JOAQUIM PEDRO DE ANDRADE:
PRIMEIROS TEMPOS

Quando o tema é Joaquim Pedro de Andrade, costuma-se destacar sua relação com a literatura – uma relação não só profissional como também pessoal. Desde pequeno ele conviveu com alguns dos principais escritores e intelectuais brasileiros, que faziam parte do círculo de amizades de seu pai, dr. Rodrigo Melo Franco de Andrade – diretor do Patrimônio Histórico entre 1936 e 1967. Na sua carreira de cineasta, Joaquim Pedro vai sempre partir de obras literárias (poemas, contos, novelas) para escrever o roteiro dos longas de ficção que dirigiu.

A relação de Joaquim Pedro com a literatura é mesmo um traço central na sua filmografia. Mas neste texto em torno de seus primeiros filmes – O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo (1959), Couro de Gato (1961), Garrincha, Alegria do Povo, (1963) e O Padre e a Moça (1966) – sigo uma abordagem que me parece igualmente estimulante. Privilegio, aqui, não seu diálogo com a tradição literária, mas com a tradição cinematográfica – com movimentos e filmes anteriores, com diferentes gêneros e procedimentos cinematográficos.

Joaquim Pedro estréia na direção com O Mestre de Apipucos e o Poeta do Castelo, documentário sobre Gilberto Freyre (o mestre de Apipucos) e Manuel Bandeira (o poeta do Castelo). Realizado como um único curta, logo depois passa a ser exibido separadamente. O desmembramento foi uma pena, já que o filme é construído sobre as contraposições não só entre as duas personalidades como também entre os procedimentos de linguagem adotados em cada uma das partes. Exemplo dessa variação no tratamento é o trabalho de decupagem.

Os raccords de Mestre seguem mais detidamente a linguagem clássica, explorando o campo/contracampo e até se aproximando da linguagem do cinema mudo ao enfatizar analogias e ligações causa/efeito. Isso requer uma performance mais histriônica de Freyre, contribuindo para o acentuado tom crítico à sua figura. Também o trabalho de campo/contracampo ressalta sua atitude de dominação em relação ao espaço onde transita. Já em Poeta, a relação de Bandeira com o espaço é de total integração e harmonia. Os planos se articulam, basicamente, através de raccords de movimento, de ação.

Nos dois filmes, a preocupação com a continuidade é marcante, daí o rigoroso trabalho de decupagem. Em Poeta, além disso, Joaquim Pedro imprime uma tonalidade neo-realista, ao lançar um olhar afetuoso e demorado sobre ações banais. É o caso, por exemplo, das imagens de Bandeira preparando o café da manhã que remetem a uma seqüência de Umberto D, de Vittorio De Sica, quando a câmera acompanha a empregada da pensão na cozinha, durante algumas atividades absolutamente cotidianas e sem função dramática para o avanço da história.

O diálogo com o neo-realismo vai ser retomado em Couro de Gato, o segundo curta de Joaquim Pedro, que depois seria incorporado ao longa Cinco Vezes Favela, de 1962. Aqui, no entanto, esse diálogo acontece não diretamente com a produção italiana mas sob a mediação de Rio, 40 graus, de Nélson Pereira dos Santos, produzido em 1954/1955. A história dos meninos que roubam gatos para vendê-los aos fabricantes de tamborim poderia perfeitamente se encaixar entre os episódios protagonizados pelos garotos do painel carioca montado por Nélson Pereira. Ambos retomam a preocupação neo-realista em explorar o universo infantil – basta lembrar duas obras chaves do movimento italiano que são Ladrões de Bicicleta (Vittorio De Sica, (1948) e Alemanha, Ano Zero (Roberto Rossellini, 1947).

No segundo curta-metragem que dirige, Joaquim Pedro já exibe um domínio admirável da emoção, envolvendo o espectador, aproximando-o do conflito social e econômico que está sendo exposto. O desejo de pensar e de compreender a realidade brasileira está na base tanto do filme de Nélson Pereira quanto no curta de Joaquim Pedro. Mas os cinco anos que separam as duas produções trouxeram algumas modificações no olhar sobre o Brasil. Joaquim Pedro traz uma visão menos idealizada dessa realidade, além de incorporar um perturbador traço de crueldade.

