As
relações entre o cinema e a realidade
já têm sido objeto da mais fértil
especulação estética. O livro L'Art
du Cinéma de Pierre Lherminier, editado por
Seghers na sua excelente Collection Melior, traz uma
parte dedicada só a esse problema das relações
entre o imaginário e o real, em torno do qual
escritores, artistas, filósofos e estetas, tomam
o seu partido, pró e contra a dependência
do cinema em face da realidade. Certamente que este
deve ser encarado antes de tudo como um produto da fantasia
criadora do artista, aquele que concebe e organiza a
obra cinematográfica, normalmente o diretor do
filme. O cinema, portanto, como toda obra de arte, quando
o é verdadeiramente, se inscreve basicamente
no campo do imaginário e só circunstancialmente
no campo da realidade. Mas certamente também
que esse imaginário não deve ser tomado
como um campo de pura subjetividade, mas se não
está em dependência, o que seria absurdo
afirmar, está em função da realidade.
A obra totalmente subjetiva, apenas de uma fantasia
arbitrária, seria incomunicável. No cinema
essa questão ainda é mais grave porque
se dirige a um público ansioso de comunicações,
o chamado grande público, pouco cioso dos elementos
de abstração que a obra de arte comporta.
É comum mesmo que esse público não
tenha consciência de estar diante de uma obra
de arte: o que ele exige antes de tudo é uma
transferência para o plano da linguagem cinematográfica
de uma realidade da qual ele participa concretamente,
embora às vezes só como aspiração,
ao indentificar-se com os heróis e as situações
do filme.
Essa questão, sendo fundamental para a compreensão
tanto do cinema como arte quanto do cinema como diversão
pública, não se coloca aqui ociosamente.
Ela é na verdade atualíssima para a consideração
do que se tem chamado o cinema novo do Brasil.
É inevitável a constatação
de que o cinema brasileiro até alguns anos atrás,
com raríssimas exceções, tendeu
para um aproveitamento grosseiro de uma realidade familiar
ao grande público. A onda de filmes musicais
trazia ao espectador o mundo comercializado do rádio
e do tratro-revista. Apenas repetia, numa transferência
puramente material, as situações padronizadas
desses dois meios de diversão pública,
que em si mesmos, diga-se de passagem, podem ser bons,
mas normalmente são os instrumentos por excelência
da diluição cultural, da massificação.
E a conseqüência mais óbvia desta
é a deformação da consciência
do público ouvinte e espectador, que nunca se
torna tão exigente quanto deveria ser.
De algum tempo para cá começaram a surgir
os filmes dos novos diretores cinematográficos
brasileiros, filiados ou não à corrente
do cinema novo, em que já se pode notar
a preocupação de se utilizar da realidade
como base para uma criação estética
de alto nível. É verdade que nem O
Pagador de Promessas, nem O Assalto ao Trem Pagador,
nem Os Cafajestes, nem Tocaia no Asfalto
correspondem ainda ao nível dos grandes filmes
americanos, franceses, italianos, suecos e japoneses.
Mas ao menos já se colocam em nível de
transferência formal da realidade brasileira.
E o prisma pelo qual se coloca torna o nosso cinema
muito próximo das experiências italianas,
muito embora haja alguns deles a influência ambiental
dos filmes americanos: situações e tipos
do Assalto ao Trem Pagador devem alguma coisa
ao filme de gangster americano, mas o realismo
se prende sem dúvida à corrente italiana.
O problema das relações com o real se
colocam ainda mais agudamente no caso dos documentários
cinematográficos. Até que ponto o autor
de filmes documentários pode ser fiel à
realidade sem deixar de ser criador de um mundo peculiar,
pessoal? Sem a criação desse universo
próprio, perfeitamente delimitado, não
há obra de arte. Foi René Clair quem disse
certa vez que a invenção, tida por Stendhal
como o dom mais exigível do ficcionista, seria
também a capacidade exigível do diretor
cinematográfico. Por longe que esteja René
Clair da moderna linguagem cinematográfica, essa
observação permanece válida. Como
pode se exercer no filme documentário esse dom
de invenção? Não se faz sentir,
é claro, nas situações filmadas,
que são estritamente reais, verdadeiramente retiradas
da existência real. A invenção,
por conseguinte, será eminentemente invenção
formal, no documentário que se apresenta como
obra de arte, será a manipulação
inventiva das técnicas cinematográficas.
Lembre-se tudo isto a propósito de um filme agora
exibido ao nosso público, o documentário
Garrincha, Alegria do Povo dirigido pelo jovem
cineasta Joaquim Pedro de Andrade. A base deste documentário
é sem dúvida a técnica da montagem,
tão importante para o cinema que o russo Pudóvkin
chegou a considerá-la como fundamento da arte
cinematográfica. E este filme de Joaquim Pedro,
desprezando quase por completo as acrescentações
fictícias, reduz-se a uma montagem de filmes
já feitos anteriormente e de cenas tiradas da
realidade do mundo futebolístico e da vida privada
do personagem central: o jogador Garrincha, mito e realidade.
