Um
dos traços característicos do documentário
brasileiro contemporâneo é a recusa em
utilizar como base de sua narrativa a chamada locução
off ou, mais precisamente, voz over,
termo técnico que designa a fala posta sobre
as imagens, e não apenas as falas que estão
fora do campo visual.
Trata-se de recusar aquilo que Jean-Claude Bernardet
chamou de "a voz do saber", um procedimento
normalmente associado aos modelos mais tradicionais
do documentário, vistos às vezes como
reacionários e ostensivamente manipuladores.
Essa recusa sinaliza também a crença na
"voz do outro" (Bernardet), voz que seria
portadora de uma "verdade" cinematográfica
revelada pelo realizador, portanto mais genuína,
menos tendenciosa (1).
É evidente que ambos os modelos não são
excludentes: há, por exemplo, narração
over nos filmes de Eduardo Coutinho, em sua grande
maioria construídos a partir da "voz do
outro". E nem se trata de afirmar aqui uma possível
evolução do documentário
brasileiro: um modelo "clássico" marcado
pela locução over sendo substituído
por um outro, que seria "moderno", fundamentado
pela conversa ou pela relação direta entre
o entrevistado e o entrevistador. Nem há fórmulas
estanques, nem se configura uma linha evolutiva. No
entanto, é possível afirmar que o recurso
à "voz do outro" se tornou, ele próprio,
um estilo cristalizado e repetido ad nauseum,
e a simples e deliberada recusa da locução
over, nos documentários recentes, pode
ser vista como uma postura tão tradicionalista
quanto a dos antigos documentários que a utilizavam.
É nesse sentido que os filmes documentais de
Joaquim Pedro de Andrade surgem hoje como exemplos de
um trabalho extremamente refinado de criação
e de artesanato fílmico, para além das
filiações a modelos "tradicionais"
ou "modernos". A utilização
da voz over na explicitação do
conflito entre o realizador e seu tema, conflito que
se revela na própria forma de sua narrativa audiovisual,
apresenta características que nos estimulam a
repensar procedimentos e escolhas do documentarismo
brasileiro recente. A obra de Joaquim Pedro, uma das
mais consistentes da geração cinemanovista,
encontra em seus documentários de curta, média
e longa-metragem alguns dos momentos mais reveladores
e autoconscientes do papel que o cineasta atribuía
a si próprio como construtor de um pensamento
crítico sobre o Brasil (2).
Interessa-me aqui lançar um olhar sobre a utilização
do texto e da locução over nos
filmes documentais Garrincha, Alegria do Povo
(1963), Cinema Novo (Improvisiert und Zielbewusst,
1967), Brasília, Contradições
de uma Cidade Nova (1967), Linguagem da Persuasão
(1970) e O Aleijadinho (1978). São trabalhos
em que a articulação entre as imagens
e a locução over, ou a "voz
do saber", se dá de forma direta, explícita.
Nesses cinco filmes, o texto lido por um locutor refere-se
às imagens que vemos na tela, comentando-as por
vezes de forma ilustrativa, às vezes alusiva,
freqüentemente irônica, quase sempre crítica.
As relações que busco estabelecer aqui
não seguem uma linha cronológica, mas
procuram identificar, entre o cineasta e seu tema, atitudes
semelhantes. É nesse sentido que, num primeiro
momento, ligo Garrincha, Alegria do Povo a Brasília,
Contradições de uma Cidade Nova; em
seguida, detenho-me em um "caso à parte",
Linguagem da Persuasão, para logo depois
relacionar Cinema Novo a O Aleijadinho (3).
A base "literária" (o texto lido em
voz over) e a base "cinematográfica"
(as imagens) criam relações muitas vezes
pautadas pelo conflito e pela contradição:
o que salta para o primeiro plano não são
apenas os assuntos abordados ou a análise contida
no texto over, mas sobretudo o enfrentamento
entre o realizador (Joaquim Pedro) e o seu tema.
Como abordar de forma aberta e sincera personagens culturalmente
complexos (por exemplo, o artista Antônio Francisco
Lisboa, os jovens cinemanovistas) ou um determinado
espaço geográfico simbólico (Brasília)?
Qual é a maneira justa de se falar de fenômenos
de massa como o futebol (Garrincha, Alegria do Povo)
ou a publicidade (Linguagem da Persuasão)?