Uma diferença significativa entre os dois filmes é a maneira como é visto o morro. Ele continua sendo um espaço de solidariedade. Mas se em Rio, 40 Graus a miséria tem como contraponto a generosa criação artística (a música, o carnaval minimizando os conflitos internos, fortalecendo a comunidade) em Couro de Gato a compensação criadora fica de fora. As únicas imagens de carnaval que aparecem, por exemplo, mostram o desfile na avenida, reforçando o aspecto mais oficial da festa. Em Rio, 40 graus, o espaço do prazer no morro ainda é possível.

O que chamei de "traço de crueldade" no filme de Joaquim Pedro se mostra com maior clareza quando analisamos as aproximações e diferenças entre duas seqüências de cada filme. Em Rio, 40 graus, um dos garotos vai parar no jardim zoológico, procurando sua lagartixa de estimação, que fugiu. Ele passeia, encantado, pelos animais, até que o encanto é quebrado quando ele vê a lagartixa sendo comida por uma cobra. Em Couro de Gato, depois que consegue roubar o gato angorá de uma madame, o menino tem uma espécie de idílio com o bichinho, no alto do morro. Ficar com o gato, no entanto, é um luxo que ele não pode bancar. Ainda por cima se tem que dividir a própria comida para alimentar o gato. Ele não tem outra opção que não vender o bicho, como aliás era seu propósito inicial.

Nos dois casos, o espaço para o afeto, para o prazer da infância está interditado. Fica clara a violência – social, econômica, emocional – a qual os meninos estão submetidos. Em Couro de gato me parece que há uma perversidade maior, já que a própria criança precisa ser agente e completar o ciclo dessa violência contra ele mesmo, vendendo o gato. A situação também ganha em ambigüidade, porque o garoto não é só bons sentimentos. Há um indisfarçável rancor contra o gato, que adquire estatuto de símbolo de tudo que lhe é interditado. A crueldade é que a vingança de vender o gato – condenando o símbolo à morte – é também o ápice da violência contra seus próprios desejos.

Acredito que essa visão mais ambígua e menos maniqueísta colocada por Joaquim Pedro é uma contribuição importante dentro do projeto do Cinema Novo (e, de maneira geral, dos "antecedentes" do cinema independente dos anos 1950) de descobrir o Brasil e de construir imagens para registrar e compreender o país.

Sob esse aspecto, ganha ainda maior coerência o próximo trabalho de Joaquim Pedro: um documentário sobre o jogador Garrincha que dá oportunidade de empreender uma análise sobre um dos fenômenos mais mobilizadores da cultura brasileira: o futebol. A proposta inicial era desenvolver as técnicas do cinema direto, a grande novidade na época em termos de cinema documentário. Mas era necessário ter equipamentos modernos, câmeras mais leves, que permitissem gravação sincronizada do som, o gravador portátil Nagra. A falta desses equipamentos alterou a proposta inicial. Garrincha, Alegria do Povo afasta-se então do que seria um estilo mais próximo da reportagem, centrado nas entrevistas em som direto, para incorporar vasto material de arquivo, num elaborado trabalho de montagem.

Garrincha pode não ser o primeiro exemplar de cinema direto no Brasil, mas sem dúvida é um marco no documentário crítico. Não se coloca como um registro imparcial, como uma obra laudatória. Ainda não de forma sistemática – como será trabalhado em documentários posteriores –, mas aqui já há indicações que ressaltam a própria feitura do documentário. Ao articular material filmado e as imagens e fotos de arquivo Joaquim Pedro não esconde sua pretensão de construir uma análise do futebol. E para isso chega a fazer escolhas controversas – como encerrar o trecho dedicado à participação do Brasil nas copas com as imagens da histórica derrota para o Uruguai em 1950, quando no ano anterior a seleção havia conquistado o bicampeonato. E Garrincha sequer havia jogado em 1950!

Esse é um dos exemplos mais evidentes de como as informações, no filme, vão sendo articuladas na montagem, seguindo uma hierarquia particular que privilegia o comentário crítico sobre o aspecto cronológico, factual. O rigoroso trabalho de montagem leva a pensar na tradição do cinema documentário de Vertov. Um diálogo menos evidente – mas bastante intenso – se dá com os documentários dirigidos por Alain Resnais, nas décadas de 40 e 50. A maneira como a câmera explora as fotos em Garrincha, criando dramaticidade, extraindo movimento da imagem fixa, remete ao curta Van Gogh, dirigido por Resnais em 1948. Godard escreveu, sobre esses curtas, que a montagem para Resnais significava mise en scène (1) – definição que se aplica com muita propriedade também para Garrincha.

