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Cinema político, políticas
de cinema
Se toda ação humana é em si política,
sempre nos pareceu em Contracampo muito empobrecedor o conceito
de "cinema político". Se (quase) todos os
filmes lidam com a relação entre pessoas e supõem
o contato dessas pessoas através de códigos
de valores socialmente partilhados, é fácil
entender de uma vez por todas que todo cinema é político.
Se alguns são mais facilmente reconhecíveis
e classificáveis como tal � filmes que lidam de forma
direta com a "coisa pública" ou com instâncias
de decisão e injustiça social �, isso não
implicará jamais que sejam mais eficazes na sua permanência
no mundo para fora da tela � no seu efeito, afinal, político
(vale lembrar, "político" vem de polis,
que significa cidade e, por extensão, a sociedade).
Coincidentemente, neste mesmo mês, dois eventos movimentaram
um possível circuito do cinema mais rasteiramente visto
como político: o lançamento de Fahrenheit
11 de Setembro, de Michael Moore, e a mostra de "cinema
engajado" (outro termo complicado toda vida) De Olhos
Bem Abertos, no CCBB-RJ. Ambos repercutiram na revista ao
longo do mês: o primeiro, numa longa troca de comentários
calorosos entre redatores e leitores no nosso Contra-blog
(a partir do texto publicado na seção de Críticas);
e o segundo numa cobertura simultânea também
sediada no Plano Geral. E ambos continuam sendo parte desta
edição, em textos que repensam aspectos importantes,
em especial a partir de três realizadores fundamentais
que a mostra do CCBB nos permitiu assistir: o francês
Chris Marker, o cambojano Rithy Pahn e o boliviano Jorge Sanjinés,
que foi brindado com uma retrospectiva de sua pouquíssimo
vista obra (toda ela exibida em vídeo), que agora analisamos
juntamente com uma entrevista possibilitada por sua presença
no Brasil.
No entanto, como a ilustração ao lado permite
ver, Contracampo acredita que os maiores exemplares de cinema
político exibidos no Brasil no mês talvez não
sejam tão facilmente categorizados como tal: estreou,
após dois anos de geladeira, um dos filmes mais importantes
do cinema mundial recente � Plataforma, de Jia Zhang-ke.
Atitude política é afirmar a necessidade de
se conhecer e discutir o cinema deste jovem realizador chinês,
que a revista discute mais a fundo após a publicação
de crítica do filme. Mas também há um
outro realizador cujo olhar (político) sobre o mundo
� novesfora a sua e todas as artes � nunca deixou de nos surpreender
e maravilhar: o franco-suíço Jean-Luc Godard,
cujo grandioso Passion foi relançado nos cinemas
e é alvo de análise também. Em ambos
os casos, aliás, os filmes só entraram em São
Paulo: política de cinema mesmo seria levar estes filmes
fundamentais às outras cidades do país. Finalmente,
"cinema político" não é só
"cinema de esquerda" como se costuma confundir:
afinal não há filme mais obviamente político
� mesmo que se imiscua como tal � que o recém-lançado
(este sim em circuitão nacional, lógico) Olga,
de Jayme Monjardim, cujas implicações estético-temáticas
também destrinchamos este mês.
Só que neste último exemplo não é
só um cinema político que se anuncia, e sim
toda uma política de cinema. É, assim, muito
sintomático o lançamento deste filme quando
o meio cinematográfico brasileiro encontra-se em polvorosa
por conta do anúncio de um novo projeto de lei para
regular o setor audiovisual. Quando armas se levantam de parte
a parte, Contracampo assume um papel que desempenha sempre
que necessário � vide a infame querela acerca das cópias
do MAM � e, ao mesmo tempo em que continua a analisar os filmes,
também trata de questionar os mecanismos econômicos
e políticos de incentivo e fomento que dão forma
à produção audiovisual brasileira � coisa
que, mesmo lateralmente, também sempre nos interessou.
A questão deste projeto de Lei e da criação
da Ancinav � além do exagerado escândalo perpetrado
por certos setores de nosso audiovisual para afundar o projeto
antes mesmo de ele ser discutido � são os pontos mais
importantes do debate do cinema no Brasil no momento. Por
isso mesmo, decidimos não só fazer um esforço
compreensivo de tentar começar a interpretar as ações
(e as correspondentes reações), como alterar
a lógica da revista neste mês, atualizando esta
pauta quase que diariamente com o andamento dos processos
e suas repercussões no meio do cinema nacional.
Que a logomarca do Governo Federal pendente à esquerda
deste editorial não se preste a dubiedades: Contracampo
é uma revista isenta e independente, autopautada, que
estabeleceu convênio no começo deste ano com
o Ministério da Cultura. No entanto, isso nunca significou
uma "oficialização" da revista: continuamos
discutindo e criticando tudo e todos que se achasse necessário
� inclusive o próprio Governo na sua política
cultural. Dedicar pauta e espaço à discussão
do projeto de Lei e às reações a ele
não é nenhuma "contrapartida", e tampouco
o famoso tapinha nas costas tão comum e disseminado
em nossa comunidade cinematográfica nacional. Se neste
momento optamos por tomar voz na questão da regulação
do audiovisual, é porque essas decisões incidem
diretamente naquilo que mais nos interessa: na capacidade
cada vez maior de o cinema continuar a nos maravilhar, que
novos e melhores artistas tenham melhor acesso para fazer
melhores filmes, e para que esses filmes tenham visibilidade
para além de um elitista circuitinho que cada vez mais
revela sua falta de ousadia.
O que se impõe aqui é a defesa não de
um determinado projeto (no caso, esta minuta de Lei) e sim
o fato de que o setor precisa ser regulado, sob risco de acharmos
que a produção e o acesso à cultura no
Brasil andam às mil maravilhas. É importante
deixar bem claro, portanto, que Contracampo não é
"orgão oficial"; mas, como todo o meio do
cinema brasileiro (reforçando: brasileiro!), como fica
claro na pauta aqui exposta, acredita que se faz necessária
e urgente (há mais de cinquenta anos, como os anais
do Congresso Brasileiro de Cinema provam) uma ação
sobre os mecanismos gerais deste setor. Ademais, é
difícil se falar em "órgão oficial"
quando um único jornal � que coincidentemente também
é rede de televisão, de rádio, de internet...
� afirma defender os interesses "públicos"
e "do público" sobre área que afeta
diretamente empresas do mesmo grupo de que faz parte.
Boa leitura, então, e boa política
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