Em primeiro plano, portanto, nos filmes documentais
de Joaquim Pedro, nota-se o desejo de tornar claro o
papel do cineasta, do artista, como alguém que
exercita constantemente a reflexão sobre as diversas
realidades a serem filmadas.
É necessário atentar para o fato de que,
se a postura crítica e conflituada diante do
tema é um traço da personalidade de Joaquim
Pedro como documentarista, isso se deve também
a fatores concretos de produção: todos
os filmes citados foram projetos de encomenda ou nascidos
a partir de financiamentos institucionais.
Garrincha, Alegria do Povo era um projeto de
Luiz Carlos Barreto, produtor do filme, e de Armando
Nogueira, jornalista esportivo que escreve o texto da
locução over. O média Cinema
Novo foi produzido sob encomenda da televisão
alemã por K. M. Eckstein; Brasília,
Contradições de uma Cidade Nova foi
inicialmente patrocinado pela Olivetti; Linguagem
da Persuasão foi realizado para o Senac;
por fim, a Embrafilme é a produtora de O Aleijadinho,
curta que recebe apoio e colaboração do
governo do Estado de Minas Gerais e do Iphan.
O que está em jogo nesses documentários
não é apenas o gesto autoral independente,
mas o embate entre um realizador pertencente à
geração cinemanovista e o modelo dos filmes
institucionais, eixo profícuo de produção
que, na história do cinema brasileiro, remonta
àquilo que nos anos 1910-20 recebeu o nome pouco
honroso de cinema de cavação. Nos
filmes documentais de Joaquim Pedro a criação
conflituada nasce deste imperativo de produção:
nos termos dos anos 1960, o autor é também
um artesão, ou melhor, um diretor contratado.
Assim, a locução over torna-se
um dos elementos mais significativos na estrutura dos
documentários de Joaquim Pedro. Ao mesmo tempo
em que sela o contrato institucional, afirma a voz do
realizador.
Pode-se argumentar que, até meados dos anos 1960,
o som direto apresentava imperfeições
(vide "Garrincha..." e "Brasília..."),
o que justificaria a locução em estúdio;
isso, porém, não explica o fato de que
O Aleijadinho, realizado em 1978, seja, do princípio
ao fim, um filme acompanhado (ou conduzido?)
por um locutor. Em Joaquim Pedro, a narração
over é de fato uma escolha estética.
De que maneira essa voz over ao mesmo
tempo "institucional" e "autoral"
se manifesta nesses documentários? Em
primeiro lugar, ela faz parte de um aspecto mais amplo
da filmografia de Joaquim, as adaptações
literárias. Se o diálogo com a literatura
é um dos traços fundamentais da obra de
Joaquim Pedro (que adaptou Carlos Drummond de Andrade,
Mário de Andrade, Cecília Meirelles, Oswald
de Andrade, entre outros), os filmes documentais são,
digamos assim, ensaios literários levados
à tela. A prosa poética e jornalística
de Armando Nogueira é a base da homenagem-crítica
a Garrincha e ao universo do futebol; a versão
brasileira de Cinema Novo conta com um longo
texto do crítico e cineasta mineiro Maurício
Gomes Leite, um dos principais nomes da crítica
cinematográfica dos anos 1960; o curta "Brasília..."
é escrito por Luís Saia, arquiteto paulista
ligado ao Iphan, e pelo crítico, historiador
e (na época) ex-professor de cinema da Universidade
de Brasília Jean-Claude Bernardet, com colaboração
do próprio Joaquim; em Linguagem da Persuasão,
o fotógrafo e crítico cinematográfico
José Carlos Avellar assina o roteiro, enquanto
o arquiteto Lúcio Costa é o autor do texto
de O Aleijadinho.
Na escolha de cada escritor, leva-se em consideração
não apenas a autoridade que o mesmo tem sobre
o assunto, mas a sua capacidade de exercer sobre o tema
uma reflexão crítica. O jornalismo, a
crônica cinematográfica, o manifesto político,
o ensaio crítico-literário atendem ao
olhar sofisticado de Joaquim Pedro e impedem a visão
oficialesca, meramente institucional sem deixar
de atender ao tema encomendado.
