde tudo o que se espera de seus protagonistas é respeito à ordem, tudo o que se pode garantir a eles é o rumo do progresso. A nova possibilidade aqui é a de não mais ser destinado ao sucesso por alguma instância superior, mas a de construir-se, pelo suor e pelo trabalho, como um dos eleitos. É isso que destaca Chris Gardner da multidão de pobres em que se encontra momentaneamente misturado. Essa, aliás, nem é a palavra certa: há uma clara distinção entre a massa de sem-teto e miseráveis dos abrigos de caridade e as figuras de Chris e seu filho, sempre melhor iluminadas, com roupas mais claras e caráter mais íntegro que os outros.

Assim, a história que supostamente trataria da ascensão social de um pobre tem em Chris, na verdade, apenas um rico ainda não aflorado. Sua medida de “felicidade” é sair chorando do escritório depois de saber que conseguiu o disputadíssimo emprego e então, com todas as honras da pressa e do terno-e-gravata, se misturar à massa de yuppies que avança em bloco pela rua – essa sim a turma a qual ele pertence, e na qual consegue finalmente se misturar, se equivaler. Aquilo que sobra, aqueles fracos demais para enfrentar e vencer a vida, estes filhos submissos de uma política governamental desastrada, mas, no fundo, apenas derrotados naturais e incontornáveis, bem, sobre eles nunca se faria um filme.

Do mesmo modo que nunca se poderia fazer um filme sobre aquele momento final no bairro rico de São Francisco, sobre a experiência plena do sucesso alcançado, porque ninguém mais sabe (ou se arrisca a) filmar a felicidade. É o trágico encontro do cinema americano com o destino traçado para o país desde a Declaração da Independência, constatação da incapacidade de se admitir a felicidade e o bem-estar como parte da vida presente, e não apenas como objeto do futuro. Por isso a estrutura narrativa clássica que termina sempre com um final feliz: ninguém em Hollywood sabe o que fazer depois que se chega à felicidade, o manual não ensina como filmar uma cena em só hajam sorrisos, e não lágrimas, e por isso só resta mesmo terminar os filmes exatamente nesse momento (o filme-fantasma dessa incapacidade segue sendo As Duas Faces da Felicidade, de Agnès Varda, onde a pergunta maior não é se o casal protagonista sobreviverá ou não à entrada de uma amante na história, se a morte da esposa foi suicídio ou acidente, se a amante conseguirá ou não substituir a mãe morta, mas sim como aquela gente toda ainda consegue ser tão insuportável e verdadeiramente feliz mesmo com esse currículo de desgraças nas costas).

Resta importar um diretor daquela cinematografia de filmes oníricos e exóticos, para tentar imprimir algum fôlego novo nessa repetição da saga americana por excelência; resta deixá-lo filmar com mais afeto e urgência as inúmeras cenas em que Will Smith corre, simplesmente corre pelas ruas, materialização patética de toda a mensagem afirmativa que se está vendendo aqui. E resta esperar por filmes “inspirados em eventos verdadeiros” que consigam lidar com alguma outra verdade que não essa da corrida eterna pelo ouro. Porque é impossível ignorar que, longe da simpática happiness soletrada com “y”, a última palavra dita em À Procura da Felicidade, lá naqueles letreiros finais, é a pragmática e objetiva dollars. Eis aqui seu horizonte permanente, seu único objetivo.


Rodrigo de Oliveira