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Temporada de festivais, mudanças
de panorama
A cada ano, o final de setembro é apenas o começo
de um período que nos prepara um determinado número
de surpresas que reinstalam determinada cinematografia no
mapa, fazem rever a carreira completa de determinado cineasta
ou obrigam a uma reconsideração de outro. Dois
festivais, muito próximos um do outro, nos atualizam
com grande parte do que é produzido a cada ano nos
quatro cantos do mundo. É um momento de algum nervosismo,
muita correria e bastante entusiasmo. Período em que
se se tem a oportunidade de se ver muita coisa e de se perder
muitas outras, a época dos festivais é quando
mais se precisa de uma característica que tanto os
cinéfilos quanto os críticos devem ter: agilidade.
Nessa época, é muito comum os freqüentadores
trocarem dicas de filmes imperdíveis, aconselharem
os amigos a evitar sob qualquer condição tal
ou tal filme ou revelarem suas expectativas sobre o filme
novo de um diretor preferido.
A cobertura de Contracampo dos festivais, anualmente transformada
em "edição dupla" porque cobre dois
meses seguidos, é realizada com esse sentimento de
urgência, com a vontade de um freqüentador que
deseja avisar a todos seus grandes amigos que X é uma
obra-prima, que Y é revolucionário, que Z é
uma decepção. Atualizações diárias,
número progressivamente crescente de títulos
cobertos em resenhas, artigos e notas, algumas entrevistas
e um quadro de estrelas às vezes providencial para
checar a opinião de seu articulista favorito, esse
é o cotidiano da revista desde que ela nasceu, há
seis anos atrás, também num festival (chamava-se,
naquele momento, Mostra Rio).
Um contato tão intenso com
tantos filmes em tão pouco tempo naturalmente modifica
a visão de certos aspectos do cinema contemporâneo
num determinado momento os filmes mais interessantes
são os que propõem novas maneiras de estruturar
uma história, outra vez pode ser a maneira de retratar
o universo íntimo dos personagens, e outra pode ser
o que se consegue com uma única unidade específica
de expressão, um plano seqüência, uma fusão
para o negro ou um trabalho diferenciado de atores. É
claro que esse estupor inicial apenas transparece na cobertura
diária do festival, para desaguar completamente na
tradicional edição de reflexão sobre
tudo que se viu, em novembro.
Em Contracampo, mesmo nossas certezas
mais ferrenhas são passíveis de revisão.
Questão da natureza de nosso amor. A arte, e o cinema
entre elas, depende em grande parte de contexto: as problemáticas
(estilísticas ou temáticas) a que cada obra
responde em determinado momento, o trabalho anterior do realizador,
a recepção no exterior e no Brasil, tudo isso
evidentemente exerce alguma influência, em diferentes
graus, caso a caso, sobre aquilo que experimentamos ao ver
os filmes que vemos e sobre os quais escrevemos. Às
vezes, sentimos que um reposicionamento é necessário
e geralmente é sempre quando algum filme nos
permite acreditar que podemos estar errados, e essa é
uma das partes magníficas da atividade.
A Vila, de M. Night Shyamalan,
foi um desses e talvez o mais forte da história
da revista. Inicialmente um gosto contido, depois o repúdio,
posteriormente a admiração e, enfim, agora,
a colocação no patamar de um dos cineastas decisivos
do cinema contemporâneo. Nossas edições
são um reflexo do que fazemos, e nada mais natural,
então, do que retrospectar a breve carreira desse diretor
de 34 anos para tentar entender aquilo que nos fascina tanto
nesse cineasta que parece perturbar tanta gente e maravilhar
muitos outros.
Ver em retrospecto a carreira de um
cineasta muito mais longevo, Robert Guédiguian, também
nos faz reposicionar um monte de conceitos sobre cinema francês
recente, cinema de ação social, cinema utópico,
e permite o cruzamento com diversos percursos algo semelhantes
traçados na carreira e na temática com
diretores como Ken Loach ou Mike Leigh, por exemplo. Misturando
um desejo de falar sobre o destino da força comunitária
do comunismo nos dias de um pós- (pós-História,
pós-URSS, pós-utopia) como os de hoje com um
comovente amor por seus atores (semopre os mesmos) e por sua
cidade, Marselha, Guédiguian traça um percurso
em que coerência faz tudo menos rimar com preguiça,
e ver os filmes em seqüência permite ver um mundo
onde antes se podia pensar que houvesse apenas repetição
do mesmo (o que é bem diferente.
Os meses de setembro e outubro (com
uma coda de quase uma semana esse ano em novembro) nos possibilitarão
revisões e reposicionamentos assim? Sem dúvida
que sim. A diferença entre um bom filme e um grande
filme muitas vezes é o fato de lidar com algo completamente
inesperado até para o maior admirador. Se em nosso
panteão hoje figuram nomes como Apichatpong Weerasethakul
(presente com Mal dos Trópicos), Claire Denis
(O Intruso), Lucrecia Martel (Santa Menina),
Pedro Almodóvar (Má Educação)
que esperamos que continuem nos impressionando, existe uma
gama completa de cineastas e cinematografias que surgem e
bagunçam todo o coreto das listas e da geocinepolítica
contemporânea (quem poderia esperar que Argentina, Coréia
do Sul, China e Irã estariam entre os cinemas mais
interessantes do mundo?). Quanto mais bagunça, melhor.
Mudanças de panorama não fazem mal a ninguém.
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