De par com a escolha dos autores, há também
a participação dos que lêem os textos,
dos que emprestam sua voz ao filme. Ainda aqui, as escolhas
são significativas. Garrincha... é
narrado pelo popular locutor Heron Domingues. Quem lê
o texto de Maurício Gomes Leite em Cinema
Novo é um dos integrantes desse movimento,
o ator Paulo José (que também está
presente no filme, durante as dublagens de Todas
as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira).
Brasília..., Linguagem da Persuasão
e O Aleijadinho são lidos pelo poeta e
crítico de arte Ferreira Gullar, espécie
de locutor-fetiche do cinema novo. Na equação
entre o compromisso com os filmes documentais encomendados
e a afirmação da personalidade de seu
realizador, tão importante quanto o texto é
a voz de quem o lê.
O conflito entre Joaquim Pedro e os temas por ele abordados
varia de caso para caso. Às vezes ele se manifesta
de forma conclusiva. É o que ocorre com Garrincha,
Alegria do Povo (1963) e com Brasília,
Contradições de uma Cidade Nova (1967).
Em Garrincha..., a locução final
evidencia a tese central do filme, isto é, que
o futebol faz parte da engrenagem política. Brasília...,
por sua vez, afirma, ao fim da narração,
a discrepância entre o projeto arquitetônico
de uma cidade-modelo e a miséria da grande massa
dos trabalhadores que a construiu, o que significa também
afirmar a distância entre a "arte moderna"
e o "povo". Nesses dois filmes, o espectador
vai sendo conduzido pelo realizador ao núcleo
do olhar crítico sobre os temas. Joaquim Pedro
procura tornar evidente, até mesmo para o espectador
desavisado, que Garrincha... não é
um filme-exaltação do craque botafoguense
e que tampouco Brasília... é um
passeio elogioso pela obra de Lúcio Costa e de
Oscar Niemeyer.
O cineasta joga, portanto, com as ambigüidades
desses projetos. Em Garrincha..., por exemplo,
o futebol é também um espetáculo,
e a fotografia de Mário Carneiro e de David Neves
acentuam esse caráter ao buscarem, no estádio
do Maracanã, ângulos e enquadramentos originais
para a época (com o uso de várias câmeras,
de teleobjetivas sobre os rostos dos torcedores e enquadramentos
na altura do gramado). Mas é justamente esse
espetáculo que será desconstruído
pela montagem de Nello Melli, alternando a fluidez e
a mobilidade dos jogadores no campo com a suspensão
do tempo e da ação nos ágeis table-tops.
Nas imagens de arquivo, dribles fabulosos de Garrincha
e gols geniais de Pelé, mas também briga
e violência entre jogadores e torcedores e um
sentimento geral de solidão e de derrota.
A narração over segue esse mesmo
princípio. Inicialmente, envolve o espectador
com a figura carismática do personagem central:
"Garrincha é o nome de um passarinho alegre,
cor de terra. Este filme pretende mostrar, entre outras
coisas, que quem apelidou Manoel Francisco dos Santos
de Mané Garrincha, conhecia tanto o rapaz quanto
o passarinho. E era um poeta". Essa é a
primeira narração over do filme,
e ela surge quase aos dez minutos de projeção.
Ao longo de Garrincha, Alegria do Povo,
a voz over é apenas um dos recursos utilizados
por Joaquim Pedro em sua costura sonora. Há longos
trechos do documentário em que a voz over
desaparece. Ela marca sua presença ao apresentar
o cotidiano de Mané Garrincha em Pau Grande,
nos treinos no Botafogo e também ao explicar
procedimentos de filmagem, como na seqüência
em que uma câmera escondida acompanha o jogador
pelas ruas do centro do Rio. A voz over está
bastante presente nas seqüências que narram,
em ordem cronológica inversa, os jogos do Brasil
nas Copas de 1962, 1958 e 1950 e terminam na denúncia
do misticismo, da miséria e da alienação,
quando então o estilo poético de Armando
Nogueira, que relaciona o jogador ao passarinho, fala
das "outras coisas" que o filme pretendia
mostrar, carregando no tom sociológico típico
da "voz do saber": "[...] o povo usa
o futebol para gastar o potencial emotivo que acumula
por um processo de frustração na vida
cotidiana. O universo lúdico do estádio
é um campo mais cômodo para o exercício
das emoções humanas".
