Nos
primeiros meses de 1933, Manuel Bandeira morava ainda
no Curvelo, ocupando parte de uma casa que alugara.
A saúde precária não lhe permitia
o exercício de trabalho remunerado regular, obrigando-o
a passar deitado grande parte do dia.
Manuel costumava fazer passeios curtos pelas alturas
frescas de Santa Teresa.
Os amigos da cidade baixa se inquietavam com o isolamento
em que vivia o poeta, não se lembrando de que
a trinca do Curvelo velava por ele. Proteção
maior no bairro, era difícil que alguém
tivesse. Manuel estava sempre em casa e passeava nas
horas propícias do dia. Assim, a garotada acabara
por se aproximar dele e até o introduzira em
seus segredos.
É verdade que a disposição do espírito
dos meninos variava muito, às vezes perigosamente.
Lenin, por exemplo, "cujo sonho mais caro é o
comunismo integral". Tem sete anos apenas, mas
já me considera um infame pequeno burguês,
só porque eu nunca lhe quis dar uma fita métrica
de aço que um dia viu sobre minha mesa. Toda
vez que eu defendo, a propósito de um livro,
de um canivete, de um isqueiro cobiçado por Lenin,
o princípio de propriedade, Lenin brada com um
"toque de mal" e vai se vingar na minha porta, contra
a qual investe a pontapés e pedradas. O grito
de guerra é: "Vou esbodegar a sua porta!".
Mas, habitualmente, a trinca e o poeta se davam bem,
com ternura até.
Além das meninas, havia ainda um companheiro
de casa que poderia valer ao poeta em caso de necessidade.
Primeiro, seu Castilho, um velhinho muito discreto que
morou ali muitos anos; depois, por pouco tempo um tcheco.
Manuel sublocava um quarto da casa: o montepio que seu
pai lhe deixara era pequeno e não dava para viver.
Com seu Castilho, Manuel viveu sempre em grande harmonia.
Com o tcheco, a paz durou pouco. Eles costumavam ir
juntos ao cinema e o tcheco gostava de pagar a entrada
para o poeta. Da penúltima vez que isso aconteceu,
Manuel, contrariadíssimo avisou: "Se você
pagar outra vez a minha entrada, eu corto nossas relações".
O tcheco pagou outra vez e Manuel cortou relações
com ele.
Por essa época, para ganhar dinheiro, Manuel
conseguiu o encargo de escrever diariamente uma crônica
sobre cinema para o Diário da Noite. O
seu interesse por cinema nunca foi grande. Mas o poeta
vivia, a esse tempo, se consumindo sob o signo da Estrela
da Manhã. E Vênus costumava aparecer nas
salas escuras do cinemas: Manuel punha alguma atenção
na tela e muita ansiedade em devassar o escuro da platéia.
As crônicas para o Diário da Noite foram
escritas em janeiro, fevereiro e março de 1933.
Entre elas está o poema-filme tirado de uma notícia
do jornal. É raro encontrar alguma que seja de
fato a crítica de um filme. Quando a crônica
se limita a tratar de uma fita exibida naquelas semanas,
é sempre a história narrada, o conteúdo
humano dos tipos e das situações e sua
relação com os artistas criadores o que
interessa ao cronista.
Em troca dos close-ups (este o título
da seção que incluía sempre algumas
palavras em inglês, da gíria do cinema,
usadas, como explica o cronista, para se "ater ao standard
do gênero") em três dos close-ups,
apenas, há indicações sobre a posição
que M.B. tomava em relação ao cinema como
arte: Defendia o uso do som "As vozes não poderiam
deixar de vir enriquecer uma arte que só era
muda por carência de recursos e não por
determinação estética"; indicava,
como vantagens conseguidas com aquele progresso técnico,
a conquista do silêncio com valor expressivo,
a simplificação da técnica cinematográfica,
tornada mais concisa, mais elíptica. Achava que
cinema e teatro se repelem, ainda que à primeira
vista apresentem pontos de contato. "Mas com que arte
o cinema não tem algum ponto de contato?".
Vários close-ups tratam da personalidade
de um ator deduzida a partir dos tipos representados
por ele no conjunto de seus filmes e contêm a
revelação de constantes psicológicas,
do jeito particular de encantar, ou simplesmente de
ser, comum a todos aqueles personagens. De vez em quando,
o cronista se lembra de um episódio engraçado
vivido por ele ou por seus amigos e põe na crônica:
"Tenho o meu fraco é pela luta livre dos filmes,
a luta livre que não é esporte, mas a
que a arte empresta um evidente caráter esportivo.
Mesmo a vida, às vezes, de raro em raro, sabe
apresentar uma cena dessa em que o clássico "jeu
de main jeu de villain" aparece engrandecido pelo
lirismo, como os atos prosaicos da vida de mister Bloom
no Ulysses de Joyce.
Nunca me esquecerei de um certo réveillon
de ano-bom no Bar Nacional: pontapés a granel,
socos de todos os quadrantes, gritos, vivas, as sereias
dos jornais apitando, e no ponto mais aceso da briga
uns bêbedos de bar, com perdão para tudo,
bebendo em regozijo do ano-novo, perfeitamente indiferentes
à batalha que subvertia tudo.
