1.
Amigos, eu vivo a dizer que o homem é muito mais
da ficção do que da vida, e repito:
a vida real é imprópria para o ser humano.
No fundo, qualquer um de nós gostaria de ser
personagem de romance, de ópera, de drama, de
fotonovela. Lembro-me do dia em que fui apresentado
ao confrade Cláudio de Melo e Sousa. Ao apertar-lhe
a mão, pensei: "Já conheço
esse cara de algum libreto de ópera!" E,
de fato, o colega é, sucessiva ou simultaneamente,
um Byron, um Andrea Chenier, um havaiano de filme, um
nativo das ilhas dos mares do sul. Só não
é Cláudio de Melo e Sousa.
2. Outro exemplo: o Hélio Pellegrino. Ainda anteontem,
vi esse notável poeta pátrio. Pois bem.
E ele me apareceu com um suéter inesperado e
deslumbrante, um suéter de marinheiro de Eugene
ONeill. outro que não tem nada a ver com a vida
real: o Otto Lara Resende. Trabalha na Procuradoria
do Estado, é jornalista, contista, romancista
e, segundo dizem, nosso futuro embaixador na Bélgica.
Mas vejam vocês: minha última peça
chama-se, justamente, com todas as letras, Otto Lara
Resende.
3. E o Otto passou a ser mais título do que funcionário,
mais teatro do que advogado, mais personagem do que
autor. Na rua, é interpelado: "Você
existe mesmo?" Sim, o meu amigo tem passado por
equívocos medonhos. É singular, realmente,
que se possa apalpar, farejar e até pedir dinheiro
a um título de peça. Todavia, ninguém
é mais teatro, mais verso, mais romance, mais
ópera, mais cancioneiro, do que Garrincha.
4. Citei vários amigos irreais: o Cláudio,
o Hélio e o Otto. Os três têm, na
vida real, uma inadaptação de peixinhos
fora do aquário. Garrincha muito mais. O mané
já foi samba, já foi marchinha e a qualquer
momento vai ser letra de Vicente Celestino. Como se
não bastasse tudo o mais, é agora filme.
Sábado último, fui ver, justamente, o
Garrincha, Alegria do Povo.
5. A exibição estava marcada para oito
da noite, em Botafogo. Chego, e quem vejo eu? O Joaquim
Pedro, o diretor da fita. É outro que parece
mais libreto de ópera do que pessoa viva. Com
o seu ar de romântico inatual, retardatário,
daria, fisicamente, um ótimo tenor da Traviata.
Ao lado do Joaquim Pedro, estava o Luiz Carlos Barreto,
outro responsável pelo filme. Excelente figura,
o Luiz Carlos! Tem uma frondosíssima cabeleira
de leão de desenho animado. E a verdade é
que os dois fariam o maior sucesso como personagens
de Dumas Filho.
6. Entramos os três e, com pouco mais, começava
a projeção. Amigos, eu tenho a maior desconfiança
de qualquer documentário pelo seguinte: o documentário
é o mais burro dos gêneros. Isso por um
lado. Por outro lado, o verdadeiro documentário
é a poesia. Ou o sujeito recria poeticamente
as coisas ou naufraga num pires dágua. Eis o
meu medo: que ele nos traísse Garrincha e traísse
a poesia.
7. Nada disso. A única traída foi mesmo
a sociologia. O Joaquim Pedro é sensível
demais, inteligente demais, delirante demais para ser
sociólogo. Quer ele queira, quer não,
jamais será um idiota da objetividade. E nos
deu um filme úmido, terno, de uma qualidade poética
quase intolerável. Tivesse eu a burrice lívida
do Alex Viany e estaria aqui fazendo comentários
de especialista. Mas Deus me negou a obtusidade do crítico
cinematográfico. Tenho que me expandir como um
leigo desautorizadíssimo.
8. Se me perguntarem o que me impressionou mais na fita,
eu diria: as caras. Com a meticulosa, obsessiva paciência
de um Proust visual, o Joaquim Pedro andou cantando,
no Maracanã, as reações fisionômicas
da torcida. No ser humano, só a cara importa
e o resto é paisagem. E, na fita, o que vemos
é a máscara humana na sua infinita variedade.
Uma coisa vos digo: Não há Nápoles,
não há rio, ou mar, ou via láctea,
ou aurora, ou poente que seja tão patético
como as caras desdentadas que o Joaquim Pedro descobriu.
E lá reencontramos o Garrincha fidedigno. Eu
sempre digo que o Mané é tão da
terra como os camaleões, como os preás.
E se fosse possível uma platéia de preás
e de camaleões, os bichos haviam de aplaudir
de pé o filme e pedir bis como na ópera.
Nelson Rodrigues
(publicado originalmente na coluna "À Sombra
das chuteiras imortais", em O Globo, 19 de junho
de 1963)
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