O mesmo procedimento está presente em Brasília,
Contradições de uma Cidade Nova. A
beleza arquitetônica da cidade é evidenciada
pelos elegantes movimentos de câmera, com travellings
suntuosos pelas grandes avenidas e pelos palácios
da Capital. Todo esse conjunto é comentado pela
voz over, como se se tratasse de um documentário
institucional sobre a região. Mas aos poucos,
o tom aparentemente neutro é substituído
por comentários críticos: "Em Brasília
é freqüente o conflito entre arquitetura
e ornamentação; entre a concepção
do arquiteto e o gosto do morador". Essa frase,
dita ainda nas primeiras seqüências do curta,
traduz um dos problemas centrais enfocados por Joaquim
Pedro e que reaparecerá, com vigor, ao final
do filme: "Brasília encarna o conflito básico
da arte brasileira, fora do alcance da maioria do povo".
Em um determinado momento, o documentário sofre
uma reviravolta, e, ao som de Viramundo, canção
cantada por Maria Bethânia, rumamos para as cidades-satélite,
nas quais a pobreza e o abandono predominam. Os travellings
em planos gerais sucedem-se, e há como que uma
segunda apresentação da Capital
Federal. A voz over abandona por completo o tom
distanciado: "Ao fim de uma viagem que dura em
média três horas, os operários chegam
ao lugar onde residem, as chamadas cidades-satélite
ou cidades-dormitório. Nascidas espontaneamente
ou traçadas pelos tratores nas amplas áreas
desertas em torno da Capital, essas cidades se desenvolvem
horizontalmente segundo o esquema urbanístico
ultrapassado, em tudo oposto ao plano de Brasília".
Nessas cidades, a câmera passa a ser usada na
mão, e não mais no tripé e nos
trilhos, e a denúncia que interessa a Joaquim
Pedro enfim se concretiza. Da mesma maneira, o texto
lido por Ferreira Gullar acompanha esse percurso. Em
sua primeira parte descreve a força, a originalidade,
a funcionalidade do projeto de Costa e Niemeyer, para,
aos poucos, apontar as contradições a
que se refere o título. A bem-cuidada narração
de Gullar passa a dividir espaço com o som direto
dos operários e camponeses. Ambos os registros
são em tudo diversos: a locução
limpa e clara do estúdio contrasta com a balbúrdia
e o gaguejar das vozes dos depoentes, muitas vezes sujas
pelo ruído do motor da câmera. Temos aqui,
no plano sonoro, o equivalente ao contraste na imagem
entre os travellings elegantes na Brasília
dos poderosos e a irrequieta câmera na mão
nos casebres e nas feiras das cidades-satélite.
O caso de Linguagem da Persuasão (1970)
apresenta características diversas de Garrincha...
e de Brasília.... Trata-se de um filme
em que a visão crítica sobre o tema é
logo no início exposta pela narração,
de forma aliás bastante direta, sem concessões.
Assim que o filme começa, o espectador é
interpelado pelo texto, chamado a se posicionar diante
do tema. A "voz do saber" (isto é,
o filme) dirige-se ao espectador (a quem trata por "você")
como alguém que busca despertá-lo da inconsciência
em que vive: "A todo instante um cartaz ou uma
vitrine pede que você olhe e obedeça".
A estratégia é mimetizar a linguagem publicitária
tal como ela era trabalhada nos anos 1960-70. Sucedem-se
verbos imperativos ("Compre. Beba. Fume.")
e frases curtas como slogans ("O supérfluo
é essencial"). Esses recursos não
atendem a uma função meramente informativa,
como se o realizador quisesse com isso apenas demonstrar
o que é ou como age a publicidade. Ao contrário:
a idéia é desnudar e fazer voltar contra
a própria publicidade a sua linguagem persuasiva.
Nesse processo, o alvo é o espectador, visto
ao mesmo tempo como interlocutor principal do filme
e vítima constante da chamada indústria
de comunicação de massas (rádio,
imprensa, out-doors, jingles e toda a
sorte de produtos televisivos, de novelas a anúncios
de sabão em pó). O cinema é mencionado
numa rápida passagem do texto mas, como bem observa
Luciana Araújo, está curiosamente ausente
das imagens (4).
Por conta dessa urgência em denunciar os aspectos
negativos do tema abordado (a publicidade), percebe-se
em "Linguagem..." uma curiosa inversão
em relação a Garrincha... e a Brasília....