No filme seguinte, O Padre e a Moça, seu primeiro longa de ficção, inspirado em poema de Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Pedro experimenta a crise dessa mise-en-scène bem estruturada e cheia de certezas do Garrincha, que ele qualificava como um filme "meio pirotécnico" (2). Sobre Padre, dizia que se tratava de um filme de negação, uma tentativa de se livrar da perfumaria, dos efeitos fáceis. Nesse projeto de despojamento da mise en scène, de procura da sobriedade, uma referência fundamental é o cineasta francês Robert Bresson e, em particular, o filme Diário de um Pároco de Aldeia, de 1950. As relações começam desde a história e a ambientação dessa história. Parece claro que Joaquim Pedro tinha em mente o filme de Bresson ao adaptar o poema de Drummond. Joaquim Pedro constrói um padre jovem, inexperiente, introvertido – como o pároco de Bresson. E, também como em Diário, o padre chega numa cidadezinha perdida no mundo, de moradores pouco amistosos, e um morador mais rico e poderoso que dita as regras do lugar.

É certo que Joaquim Pedro vai expor mais detalhadamente a realidade social e econômica. Mas reforça a ambigüidade ao deixar de esclarecer alguns pontos em relação aos personagens. A interpretação contida, os silêncios, as reveladoras coreografias dos olhares, a lentidão das falas e ações, são elementos em comum entre os dois filmes. Apesar das aproximações, Padre não investe no tom metafísico, preferindo traduzir suas questões em conflitos físicos (contrastes de cores, de texturas), magnificamente explorados pela fotografia de Mário Carneiro.

A propósito do contraste pele/batina (que segundo Joaquim Pedro foi a primeira imagem que lhe ocorreu ao ler o poema de Drummond) e de um plano em especial – quando a câmera acompanha o padre em movimento até enquadrar o ombro nu da moça, onde ele encosta os lábios e o rosto –, vale lembrar um dos artigos sobre Hiroshima, Meu Amor, "A pele e a paz", escrito por Paulo Emílio Salles Gomes. A "descoberta da pele" não teria sido façanha do jovem cinema francês, argumenta, mas ele teria adquirido, "mais do que qualquer outro, a consciência lúcida do tema" (3). Reivindico essa modernidade também para o filme de Joaquim Pedro, fotografado por Mário Carneiro. Vejo nas imagens d’O Padre e a Moça um tamanho encantamento pela pele, pela expressão física de pessoas, objetos e paisagens, que em relação a ele não causa estranhamento se, a título de elogio maior, for definido como "um filme superficial".

Essa "superficialidade" pode ser associada ao procedimento, bastante caro ao romantismo, de traduzir na natureza, no ambiente, os conflitos emocionais que tomam os personagens e acionam a trama. Tendo isso em mente, é possível aproximar O Padre e a Moça de Limite, dirigido por Mário Peixoto em 1930. Curiosamente, se o filme de Joaquim Pedro não compartilha com Limite propostas vanguardistas, é na tradição romântica do século passado que eles têm seu ponto em comum.

Filho de intelectual, com uma formação cultural das mais consistentes, um conhecimento invejável da literatura e um convívio próximo com os mais reconhecidos intelectuais e artistas brasileiros, Joaquim Pedro contraria as probabilidades de uma carreira literária e lança-se na linguagem audiovisual do cinema. Seus primeiros filmes exibem o desejo de aprender, de dominar a técnica e a linguagem cinematográficas – não é à toa que o jovem diretor vai transitando por vários territórios: linguagem clássica, neo-realismo, cinema direto, cinema de montagem, cinema de negação... E, a cada movimento de incorporação, há também o movimento crítico de não se submeter à tradição, mas utilizá-la em proveito de suas próprias idéias.

Luciana Corrêa de Araújo
(publicado originalmente em Estudos de cinema: Socine II e III. São Paulo: Annablume, 2000
)

1. Alain Bergala (org.), Godard par Godard – Les Années Cahiers (1950 à 1959). Flammarion, 1989.

2. O Cinema de Joaquim Pedro (folheto). Rio de Janeiro, Cineclube Macunaíma, 1976.

3. Paulo Emílio Salles Gomes, Crítica de cinema no Suplemento Literário, vol. 2. Rio de Janeiro, Paz e Terra/Embrafilme, 1982.