A JEAN-CLAUDE BERNARDET, ROMA 24 SET 1961

Ilm. Sr.
Jean-Claude Bernardet
Cinemateca Brasileira

Prezado Senhor,
só ontem chegou às minhas mãos a carta de V.S. de 11/9/61.

Ficaria muito honrado de participar com meus dois filmes da mostra de curtas-metragens organizada pela Cinemateca Brasileira no quadro da VI Bienal de S. Paulo.

A única cópia de Couro de Gato que poderia servir nessa mostra é a cópia standard (primeira cópia corrida, sem marcação de luz), 35 mm, versão francesa, que enviei à Divisão Cultural do Itamaraty, em fins de agosto passado, através da Embaixada do Brasil em Paris. Talvez o conselheiro Wladimir Murtinho já tenha recebido essa cópia e concorde em cedê-la à Cinemateca.

As intenção, método de trabalho, etc., que influíram na realização do documentário sobre Gilberto Freyre e Manuel Bandeira estão mais ou menos definidos numa carta que enviei ao dr. Paulo Emílio Salles Gomes, não sei bem se na ocasião de aceitar a proposta da Cinemateca para a compra de uma cópia do filme, ou se mais tarde, na véspera de minha partida para a Europa, em outubro ou novembro de 1960. Mais algumas informações sobre o mesmo filme existem numa pequena notícia que redigi e foi publicada no Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo, nos primeiros meses de 1960.

Couro de Gato é uma tentativa de conciliar vários imperativos diferentes. A falta de maiores recursos financeiros próprios e o desejo de fazer filmes insubmissos às exigências do capital "profissional" de financiamento de cinema no Rio de Janeiro decidiram que o filme seria curto. A inexistência no Brasil de um mercado de distribuição e exibição desse tipo de filme pediu que as suas características de tema e ambientação fossem capazes de interessar o público estrangeiro, ao qual ele se destinaria com prioridade comercial. Isso e mais nossas convicções políticas, sensibilidade pessoal e as idéias que tínhamos naquele momento sobre técnica e estética de cinema foram os elementos que deram o tema, o ambiente e o partido (?) de tratamento escolhidos em Couro de Gato. O filme pretende ser popular, simples e direto nos efeitos de sua construção.

Na primeira seqüência, que deveria ser longa, ia a maior ambição do filme. Ela devia mostrar a atividade dos meninos pobres do Rio de Janeiro, quando chove, venta ou faz sol, labutando para ganhar dinheiro. Teria caráter documentário, mas seria tratada dentro de um esquema formal exato: sempre descontinuidade de espaço, tempo e objeto, e sempre continuidade plástica e de movimento de uma tomada para outra.

Através da solução mais direta, com uso dos recursos de som, se faria a passagem da primeira seqüência, de caráter documentário, para a segunda, de ficção bastante realista para não destoar do material anterior, já transformado e aproximado do segundo pela própria encenação.

Para a caçada dos gatos escolhemos o tratamento clássico da montagem em paralelo desenvolvida para um vértice unificador nas cenas de perseguição, pretendendo a precipitação do ritmo, com quedas, quebras bruscas e retomadas de desenvolvimento anterior do ritmo até um paroxismo final, arrematado por uma quebra mais brusca e uma pausa longa que deveriam abrir o andamento do epílogo. Esse tratamento tinha vantagem de permitir que o herói do filme fosse sempre a meninada toda, em vez de um só representante da classe, mas por deficiência da produção tivemos de alterar o epílogo original e individualizar um pequeno herói, nas últimas seqüências.

Para amarrar melhor a montagem em paralelo e tornar os cortes de ligação necessários antes e depois de ocorridos na tela, procuramos fazer com que as últimas e as primeiras tomadas de cada sub-historiazinha interagissem, no plano psicológico, com as suas vizinhas.

Infelizmente toda essa pré-elaboração serviu de pouco. Faltou a mim, como diretor, técnica suficiente para pô-la em prática eficiente, por exemplo na tentativa de obter a continuidade plástica da primeira seqüência. A deficiência de nossos recursos de produção contribuiu ainda muito para desarticular essas imagens, das quais, no filme pronto, só ficaram alguns vestígios. Na Segunda parte, perdi quase toda a tal interação que procurava, por efeito dos erros que cometi na marcação do tempo e no encadeamento das cenas. Aí meu poder foi também pouco para conter a tendência para a caricatura manifestada pelos atores adultos. Na seqüência do garoto e do gato branco no topo do morro, perdi o domínio do ritmo e a própria fluidez dos cortes para me ter deixado prender demais nas ligações de movimento.

Mas muito mais graves do que todos esses foram os erros de base. A tentativa de conciliar os imperativos diferentes a que me referi antes não se fez impunemente. Isso e mais a pré-elaboração formal me cegaram a tal ponto que não percebi, senão tarde demais, o convencionalismo que governou a minha sensibilidade e a generalidade antiartística da matéria que formava meu conhecimento sobre os meninos da favela.

Acredito entretanto que o filme vale por sua modesta ação política e que tem interesse, apesar de seus defeitos, para os amadores de cinema e o público em geral. Mário Carneiro, que fez prodígios de fotografia com o material limitadíssimo de que dispôs, e Carlos Lyra, sensível e talentoso autor da música do filme, contribuíram muito para isso.

Cordialmente,

Joaquim Pedro de Andrade
(arquivo Jean-Claude Bernardet, Cinemateca Brasileira)