Enquanto nesses dois últimos existe inicialmente
espaço para a simpatia e o envolvimento contemplativo
do realizador em relação ao jogador de
futebol ou à arte de Costa e Niemeyer, em Linguagem
da Persuasão o ponto de partida já
é o ataque, suavizado aqui e ali pela beleza
de uma atriz ou modelo que atravessa todo o filme, a
olhar vitrines, escorregar em tobogãs e escolher
produtos em supermercados. Mas quase sempre o tom é
de franca antipatia ou até mesmo de desprezo,
o que surpreende em um institucional feito para o curso
de comunicação visual do Senac. Nas seqüências
finais do filme o texto negocia com a encomenda: "O
mundo moderno tem necessidade de escolas para formação
dos desenhistas de sua nova imagem". A ambigüidade,
porém, é preservada, pois tais "técnicos",
diz o locutor, podem ser os "responsáveis
pelo sucesso comercial no lançamento de um produto,
ou pela adesão em massa a uma nova idéia".
Ou seja: da Coca-Cola ao fascismo, tudo é propaganda.
Se o cinema estava praticamente ausente de Linguagem
da Persuasão, ele já reinava absoluto
em Cinema Novo, filme de 1967 realizado antes
de Brasília, Contradições de
uma Cidade Nova. Natural que ali não houvesse
a presença indesejável da televisão
ou da publicidade: nesse média-metragem (realizado
para o Canal 2 da televisão alemã), o
cinema aparece como um universo à parte, no qual
desfilam os jovens criadores da nova geração,
os cinemanovistas. Quando muito, há a companhia
da música popular brasileira, com Vinícius
de Moraes, Maria Bethânia e a ambiência
social da bossa-nova. No filme, nem mesmo é possível
considerar o cinema brasileiro em seu conjunto: o documentário
de Joaquim Pedro centra-se no cinema novo, ou melhor,
no cinema novo feito no Rio de Janeiro, e é como
se todo o resto não existisse. Diante de tal
tema, como exercer a crítica?
Uma das características particulares de Cinema
Novo, que o aproxima de Garrincha... mas
o distancia bastante de Brasília... e
de Linguagem da Persuasão, é certo
tom de leveza e de bom-humor. Em grande parte, esse
estado de espírito se deve ao texto e
à narração, pois a versão
brasileira de Improvisiert und Zielbewusst teve
a sorte de contar com o estilo fluente de Maurício
Gomes Leite (texto) e com a simpatia de Paulo José
(locução). Somando-se isso ao fato de
que o tema envolvia diretamente o universo de Joaquim
Pedro de Andrade (o cinema novo carioca), o resultado
é um filme que celebra alguns desses jovens cineastas-autores,
que registra amorosamente o trabalho desses jovens e
que se engaja no círculo de relações
afetivas, sociais, culturais e políticas que
geraram esse movimento. Assim, tão importante
quanto acompanhar os ensaios e as filmagens de algumas
cenas de Terra em Transe (Glauber Rocha) ou de
El Justiceiro (Nelson Pereira dos Santos), é
penetrar no Bar da Líder, em meio a chopes bem
tirados e inúmeros tira-gostos, e perguntar,
como faz a narração over, "onde
está David Neves?".
Em Garrincha..., a arte desse jogador é
elogiada, mas o futebol é posto em xeque; Brasília...
admira a inegável beleza do conjunto arquitetônico,
mas denuncia o contraste entre essa beleza e a miséria
ao redor; Linguagem... recusa, logo de saída,
o tema abordado, negando à publicidade qualquer
valor positivo. Ao contrário desses três
filmes, em Cinema Novo existe a adesão
total de seu realizador, expressa também pela
voz over que lê o texto de Gomes Leite:
os jovens diretores ali retratados são talentosos,
dinâmicos, participativos. Em uma palavra, brilhantes.
Seus filmes são os mais representativos não
só da nova geração, como na verdade
de todo o cinema brasileiro (mesmo que El Justiceiro,
Garota de Ipanema ou Todas as Mulheres do
Mundo tenham muito mais a ver com a proposta de
um cinema de público do que com a defesa de um
cinema radicalmente autoral). Em tempo: esses cineastas
pertencem sim à classe média, o que lhes
dá especial mobilidade para lidar não
só com um banqueiro como com o "povo".
No universo cultural brasileiro dos anos 1960, o cinema
novo é, enfim, a vanguarda.
