ESNOBE DA RIQUEZA?

Sei, agora, por um artigo do sempre admirável Manuel Bandeira, sobre o filme em que aparecemos juntos, que ele está sendo considerados, através desse filme, por uns tantos maliciosos, uma espécie de esnobe da pobreza; e eu – ai de mim! – uma espécie de esnobe da riqueza.Pobre riqueza a deste velho morador de Santo Antônio de Apipucos, que só para atender ao pedido de um amigo fraterno concordou em que lhe fixassem em filme – em sínteses um tanto arbitrárias em que se procurou documentar antes a casa que a pessoa do escritor – uma sua manhã de vida provinciana e de trabalho suburbano.

A casa merecia, na verdade, um filme: muito mais que o morador. É uma velha casa, recuperada com dificuldade das quase ruínas em que ia já se desfazendo. Não é um mucambo de indigente nem uma cabana de pescador. Não chega, porém, a ser nenhum solar: título que às vezes lhe dão nacionais um tanto enfáticos. Nem é grandiosa, nem é rica.

Tem de precioso uns painéis portugueses de azulejo de século XIII, que de ordinário só se encontram em conventos. Entre seus móveis, alguns jacarandás antigos. E tendo a casa um bule e um açucareiro de prata também portugueses e antigos, os moradores se dão ao luxo de servir-se deles no seu café da manhã e no seu chá da tarde: chá e café frugais, como, aliás, seus almoços e seus jantares, tudo dentro dos atuais recursos da família, que são modestos. Chás e cafés brasileiríssimos: sempre com fruta-pão, inhame, cuscuz: pormenores que o filme talvez devesse ter fixado por ser justo com o esnobe.

É uma família quase em vida social, a do esnobe de Apipucos. Não pode tê-la. Raramente dá um jantar ou um almoço: faltam-lhe recursos para esses arrojos. Recebe simplesmente com aperitivos ou chás acompanhados de tapioca ou cuscuz os próprios embaixadores de países europeus no Rio de Janeiro, que, com um requinte muito europeu de apreço por simples escritores, insistem em visitá-lo, quando vêm a Pernambuco. Aliás, da família de Apipucos que forma, com o seu chefe, um todo verdadeiramente indivisível, o filme quase não dá sinal: mal aparece a dona da casa. O velho Manuel – negro de mais de oitenta anos, considerado "tio" e "avô" da família – passa como uma sombra: sem conversar com o "sobrinho". Dos filhos nem a mais remota sugestão. Nem do velho Freyre. Nem de amigos. Nem dos visitantes do Sul e do estrangeiro. Nem dos estudantes paulistas que em Apipucos às vezes se cruzam com frades de Olinda. Nem do Rio. Nem da cidade. Nem dos clubes populares de carnaval tão ligados à vida do morador de Santo Antônio de Apipucos, que, a julgar pelo filme – reparou já o escritor Jorge Amado – é um homem triste. O que – ainda segundo Jorge Amado – não é exato.

O morador de Santo Antônio de Apipucos vive hoje vida quase confortável. Mas não desconhece o que é pobreza. Não desconhece sequer o que é que é miséria. Seu livro Casa-grande & senzala, escreveu-o alimentando-se apenas uma vez por dia. Atravessava então um dos seus períodos de vida não só de pobreza mas de miséria: uma miséria que procurava esconder dos parentes e dos amigos. Mas que era miséria da mais áspera e crua.

Dificilmente pode ter hoje, já no fim da vida, o tolo esnobismo de parecer rico, quem experimentou tão completamente a pobreza e até a fome, no vigor da idade. Experiência que não costuma recordar, muito menos ostentar. Mas que não repudia. Agora que está sendo acusado (em virtude de uma apresentação cinematográfica de sua pessoa e da sua rotina de vida que, com os cortes que sofreu, parece ter resultado com efeito na pequena "deturpação" tanto do essencial da sua pessoa como do mais característico da sua rotina recifense de vida, destacada por Jorge Amado) do mais feio dos esnobismos – o de querer parecer rico – o morador de Apipucos, indevidamente chamado de "mestre" no filme do Ministério da Educação, se sente na obrigação de pôr estes pontos nos ii. E no dever de esclarecer que a vida que vive no seu subúrbio de província – vida um tanto retirada mas que de modo algum o separa do Recife – é a mais decente que lhe permitem seus recursos atuais: os direitos autorais que lhe vêm do Rio e do estrangeiro. Os quais, com a inflação, são bem modestos: tão modestos que raramente tem ele o prazer de reunir em jantares os amigos cuja companhia mais estima. Apenas em chás: é verdade que servidos em velho bule de prata.

Este esnobismo – o do bule de chá de prata – o solitário de Santo Antônio de Apipucos confessa ou admite. Que os moralistas, para quem o escritor deve ser um modelo de renúncia a todos os bens do mundo, lhe perdoem a pequena fraqueza, divulgada pelo filme organizado pelos jovens e brilhantes cineastas Joaquim Pedro de Andrade e Sérgio Montagna.


Gilberto Freyre
(publicado originalmente na revista O Cruzeiro,
ano XXXII, n.22, 12 de março de 1960, p.54
)