UM CAMPO E OUTRO CAMPO:
A CONQUISTA DA HONRA/CARTAS DE IWO JIMA

Clint Eastwood parece transitar pelo que conhecemos como "cinema americano", como um fantasma, traçando seu percurso entre as sombras das formas, dos gêneros e dos temas, lançando olhares sobre as penumbras que os refletores e holofotes escondem. Seu último trabalho, o díptico A Conquista da Honra-Cartas de Iwo Jima, leva-o um passo além neste fascinante caminho, no qual o cinema é palco do mundo. Animados pelo conceito de campo-contracampo, tão caro ao "cinema americano", os dois filmes transformam a tela num universo em expansão, em que as imagens, ao mesmo tempo em que exercem sua capacidade de recortar e representar, parecem não se conter em si mesmas, magnetizando tudo aquilo que as cerca, mas não lhes pertence.

Campo-contracampo. Sem esta sutura primeira – conduzida pelo olhar – de duas imagens, dois campos de visão, dois recortes parciais, não haveria sentimento de unidade no cinema, seja dramática, temporal ou espacial. Esta operação simples e precisa, de justaposição de imagens estanques, mas complementares, carrega consigo um conceito amplo e elaborado, de intuição de um todo uno pela junção de partes "opostas", de união entre uma "causa" e uma "conseqüência": duas pessoas que conversam frente-a-frente, uma pessoa que olha aquilo que é olhado ou uma ação que supõe uma reação. E é justamente este conceito que Eastwood vai abordar e afrontar, ao limite da crise, no conjunto formado por seus dois últimos filmes e no interior do próprio A Conquista da Honra.

Cartas de Iwo Jima e A Conquista da Honra seriam filmes sobre "os dois lados" de uma batalha. Mas o olhar de Clint Eastwood sobre cada um destes "lados" é diferenciado o suficiente para que eles não possam ser "costurados", de maneira a formar uma imagem unificada sobre o evento e fornecer uma compreensão total dos acontecimentos. Há uma ruptura evidente entre os dois "campos": são dois filmes, duas representações diversas, duas culturas-mundo sendo acionadas separadamente. Ambos supõem o confronto – essa pedra de base do filme de guerra –, mas tratam, no entanto, apenas do seu próprio campo. O inimigo, em cada um deles, pertence a um (contra)campo cego primordial.

Esta fratura do campo-contracampo tradicional, problematiza, antes de mais nada, a construção de pontos de vista – o que frustra uma eventual emergência de "verdades", ainda que parciais (cada filme, ou campo, fornecendo seu ponto de vista sobre o evento), e anula a crença no embate. Isto, além de constituir uma afirmação de princípios, recai diretamente sobre a estrutura do olhar dentro dos filmes: quebrada a possibilidade de unir as duas visões parciais (afinal não há nem mesmo dados de roteiro trabalhados para "casar" a experiência de ambos), o olhar, este ponto de inflexão do campo-contracampo, redobra-se sobre si. Temos, então, que, em cada um deles, a ausência fundamental do outro provoca um desdobramento do olhar no interior do próprio campo, originando uma multiplicação de vozes narrativas – que o olho descritivo da câmera se reserva o direito de conduzir.

E, se em Cartas de Iwo Jima isto abre o caminho para um atencioso mapeamento do campo – em que conhecemos uma variedade de personagens e diversos olhares transitam pelos labirintos escavados na pedra –, em A Conquista da Honra, o campo apresenta-se já fissurado, do interior, por um evento que é preciso investigar juntando os pedaços (a foto e seus desdobramentos) e pela falta do contracampo. Em grande medida, de um contraplano específico: Iggy, companheiro em batalha do enfermeiro John Bradley, desaparece. Um corpo em estado lastimável é encontrado no covil do inimigo e o enfermeiro vai olhar o corpo. No entanto, esta imagem, que assombra todo restante da vida do personagem, falta. Isto origina um jogo de instâncias narrativas (imagens de sonho, ilustrações de narrações em primeira ou terceira pessoa, flashbacks, narração cinematográfica em estilo indireto) que procuram dar conta do vivido por este homem e desta falta fantasmática do outro, que corrompe de dentro o espaço do filme. Impossibilitado de se estruturar, A Conquista da Honra parece ressentir-se de fato do campo ausente, construindo-se a partir de deslocamentos espaço-temporais e vai-e-vens lacunares, numa busca para preencher vazios (que apenas se multiplicam), coletando informações que vêm aos poucos, destacadas, fora de ordem, para serem reunidas.

Temos, assim, no conjunto dos dois filmes, dois campos que se complementam de forma muito diversa de um frente-a-frente de imagens (sejam elas materiais ou abstratas); um campo-campo, um olhar que é, antes de tudo, topográfico, que não consegue apreender o mundo de forma ampla e reduzi-lo a uma visão de todo. Trata-se, para Eastwood, de uma tentativa de compreensão pela aproximação (e imersão), de assumir a visão cinematográfica como parcial e trabalhar, então, o olhar em cada parte. Fazer, sobre a América, um filme americano: um filme sobre nação e heroísmo, mas um filme de crise da estrutura e dos valores clássicos, um filme de guerra que sofre com a falta do contraplano, do confronto em sua existência plena, e que busca em outro paradigma clássico de "emparelhamento" de imagens, a montagem paralela (trabalhada já em outras bases), sua completa realização. E fazer, sobre os japoneses, um filme japonês: um filme sobre valores culturais e valores pessoais, atento ao trabalho com o tempo, e que se interessa sobretudo pelos detalhes, pelas expressões, pelos gestos e pelos sentimentos. Um filme que, no entanto, não esconde seu olhar de origem: o do diretor americano que deseja conhecer o que lhe é estrangeiro.

Este talvez seja o momento em que as sombras que habitavam o interior do cinema americano de Clint Eastwood ganham outras proporções. Em que ele próprio parece escorregar do delicado equilíbrio que o mantinha nas franjas deste cinema clássico, colocando em xeque alguns de seus constituintes centrais e conferindo uma dimensão diferente à sua obra, ainda impossível de definir ao certo.


Tatiana Monassa

 

 



O contraplano de Iggy (frente a Bradley): a imagem
que passa a faltar, que é sugada pelo campo ausente
do inimigo, e assombra A Conquista da Honra.


Envolto em penumbra, Bradley vê o que não pode
ser visto: o contraplano que falta a A Conquista da Honra
é o ponto cego, a falta primordial do filme, o inominável
que passa a habitar o enfermeiro.


Uma das fissuras fundamentais no interior
do "campo americano": o olhar vindo do campo
ausente, ponto-de-vista "sem dono" insuportável.