Ao contrário do que possa parecer, Cinema
Novo não é um filme pernóstico
ou simplesmente cabotino. Nas imagens e na voz over,
há o registro afetivo de uma geração,
e se ela se auto-proclama essencial para aquele momento,
pelo menos há que se reconhecer essa vitalidade.
Mas a lua-de-mel entre Joaquim Pedro e seu tema
chega a um impasse, construído pela própria
narrativa estabelecida pelo roteiro. De forma sutilmente
irônica, o filme estrutura-se seguindo as etapas
de uma produção cinematográfica
de características industriais: da idéia
ao roteiro, do roteiro ao financiamento, das filmagens
à montagem, da dublagem ao lançamento
dos filmes no cinema. A locução over
anuncia com vigor e às vezes até mesmo
com uma certa pompa cada uma dessas etapas; no entanto,
o que vemos é uma série de iniciativas
marcadas pela precariedade e pelo improviso. Até
então, o humor nasce desse contraste, de uma
certa irreverência que permite louvar o fato de
que, no Brasil, é um produtor quem fotometra
a cena. Mas em uma dessas etapas a conversa fica séria
e já não há muito espaço
para a celebração do improviso e da espontaneidade:
trata-se justamente do momento em que os filmes alcançam
as telas do cinema e a questão do público conseqüentemente, do mercado é alçada
a primeiro plano.
É então que Joaquim Pedro defronta-se
com o nó crítico do tema "cinema
novo", no que é acompanhado por Maurício
Gomes Leite. A imagem de uma roleta sem bilhetes, na
entrada de um cinema que exibe A Grande Cidade
(Carlos Diegues), encarrega-se de apontar o que o texto
não diz: a ausência do público é
a ameaça maior ao projeto do cinema novo. Assim,
Joaquim Pedro volta a câmera para as ruas, e filma
o "povo", em planos frontais e laterais, enquanto
o texto diz: "O cinema novo diante do povo. O contato
ainda agressivo é procurado em filmes que tentam
descobrir a realidade brasileira. Falar de frente a
um público formado durante anos por um cinema
padrão". O problema, portanto, não
está nos filmes, mas no "público"
(ou no "povo"). É o público
que, habituado à dieta do "cinema padrão",
não acompanha a revolução iniciada
pelo "jovem cinema brasileiro", um cinema
"marcado pelo seu tempo" e que portanto é
"necessariamente político", segundo
o texto de Gomes Leite. A locução não
é derrotista ou pessimista, mas investe no tom
grave de denúncia próximo ao de um filme
como Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1964):
"Entre nós, uma dor moral e social permanece
e aumenta. Num país de conflitos, viver significa
agir. Logo, cinema".
O futebol, a arquitetura, a publicidade, todos esses
temas (que, enfim, envolvem implicitamente o cinema)
apresentam graves contradições que são
expostas e condenadas por Joaquim Pedro. Mas quando
a atividade cinematográfica é diretamente
abordada, isso não ocorre. Agir é
filmar, e o cinema novo é o único
a ser defendido. Ao enfrentar o seu próprio universo
profissional e artístico, Joaquim Pedro não
o critica internamente, mas preocupa-se em apontar nas
causas externas (o "público" ou, indiretamente,
a dominação econômica que estrangula
o mercado) os seus principais entraves.
Há um salto de onze anos entre Cinema Novo
e O Aleijadinho (1978). E há entre esses
dois filmes uma perturbadora identidade, que se expressa
justamente através desse amálgama existente
entre o cineasta e seus personagens. Em O Aleijadinho,
tal como em Cinema Novo, o envolvimento de Joaquim
Pedro com o tema é determinante. Ao contrário
de Garrincha..., de Brasília...
e sobretudo de Linguagem..., não há
o percurso que vai da apresentação aparentemente
imparcial do assunto à sua desconstrução
e crítica, ou, no caso de Linguagem da Persuasão,
uma recusa frontal. Comparado a Cinema Novo,
nem mesmo se verifica em O Aleijadinho o impasse
final que, naquele média-metragem, opunha o cinema
novo ao público. No documentário sobre
o artista mineiro tudo se passa como se entre o realizador
e seu tema houvesse total integração não
só física como espiritual.
A crítica perde espaço para a contemplação
e para a reflexão poética, muitas vezes
misteriosa, quase sempre atravessada pela dor.
Cinema Novo pode ser visto como a celebração
da juventude do artista. O Aleijadinho é
a maturidade ou, talvez, o prenúncio do seu fim.
