Cardiovitol
O ano: 1952, quando o escritor modernista já
recebia injeções de cardiovitol na veia
e arrastava os pés inchados pelos cômodos
da rua Ricardo Batista, 18, quinto andar/SP. O dia:
15 de agosto. A hora: por volta das duas horas da tarde,
enquanto se digeria o porco à pururuca servido
no almoço. Os segundos: entre um trago e outro
de um licor de jenipapo, ou entre as baforadas de um
charuto cubano. Os décimos de segundo: na brusca
névoa levantada pelos espíritos da bebida,
nos desenhos evocados pela fumaça. Talvez pressionado
pela compactação do tempo, pela certeza
da morte, pelo fio da vida, Antônio Cândido
olhou para a adoentado amigo Oswald de Andrade, o anfitrião,
e cobrou uma autobiografia. "Uma literatura
só adquire maioridade com memórias, cartas
e documentos pessoais", disse, cercado pelos
quadros e livros que o escritor mantinha em sua biblioteca
particular.
Acerto de contas
Será que Joaquim Pedro de Andrade conhecia
esta pitoresca cena quando dirigiu seus primeiros curtas,
O poeta do Castelo e O Mestre de Apipucos?
Nos filmes de estréia do cinemanovista reverbera
a voz de Antônio Cândido, ou, pelo menos,
a intuição própria de que modernismo
brasileiro e autobiografia casam perfeitamente bem.
No momento em que finalizava os filmes (1959), os dez
anos da morte de Mário de Andrade (1945) já
haviam sido comemorados. Oswald de Andrade tinha morrido
cinco anos antes (1954) e deixado a primeira parte de
sua memórias publicadas. O modernismo estava
fechando um ciclo de existência e urgia documentar
aquelas vozes, aqueles rostos individuais, sobreviventes:
Manuel Bandeira e Gilberto Freyre. Nestas duas peças,
importantes para se constatar a coerência com
que o diretor carioca construiu sua obra, escapa também
um olhar engajado na transposição para
as telas de questões já assimiladas pela
literatura brasileira desde a Semana de 22. Chegara
a hora do cinema acertar as contas com a literatura
moderna e seus criadores, seus pensadores.
Gilberto Mendonça Teles
Ligo para Gilberto Mendonça Teles. Ele não
está. Sua esposa atende, anota meu telefone.
Dez minutos depois, ele toca. Reconheço a voz
do poeta, mas ele não reconhece a minha. Lembro-lhe
de que fui seu aluno e que, em uma das aulas sobre Teoria
Literária, cometi a ousadia de lhe entregar uma
caricatura. Desenhei-o andando e com os dedos em riste.
Gilberto chegava em sala desprendendo um leve odor de
livros antigos. Um dia, tive a oportunidade de conhecer
seu apartamento e entendi o porquê: todos os cômodos
da sua casa eram forrados até o teto com mais
de dez mil volumes de livros de vários tamanhos
e épocas.
Pedi sua ajuda para entender a relação
dos modernistas com o cinema. A sétima arte parecia
não haver arrebatado nenhum de seus grandes expoentes,
os membros do Grupo dos Cinco, o que eu considerava
surpreendente, pois na década de 20 o cinematógrafo
agregava-se a todo movimento de vanguarda o dadaísmo,
o surrealismo, o experimentalismo que surgia na Europa.
Mário de Andrade chegou a utilizá-lo em
suas pesquisas folclóricas entretanto, não
se pode considerar como suas intenções
primeiras a criação de uma obra de valor
estético, mas a produção de um
documento...
Apesar de grande conhecedor do modernismo, Gilberto
confessa nunca haver estudado o movimento por esta ótica.
Cita Humberto Mauro, de passagem. Observa, entretanto,
o total desinteresse de Oswald pelas questões
"modernas" no início da carreira. Em
1912, após a sua primeira ida a Europa, voltou
ao Brasil sem ter uma noção muito clara
do futurismo. Lembrou-me da relação que
aqueles intelectuais mantinham com a tradição
barroca e colonial. Ao final orientou-me a ler o verbete
"Cinema e Literatura" contido na Enciclopédia
da Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho.
Alcovas e bibliotecas
Narrados em primeira pessoa, mostrando um dia na
vida de duas das maiores personalidades brasileiras
vivas então ( Manuel Bandeira e Gilberto Freyre
), os curtas O Poeta do Castelo e O Mestre
de Apipucos radicalizam pela imagem e pelo som os
recursos confessionais legados pelo Modernismo. Bandeira
e Freyre emprestam seu corpo e suas vozes para a farsa
da imortalidade. Encontramos nossos deuses humanos e,
por isto mesmo, admiráveis. Joaquim Pedro chegou
o mais longe que pôde na intimidade de suas personagens,
sacralizando-as em espaços que emocionam pelo
banal. Por serem escritores, se os tivesse flagrado
na alcova não os captaria em momento mais amoroso
do que em suas bibliotecas...
Idéia fixa
Uma literatura só adquire maioridade com
memórias, cartas e documentos pessoais.