Se fosse apenas isso entretanto o filme de Joaquim Pedro
seria um documentário igual a outro qualquer,
sem a criação daquele universo pessoal
e já referido anteriormente. A inventividade
não se realiza apenas num plano meramente técnico,
produto aliás de toda uma equipe que faz o filme.
A marca pessoal do diretor, que se estabelece ser o
autor da obra cinematográfica, vai se encontrar
no conjunto organizado do resultado dessa manipulação
inventiva da técnica. E o que Joaquim Pedro nos
comunica são os elementos poéticos e dramáticos
que se podem surpreender no esporte predileto do povo
brasileiro. Não há evidentemente a pretensão
de se fazer uma espécie de filosofia ou sociologia
do jogo de futebol: isto daria ao filme uma feição
conteudística pouco satisfatória do ponto
de vista da estética cinematográfica.
Mas há, isto sim, uma verdadeira recriação
do mundo futebolístico em termos de imagem e
som. A técnica de imobilização
fotográfica dos figurantes, embora possa parecer
às vezes abusiva, nos dá assim o sentido
de dramaticidade do jogo. Não há nada
de novo nesta técnica, a não ser o sentido
em que ela foi usada: a de usar o tempo, o silêncio
e a imagem pura como elementos de filtração
da realidade. Se o filme transcorresse sem esses cortes
e paralisações bruscas correria o perigo
de se confundir com a banalidade dos jornais cinematográficos.
Esta é evitada pelo coágulo das situações,
mesmo ocorrendo o risco necessário da repetição.
Outra coisa de que se tira partido no filme é
o ângulo de observação do espectador
do jogo. Isto que é tão banal nos jornais
cinematográficos ganha aqui um significação
estética. Uma mesma situação (um
gol, por exemplo, a efusividade dos jogadores após
a marcação, etc.) é vista seguidamente
sob ângulos diversos, não tendo em vista
uma melhor compreensão da mesma, mas um enriquecimento
maior, onde a imagem se torna veículo de dramaticidade.
Este documentário artístico se enriquece
também de uma sonoridade amplamente funcional.
De tal forma o silêncio é elemento integrante
do filme que os ruídos e vozes ganham um colorido
especial. Entram na composição dramática
do filme. A própria música do filme, que
tanto é a mais genuína música popular
das Escolas de Samba da Portela e do Império
Serrano como a dos grandes mestres barrocos como Frescobaldi
e Domenico Scarlatti, é também um elemento
de configuração dos mais valiosos. Atente-se
por exemplo à seqüência de exercícios
ginásticos dos jogadores em que os gestos ganham
configuração rítmica. A severidade
da construção musical barroca corresponde
plenamente ao esforço árduo dos exercícios.
Esta seqüência é talvez das melhores
que se podem encontrar em todo cinema brasileiro.
Joaquim Pedro, o realizador do filme, já dera
antes duas amostras boas do que poderia fazer, com a
seqüência Couro de Gato do filme Cinco
Vezes Favela, e os breves documentários sobre
Gilberto Freire e Manuel Bandeira, feitos para o Instituto
Nacional do Livro. O documentário sobre Bandeira
(ator surpreendentemente bom) já o aproximava
dos mestres realistas italianos: lembrava Umberto
D de Vittorio de Sica. Agora, com Garrincha,
Alegria do Povo dá um ótimo passo
à frente para o amadurecimento técnico
e artístico. Claro que as falhas do filme não
são aqui focalizadas. Não sendo este propriamente
um artigo de crítica escrito por um entendido
em técnicas cinematográficas, preferiu-se
omitir o que foi visto como falha, para não incorrer
em erros por ignorância técnica.
Mas absolutamente não se poderia incluir entre
estas o fato do diretor não pretender fazer uma
obra demagogicamente fácil. Garrincha não
é visto só sob o ângulo do mito
futebolístico, mas como um personagem integrante
de uma situação determinada: a do jogador
de futebol. Com isso o filme ganha uma maior amplitude
e generalização. É possível
que por isso o filme não corresponda plenamente
ao gosto popular. A função artística
entretanto não é a de mimar o público,
colaborando com a sua deseducação. É
de lhe dar a obra de arte, e esta será aceita
cada vez mais na medida em que o público se aperceba
progressivamente da existência dos valores estéticos.
A partir do título Garrincha, Alegria do Povo,
réplica de Jesus, Alegria dos Homens de
Bach, a acusação principal que se fez
ao filme foi a de ser obra aristocrática, quando
pelo tema, devia se dirigir ao grande público
popular. Só temos a observar que essa crítica
se volta contraditoriamente contra si mesma, pois supõe
a incapacidade definitiva da parte do público
em entender a obra de arte. Por aristocrático
essa mesma crítica supõe tudo que não
se inclui no terreno da banalidade. O que deixamos sem
comentário.
Sebastião Uchôa Leite
(publicado originalmente no jornal Última Hora,
em 20 de outubro de 1963)
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