Não que a morte seja o tema central. O que se
celebra nesse curta, como o texto de Lúcio Costa
a certa altura indica a propósito da Igreja de
S. Francisco de Assis, em Ouro Preto, é a "palpitação
de coisa viva", que resiste à perda da memória,
ao efeito devastador do tempo e da história,
aos próprios sintomas trágicos que parecem
nascer em qualquer atividade artística no Brasil,
sobretudo naquelas marcadas pelo traço da genialidade,
como é o caso de Antônio Francisco Lisboa,
o Aleijadinho. Joaquim Pedro procura captar essa tragicidade,
não a fim de desmontá-la ou de utilizá-la
como pretexto para estabelecer novas relações
críticas, mas para entendê-la e senti-la
em seu grau mais profundo.
Dentre os cinco documentários aqui examinados,
O Aleijadinho talvez seja, nesse sentido, o mais
radical. Nenhuma concessão às imagens
de arquivo, nenhuma entrevista, nem mesmo a presença
mais próxima de qualquer figura humana que pudesse
nos afastar das obras de Antônio Francisco Lisboa.
Aqui e ali, em enquadramentos em planos gerais, é
possível vislumbrar alguns pedestres nas ruas
quase desertas de Ouro Preto, S. João d’El Rei
ou Congonhas. Crianças no interior de uma igreja,
alguns carros ou ônibus que, no máximo,
atravessam a tela e somem rapidamente. A beleza estática
das esculturas e da arquitetura só é perturbada
pelo pouso ou vôo de alguns pássaros. De
resto, o que se move quase que incessantemente, em percursos
sinuosos, belos e muitas vezes surpreendentes, é
a câmera.
Tem-se com O Aleijadinho certa sensação
de clausura, talvez motivada não só pela
geografia mineira e pelos interiores dos museus e das
igrejas, mas sobretudo pela forma como Joaquim Pedro
trabalha o seu tema, recusando qualquer tipo de contato
exterior que pudesse perturbar a relação
íntima entre a câmera e as obras filmadas.
Desconsiderando as evidentes diferenças estilísticas,
há um impulso semelhante em Cinema Novo.
As cenas que se passam no Bar da Líder ou no
estúdio de dublagem, nas reuniões sociais
e musicais, nas filmagens de Terra em Transe
e de El Justiceiro, ou ainda nas amplas
casas dos jovens cinemanovistas, de certa maneira trabalham
com a idéia de que a realidade filmada no caso,
o universo do cinema novo encerra-se nela mesma. Um
mundo de contra-luzes (refletores, tela de cinema),
de penumbra (o estúdio de dublagem, a moviola),
de amplos interiores (as casas de vila reformadas ou
o apartamento de Sérgio Bernardes na zona sul
carioca), de cenários barrocos (o Parque Lage).
Espaços pelos quais desfilam jovens artistas,
ou apóstolos de um novo tempo.
Mas, como vimos, em Cinema Novo essa harmonia
interior é desestabilizada pelo próprio
"povo" ou "público". É
justamente o momento em que se fala de uma geração
atravessada pela "dor moral e social". Em
O Aleijadinho, não há tal ruptura.
O recuo no tempo é também mergulho na
criação. E a partir desse mergulho, emerge
a reflexão sobre o destino do artista, irremediavelmente
atado a seu próprio tempo.
O texto narrado por Ferreira Gullar, de autoria de Lúcio
Costa, apresenta o mesmo tipo de entrega ao tema, isto
é, à vida e à obra do Aleijadinho.
Se as imagens atêm-se às obras, procurando
eliminar ou afastar qualquer elemento exterior que pudesse
explicá-las ou representá-las, a voz over
nos leva a refletir sobre essa relação
entre a obra de um artista e o seu momento histórico.
Mais uma vez, há aí um ponto de ligação
entre O Aleijadinho e Cinema Novo, uma
vez que, no média-metragem de 1967, o que interessava
era o registro imediato da história, uma espécie
de cine-atualidade; essa mesma preocupação
em caracterizar a obra de arte como reflexo do seu tempo
existe em O Aleijadinho, e ela é posta
em primeiro plano a partir da voz over: "Naquele
meado de século [XVIII], estava-se às
vésperas de novo surto artístico, verdadeiro
Renascimento. Apesar da clausura imposta pela Metrópole,
as idéias nascidas do Enciclopedismo e o eco
das Revoluções vararam os mares, os montes
e os vales. Encontrando ambiente propício, aninharam-se
ali, no delimitado espaço urbano da Vila Rica".