Separações
Antes de entregar as cópias em DVD dos curtas,
Daniel Caetano mostrou-me um trecho de entrevista onde
Joaquim Pedro de Andrade revelava que, por motivos éticos,
resolveu lançar O Poeta do Castelo e O
Mestre de Apipucos separados. Assistindo-se aos
filmes seguidamente, entende-se a preocupação
do cineasta. Se fossem exibidos juntos, realçariam
pela ironia a vida abastada e artificial que Freyre
exibiu diante das câmeras. Haveria um choque de
personalidades cujos efeitos negativos seriam sentidos
especialmente pelo sociólogo pernambucano. O
ímpeto com que interpretou seu cotidiano de homem
casado, cercado de serviçais prontos a satisfazê-lo,
acabaria empastelado pela solidão e frugalidade
de uma vida feita nos gestos mínimos, naturais,
com que Bandeira construiu sua persona cinematográfica.
O Mestre de Apipucos acaba bruscamente, sem uma
finalização convincente. Gilberto Freyre
finge ler um livro de poesias coligidas de Manuel Bandeira,
o que não deixa dúvida quanto às
intenções iniciais de Joaquim Pedro de
Andrade. O final inconcluso parece ser o ponto vazio
em que os dois episódios se encaixariam para
compor um fluxo narrativo que levaria uma película
a outra, uma personalidade a outra. Cortando-o, o diretor
salvou a todos, inclusive a ele mesmo. O peso da experiência
malograda soltou-se para que a mais bela experiência
(auto)biográfica de nossa cinematografia viesse
à tona sozinha. O Poeta do Castelo, então,
imortalizou-se.
Confissões modernas
Não há nada mais modernista do que
uma confissão triste ou infame. Seria possível
a um escritor romântico, no Brasil, descrever-se
secamente tocando uma punheta? A um parnasiano, rir
melancolicamente de si mesmo ao saber que, no momento
em que publicassem suas memórias, todos os seus
leitores saberiam que suas hemorróidas obrigavam-no
a escrevê-las de pé, ou agachado sobre
uma efusão de ervas amazônicas? Com a Semana
de 22, a literatura brasileira amadureceu ao ponto
de assumir suas cirroses publicamente. Talvez por isso
Lima Barreto seja considerado "pré"-modernista.
Jorge Veras
Liguei para Jorge Veras. Ele tinha sido creditado
como câmera dos dois curtas. Queria saber dele
qual dos filmes foi rodado primeiro. Tinha a esperança
de que a fragilidade narrativa de O Mestre de Apipucos
fosse decorrente da inexperiência cinematográfica
de Joaquim Pedro, que o tinha filmado primeiro. Ao dar
prosseguimento ao projeto com a vida de Manuel Bandeira,
pôde aprimorar a forma mais adequada para a criação
de uma (auto)biografia cinematográfica.
Jorge Veras atendeu meio desconfiado. Na época
começava a carreira profissional e não
tinha intimidade com o diretor carioca. Foi um trabalho
pago. Lembrava-se sobretudo de Domingos de Oliveira,
cujas incertezas com relação ao futuro
profissional o haviam jogado no set de filmagem
de O Poeta do Castelo, "o primeiro filme
feito por Joaquim Pedro de Andrade". O Mestre
de Apipucos foi filmado na seqüência.
Mesmo depois de haver respondido minha pergunta – e
quebrado minhas expectativas –, continuei conversando
com ele sobre cinema. Atualmente, trabalha alugando
câmeras, chassis e material de filmagem. Está
indignado com o governo por inviabilizar a entrada de
equipamento de ponta no Brasil – lentes, sobretudo.
Os impostos, muito altos.
Cinema Novo
O que levou Freyre, um homem extremamente vaidoso,
a entregar-se a um papel histriônico de si mesmo?
Vê-lo ajeitando o topete enquanto caminha por
seu jardim particular, passeando sobre as areias da
praia da Boa Viagem, mostrando as pernas bronzeadas
pelo sol ou burilando a barriga como quem afaga um bichinho
prestes a ser saciado, provoca no espectador tremores
de riso. Bandeira expôs-se com a mesma fagulha
autodepreciativa, entretanto, as intenções
de O Poeta do Castelo concretizam-se. Não
creio que isto foi unicamente devido ao fato do criador
de Pasárgada ser "padrinho"
de Joaquim Pedro de Andrade mas, sobretudo, pelo encontro
de uma fórmula cinematográfica perfeitamente
adequada à expressividade de um poeta como Manuel
Bandeira.
(Mas não será justamente na "pose"
enquadrada com certo distanciamento, na tentativa de
contenção da exuberância de Freyre
em um espaço íntimo que reside a peculiaridade
de O Mestre de Apipucos?)
Independente da qualidade de um filme em relação
ao outro, ambos os curtas fornecem o testemunho de que
o modernismo, de corpo e alma, deixava-se absorver pelo
cinema naquele memorável ano de 1959. Se a literatura
amadureceu a ponto de proliferar em memórias,
cartas e documentos pessoais, o cinema brasileiro agora
apropriava-se de suas memórias vivas para se
tornar novo. E assim foi.
Guilherme Sarmiento
|