Há
seis anos atrás, cercado de refletores, cabos,
trilhos e uma equipe de filmagem que se mexia nervosamente
em seu pequeno apartamento, Manuel Bandeira descobriu
que era um bom ator. A sua risada alegre e inesperada,
comemorando o primeiro take do filme O poeto
do Castelo, foi para mim a mesma e boa surpresa
que desde menino eu ouvia quando menos esperava.
Sou afilhado e amigo de Manuel Bandeira. Às quartas-feiras,
ele vinha jantar com meu pai (Rodrigo de Melo Franco
de Andrade) e falava de tudo. Me lembro bem das noites
em que ele se indignava, contando alguma coisa que o
tivesse irritado e agitava-se impulsivo, violento, para
de repente achar graça na própria fúrias
e na história que estava contanto. Vinha então
aquela risada alegre que eu quis pôr no filme
e acabou resultando na única cena que o ator
Manuel Bandeira teve dificuldade de fazer.
O telefone tocava, na sua mesa de cabeceira. Manuel
atendia e quando reconhecia a voz de um amigo dava a
tal risada. A partir dessa alegria, segundo o roteiro,
é que o poeta tomava impulso para a ascensão
a Pasárgada, no fim do filme. Fizemos um ensaio,
Manuel riu sem vontade. No segundo e terceiro ensaios
o ator se irrativa cada vez mais, quando ria. Experimentamos
então o estímulo real. Manuel telefonou
a um amigo, Dante Milano, se não me engano, para
pedir que ele lhe telefonasse de volta. Mas o Dante
não estava. Quando começamos a procurar
outro amigo, no caderninho de telefones do poeta, ele
perdeu a paciência. Mandou rodar a câmera,
atendeu o telefone que não tinha tocado, perguntou
quem estava falando e ao ouvir a risada imaginária
deu a risada, mais alegre e espontânea do que
nunca. Guardo mágoa, até hoje porque a
campainha do telefone continuou tocando, no filme, mesmo
depois do poeta ter tirado o fone do gancho. A culpa
foi do montador Baldacconi, que num momento de mau humor
resolveu me hostilizar dessa maneira insólita.
Se eu pudesse hoje fazer outro filme sobre Manuel Bandeira
não lhe pediria como fiz antes que representasse
o seu personagem diante da câmera como se ela
não existisse. A técnica do cinema direto,
desenvolvida recentemente, pôs bem a descoberto
o artificialismo desse processo usado nos documentários
posados tradicionais. Mesmo assim e ainda agora, acho
que os dados da composição do filme, talvez
por serem tão aparentes e declarados, funcionam
como a proposição de um jogo, como na
obra de ficção, e armam um processo eficiente
para apreender e, transmitir uma impressão verdadeira,
ou pelo menos sincera, sobre o poeta filmado.
Sensível a esses problemas, Manuel Bandeira informou
a grande número de pessoas que a operação
da compra do leite, realizada várias vezes por
semana, não tinha nada da pungência com
que aparecia no filme. Era, para ele, uma ação
desprovida de emocionalismo. E que a verdade imediata,
realista, foi substituída pela verdade de uma
representação, de uma visão interpretativa,
tão legitimamente como na subida ao céu
que o poeta pratica em vida, no fim do filme. Por esse
processo, o roteiro pretendia comprimir na manhã
cotidiana do poeta a representação de
sua vida.
Quando tive a idéia do filme, pedi a Manuel Bandeira
que escrevesse um esboço de roteiro aproveitando
tudo que ele costumava fazer de manhã, num dia
comum. Manuel começou assim: "B. está
dormindo. De repente se mexe e acorda. Estende a mão,
apanha o relógio-pulseira na mesinha ao lado,
vê que já são 7 horas – tempo de
se levantar. Senta-se na cama, passa a mão na
cabeça, fica alguns segundos pensativo. Afinal
ergue-se, veste o roupão, caminha para o balcão,
escancara a janela". E acabou assim: "B. aproxima-se
da banca dos jornais, compra o Correio da Manhã
e afasta-se pela avenida Presidente Wilson, lendo a
folha".
Naquela altura eu ainda não conhecia a força
do ator e tive medo de abrir o filme com o despertar
do poeta. Acho que não há nada mais difícil
para um ator do que uma cena em que ele está
dormindo e acorda, ou uma cena em que ele boceja. Por
isso, comecei o filme já com o poeta acordado,
o que, como precaução, se revelou afinal
desnecessário. Estou hoje convencido de que Manuel
tem o material de um excelente ator, capaz até
mesmo de acordar e bocejar com a maior naturalidade,
mas, antes de mim, ele próprio demonstrou que
tinha confiança e disposição na
sua capacidade de representar, sugerindo aquela cena
de abertura. Os bons atores têm dons especiais
que a escola ou o trabalho podem desenvolver mas não
podem criar. Com o filme, ficou evidente que o poeta
é também um excelente ator, que só
por acaso, ou pela força de suas outras vocações,
não se profissionalizou. A alegação
de que ele levou vantagem porque conhecia muito bem
o seu personagem e tinha o physique du rôle
não desmerece o seu trabalho, ao contrário
do que querem alguns, já que esses são
apenas elementos necessários, básicos,
a partir dos quais o ator começa a sua criação.
Em O Poeta do Castelo, Manuel Bandeira, apesar
de amador, comportou-se com o rigor e a disciplina dos
melhores profissionais. Que eu me lembre, só
umas três vezes ele perdeu a paciência.
Na seqüência do pátio, por exemplo,
quando um grande número de lixeiros apareceu
de repente, já no fim da filmagem e começou
a limpar a sujeira habitual e essencial ao cenário,
apesar dos nossos protestos. Ficamos ameaçados
de ter de filmar tudo de novo e o poeta não aceitou
bem essa solução. Resolvemos o problema
conseguindo que os lixeiros nos deixassem terminar a
seqüência para então serem filmados
no ato de limpar o pátio. Em geral, só
nas cenas de rua, quando os populares se punham à
espera conosco de que o sol aparecesse ou desaparecesse,
é que o poeta parecia silenciosamente arrependido.
Quando filmávamos dentro do seu apartamento havia
mais serenidade. Santa Rita dos Impossíveis,
a estatuazinha de gesso quebrada, todas as referências
de vida e de poesia espalhadas pelo apartamento aparecem
no filme e sobreviveram incólumes aos deslocamentos
de câmera e refletores.
Por querer bem ao poeta, fiquei gostando do filme. Acho
que o personagem resistiu bem às inabilidades
do diretor, que, hoje, reconsiderando o que fez, deixaria
que o poeta se afastasse pela avenida Presidente Wilson,
no fim do filme, lendo o seu jornal.
Joaquim Pedro de Andrade
(publicado originalmente no Diário de Notícias,
em 17 de abril de 1965)
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