Antônio Francisco Lisboa foi o homem que soube
captar, em seu próprio ofício, esse "novo
surto artístico", da mesma forma como Tiradentes
(personagem já levado às telas por Joaquim
Pedro em Os Inconfidentes, 1972), foi o responsável
pela disseminação dos "ecos"
revolucionários.
A narração acompanha cronologicamente
a trajetória do Aleijadinho. Desde o seu nascimento,
passando pela sua formação familiar/profissional,
a realização de sua "obra-prima"
(a Igreja de S. Francisco de Assis, em Ouro Preto),
a doença que o acomete, a sua entrega ao trabalho
e, por fim, sua morte. O trajeto das imagens é
também cronológico, mas enquanto Joaquim
Pedro detêm-se nas obras, a voz over nos
diz sobre o artista, não só sobre alguns
de seus traços físicos (antes e depois
da doença) como também sobre sua personalidade.
Assim, cria-se uma indissociável relação
entre a obra e o artista. O que vemos é
Antônio Francisco Lisboa.
Tamanha identificação entre a arte e o
criador transcende o universo humano e atinge o êxtase
divino. É desta forma que, em dois momentos,
a figura do Cristo é diretamente relacionada
ao Aleijadinho. Primeiramente, vemos Cristo crucificado,
sangrando em expressão de dor. A voz over
descreve a doença do escultor e revela que, a
partir daquele momento, Antônio Francisco recebe
a alcunha de O Aleijadinho. Depois, na última
seqüência, surge outra imagem de Cristo,
ainda sangrando, o corpo em chagas, mas livre da cruz,
e a voz over narra os momentos finais da vida
do Aleijadinho, quando o artista, "na sua lenta
agonia", pede ao Senhor que pouse sobre ele "seus
divinos pés". A câmera corrige para
os pés da imagem. Se no primeiro momento há
uma relação direta entre o Cristo na cruz
e o Aleijadinho, na segunda aparição da
imagem de Jesus tal relação se estabelece
entre o artista em seu sofrimento e Deus, no filme representado
por uma escultura do Aleijadinho, ou seja, por sua própria
obra, o que significa dizer: pelo próprio artista.
O Aleijadinho fecha-se assim como uma dolorosa
reflexão sobre a solidão do criador, mas
também sobre a sua capacidade de resistir, de
produzir generosamente, bem como de ultrapassar os limites
de seu tempo e de sua história.
A voz over em O Aleijadinho não
é, portanto, ilustração ou informação
complementar. Ela desempenha um papel central, comparável
ao da imagem. É ela que nos apresenta
a figura de Antônio Francisco Lisboa, figura
a partir da qual o espectador passa a se relacionar,
ao mesmo tempo em que contempla as suas obras. Mais
do que nos outros quatro documentários aqui examinados,
em O Aleijadinho a narração fornece
ao filme a sua voz, ou melhor, a sua identidade.
Luís Alberto Rocha Melo
NOTAS
1. Jean-Claude Bernardet, Cineastas
e Imagens do Povo, Ed. Brasiliense, São Paulo,
1985
2. Uma referência fundamental
para a elaboração deste texto é
o belo ensaio de Luciana Corrêa de Araújo
"Beleza e Poder: os Documentários de Joaquim
Pedro de Andrade", publicado em Documentário
no Brasil: Tradição e Transformação,
de Francisco Elinaldo Teixeira (org.), Ed. Summus, São
Paulo, 2004, pp. 227-259.
3. Os primeiros curtas documentais de
Joaquim Pedro de Andrade, O Mestre de Apipucos
e O Poeta do Castelo, ambos de 1959, não
fazem parte dessa lista. Isso se deve ao fato de que
esses dois filmes não trabalham com a "voz
do saber", mas com textos escritos e lidos pelos
próprios personagens abordados por Joaquim Pedro
(respectivamente, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira),
o que escapa ao sistema da "voz do saber",
em geral uma voz "de fora" da realidade abordada.
4. Luciana Corrêa de Araújo,
"Beleza e Poder: os Documentários de Joaquim
Pedro de Andrade", op. cit., p. 252.
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