No cinema, confesso que espero sempre meio thrilled
o momento em que o vilão tem que apanha do herói
bonito".
Há uma "Receita para virar Greta Garbo", inventada
por um psicanalista americano, que o cronista transcreve:
"1) Grande self-control conduzindo à;
2) impressão de que ela tem grande experiência
da vida obtida à custa de muito sofrimento e
provações, o que por seu turno cria; 3)
aquele senso de mistério que torna a pessoa fascinante,
dominadora; 4) os atributos físicos de um modo
de andar fora do comum, e, todavia, gracioso, e de uma
voz vibrante e grave, sempre controlada; 5) como resultado
de tudo isso, uma forma de sex-appeal que desperta
nos homens o chamado complexo materno".
Por Greta Garbo, aliás, Manuel tinha, e provavelmente
ainda tem, um entusiasmo particular, como se depreende
da crônica em que se explica, no princípio,
o que é o double no cinema e que continua:
"Os americanos são habilíssimos nisso
(na técnica de doublar) e a alternação
dos close-ups do verdadeiro intérprete
com long-shots e imagens à profil perdu
do duplo cria a ilusão perfeita.
Em Mata Hari, o diretor foi talvez por demais
temerário na cena em que Greta Garbo deveria
dançar quase nua o famoso bailado sagrado de
Siva com que a espiã holandesa intrujou meia
Europa. O bailado na realidade foi executado por uma
double de Garbo. Vimo-la bem de perto, em certos
momentos. Perto demais... Porque, quando a double
dava as costas à objetiva, havia que estranhar
a... o que nas costas da Garbo é pouco, é
bonitinho, e nas da outra era mais, digamos, mata-hari.
A maioria do público não percebeu nada.
Mas os verdadeiros fãs de Garbo, os que não
perdem nada do que é dela, os que sabem que ela
tem um sinalzinho debaixo de braço, e por aí
assim, esses deram logo com o erro de paisagem quando
a bailarina se virava.
Quem percebeu que o detalhe não era de Garbo?
Eis um test que, mal respondido, desqualifica
o fã para sempre".
Também, ao acrescentar um exemplo aos que Alfonso
Reyes apresentava para demonstrar a academização
da mímica norte-americana, Manuel traía
sua admiração pela Garbo: "A esses exemplos
de Alfonso Reyes eu juntaria outro que me irrita entre
todos, mais que todos: é quando a heroína
do filme está danada da vida com o galã
e este quer dar, vem dar-lhe explicações.
Aquela gente de Hollywood decretou que nesse passe most
entrancing a heroína tem que dar as costas
ao desgraçado e, nesta posição,
ouvir as primeiras frases da explicação.
Não falha uma só vez, reparem. Dá
vontade de gritar. Eu, se fosse o herói, em vez
de explicar, esbofeteava. Mesmo que fosse Greta Garbo".
As peculiaridade dos atrativos masculinos nos galãs
são também objeto de estudo do cronista:
"Wallace Reid que belo rapaz! Nunca o cinema deu um
tipo mais fascinante de mocidade masculina. Era, sem
a amargura e os ares fatais, a réplica viril
de Greta Garbo... Nada de possessing como Clark,
nem de lúbrico como John Gilbert, nem de cínico
como Robert Montgomery. Quase sem libido. O seu encanto
era indefinível como as elegâncias do espírito.
A "desejada das gentes" do conto de Machado de Assis
não quis nunca se casar com o homem que amava
por um terror puramente físico aos gestos de
amor. Se fosse com Wallace Reid a "desejada das gentes
talvez nem desse pela coisa".
O mesmo psicanalista que, estudando a Garbo, concluiu
pela possibilidade de se adquirirem os seus encantos
através do estudo cuidadoso e persistentes ajudado
por certa dose de sensibilidade artística, analisou
também o glamour de Clark Gable. Manuel,
que dinamizara o primeiro estudo, transformando-o numa
receita de extraordinário interesse para as moças,
aproveitou ainda o segundo: "Um bruto completo, de catadura
áspera e brava que tem, no entanto, não
sei que toques de ternura no seu modo de olhar sorrindo,
com o queixo enterrado, as sobrancelhas arqueadas, os
olhos parados.
Os homens que leram isso devem ter sentido que é
bem mais difícil bluffar o Clark Gable
do que para as mulheres bluffar a Garbo. Muitos
dirão, como certo amigo meu, de corpinho mirrado,
que, andando toda uma tarde a perseguir mulheres na
cidade e não tendo obtido nada até depois
das 10 horas, parou de repente e queixou-se desanimado
para o companheiro: "Falta-me o físico!"
No princípio de março, apareceu, ao lado
da seção close-up, assinada pelo
poeta, um substituto em letras grandes, "A nossa opinião",
e também subordinado ao título geral Cine-Diário.
Era matéria em que se fazia o elogio e a propaganda
dos filmes em cartaz naquela época. Manuel foi
ao jornal e reclamou. "A nossa opinião" continuou
a ser publicada. O poeta deixou por isso a sua coluna
diária. Havia ainda uns dinheiros que lhe eram
devidos. Ele não os foi buscar.
Foi por esse tempo que Manuel se mudou para a Lapa.
Joaquim Pedro de Andrade
(publicado originalmente no Correio da Manhã,
em 17 de novembro de 1956)
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