Ilm.
Sr.
Jean-Claude Bernardet
Cinemateca Brasileira
Prezado Senhor,
só ontem chegou às minhas mãos
a carta de V.S. de 11/9/61.
Ficaria muito honrado de participar com meus dois filmes
da mostra de curtas-metragens organizada pela Cinemateca
Brasileira no quadro da VI Bienal de S. Paulo.
A única cópia de Couro de Gato
que poderia servir nessa mostra é a cópia
standard (primeira cópia corrida, sem
marcação de luz), 35 mm, versão
francesa, que enviei à Divisão Cultural
do Itamaraty, em fins de agosto passado, através
da Embaixada do Brasil em Paris. Talvez o conselheiro
Wladimir Murtinho já tenha recebido essa cópia
e concorde em cedê-la à Cinemateca.
As intenção, método de trabalho,
etc., que influíram na realização
do documentário sobre Gilberto Freyre e Manuel
Bandeira estão mais ou menos definidos numa carta
que enviei ao dr. Paulo Emílio Salles Gomes,
não sei bem se na ocasião de aceitar a
proposta da Cinemateca para a compra de uma cópia
do filme, ou se mais tarde, na véspera de minha
partida para a Europa, em outubro ou novembro de 1960.
Mais algumas informações sobre o mesmo
filme existem numa pequena notícia que redigi
e foi publicada no Suplemento Literário de O
Estado de S. Paulo, nos primeiros meses de 1960.
Couro de Gato é uma tentativa de conciliar
vários imperativos diferentes. A falta de maiores
recursos financeiros próprios e o desejo de fazer
filmes insubmissos às exigências do capital
"profissional" de financiamento de cinema
no Rio de Janeiro decidiram que o filme seria curto.
A inexistência no Brasil de um mercado de distribuição
e exibição desse tipo de filme pediu que
as suas características de tema e ambientação
fossem capazes de interessar o público estrangeiro,
ao qual ele se destinaria com prioridade comercial.
Isso e mais nossas convicções políticas,
sensibilidade pessoal e as idéias que tínhamos
naquele momento sobre técnica e estética
de cinema foram os elementos que deram o tema, o ambiente
e o partido (?) de tratamento escolhidos em Couro
de Gato. O filme pretende ser popular, simples e
direto nos efeitos de sua construção.
Na primeira seqüência, que deveria ser longa,
ia a maior ambição do filme. Ela devia
mostrar a atividade dos meninos pobres do Rio de Janeiro,
quando chove, venta ou faz sol, labutando para ganhar
dinheiro. Teria caráter documentário,
mas seria tratada dentro de um esquema formal exato:
sempre descontinuidade de espaço, tempo e objeto,
e sempre continuidade plástica e de movimento
de uma tomada para outra.
Através da solução mais direta,
com uso dos recursos de som, se faria a passagem da
primeira seqüência, de caráter documentário,
para a segunda, de ficção bastante realista
para não destoar do material anterior, já
transformado e aproximado do segundo pela própria
encenação.
Para a caçada dos gatos escolhemos o tratamento
clássico da montagem em paralelo desenvolvida
para um vértice unificador nas cenas de perseguição,
pretendendo a precipitação do ritmo, com
quedas, quebras bruscas e retomadas de desenvolvimento
anterior do ritmo até um paroxismo final, arrematado
por uma quebra mais brusca e uma pausa longa que deveriam
abrir o andamento do epílogo. Esse tratamento
tinha vantagem de permitir que o herói do filme
fosse sempre a meninada toda, em vez de um só
representante da classe, mas por deficiência da
produção tivemos de alterar o epílogo
original e individualizar um pequeno herói, nas
últimas seqüências.
Para amarrar melhor a montagem em paralelo e tornar
os cortes de ligação necessários
antes e depois de ocorridos na tela, procuramos fazer
com que as últimas e as primeiras tomadas de
cada sub-historiazinha interagissem, no plano psicológico,
com as suas vizinhas.
Infelizmente toda essa pré-elaboração
serviu de pouco. Faltou a mim, como diretor, técnica
suficiente para pô-la em prática eficiente,
por exemplo na tentativa de obter a continuidade plástica
da primeira seqüência. A deficiência
de nossos recursos de produção contribuiu
ainda muito para desarticular essas imagens, das quais,
no filme pronto, só ficaram alguns vestígios.
Na Segunda parte, perdi quase toda a tal interação
que procurava, por efeito dos erros que cometi na marcação
do tempo e no encadeamento das cenas. Aí meu
poder foi também pouco para conter a tendência
para a caricatura manifestada pelos atores adultos.
Na seqüência do garoto e do gato branco no
topo do morro, perdi o domínio do ritmo e a própria
fluidez dos cortes para me ter deixado prender demais
nas ligações de movimento.
Mas muito mais graves do que todos esses foram os erros
de base. A tentativa de conciliar os imperativos diferentes
a que me referi antes não se fez impunemente.
Isso e mais a pré-elaboração formal
me cegaram a tal ponto que não percebi, senão
tarde demais, o convencionalismo que governou a minha
sensibilidade e a generalidade antiartística
da matéria que formava meu conhecimento sobre
os meninos da favela.
Acredito entretanto que o filme vale por sua modesta
ação política e que tem interesse,
apesar de seus defeitos, para os amadores de cinema
e o público em geral. Mário Carneiro,
que fez prodígios de fotografia com o material
limitadíssimo de que dispôs, e Carlos Lyra,
sensível e talentoso autor da música do
filme, contribuíram muito para isso.
Cordialmente,
Joaquim Pedro de Andrade
(arquivo Jean-Claude Bernardet, Cinemateca Brasileira)
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