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Sem essa Aranha
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Persiste no cinema brasileiro uma característica bastante singular e que, se nos detivermos nela nesse especifico momento em que perdemos um dos nossos mais inventivos e talentosos cineastas, aparentará ser ainda mais nociva (e sua eliminação, ainda mais urgente). Como já afirmou o próprio Sganzerla, o nosso cinema está fadado a ser criativo e talvez por isso ele seja constantemente podado, sabotado, estrangulado. Há em nossa cinematografia fatos que comprovam ser um de seus traços marcantes o desprezo pelos seus realizadores de maior talento e a recusa de suas principais obras. Filmes que hoje fazem parte dos mais importantes títulos que compõem nossa filmografia foram muitas vezes na época de seus lançamentos (isso quando houve lançamento) rechaçados e jogados no limbo. Isso aconteceu por exemplo com Ganga Bruta e Limite, verdadeiras obras-primas que surgiram e se evaporaram sem deixar rastros em suas respectivas épocas, e que por muito pouco não se evaporaram para sempre, impedindo que novas gerações tivessem a oportunidade de admirá-las. Esses dois filmes, certamente Limite com maior intensidade, tornaram-se mesmo sem serem vistos grandes referências; criou-se um mito em volta dessas duas obras que substituía a impossibilidade de contemplá-las. Glauber Rocha, por exemplo, ainda não tinha visto o filme de Mário Peixoto quando escreveu um capítulo inteiro sobre o filme em seu Revisão critica do cinema brasileiro.
O que pretendemos frisar é que há filmes que são estupidamente rechaçados pelo ambiente em que foram gerados e que por isso são relegados ao ostracismo, a um asfixiante esquecimento e em muitos casos ao total desaparecimento. Esse procedimento consagrado pelo cinema brasileiro, o de apagar de sua História as suas obras-primas, não impede que gire em torno delas a força do mito, o que no final será o acionador responsável por trazê-las de volta aos nossos olhos. Assim como Ganga Bruta e Limite e alguns outros títulos, a produção da Belair por muito tempo carregou consigo essa classificação. O que teria sido o fenômeno Belair e qual seria a sua posição dentro do panorama do cinema experimental brasileiro? Eram perguntas impossíveis de responder tanto para pessoas nascidas a partir dos anos 70 quanto para muitos que vivenciaram o período, porque por mais que se ouvisse histórias sobre a Belair não havia os filmes, não havia o principal. Eles não foram vistos na época e continuavam sem visibilidade; pairava sobre eles somente o eterno sopro do mito.
Recentemente foram recuperadas e restauradas duas produções da Belair que estavam perdidas: Barão Olavo, o Horrível e Cuidado Madame, de Julio Bressane. Betty Bomba, a Exibicionista/Carnaval na lama, terceiro filme de Rogério Sganzerla feito na produtora carioca, entretanto, permanece até hoje sem possibilidades de recuperação. Certa vez perguntaram a Fernando Birri, quando este estava há 11 anos na moviola montando e remontando o seu filme experimental Org, se todo aquele trabalho realmente iria valer a pena, uma vez que ninguém iria ver o filme. Birri então respondeu que fazer um filme é como escrever uma mensagem, depositá-la em uma garrafa e depois jogá-la ao mar. Um dia alguém vai encontrá-la e ler o que está dentro. O valor social e cultural de uma obra independe do número de espectadores alcançados, o seu potencial revolucionário permanecerá inalterado e sempre agirá na pessoa que com ela travar contato . A sua força transcende o fato de ter sido pouco vista e de ter tido o seu acesso bloqueado. Foi isso o que aconteceu com a Belair e é o que ocorre, hoje e sempre, com Sem Essa Aranha.
A grande força que persiste em cada fotograma de Sem Essa Aranha pode ser avaliada e explicada sob diferentes aspectos. Há, porém, um que é praticamente impossível de não averiguar quando nos detemos nos filmes da Belair: o caráter de documento de seu tempo. É sabido que toda obra de arte, por mais atemporal e universal que deseje ser, sempre carregará entranhado dentro de si as manchas de sua época e de seu espaço geográfico. Há obras, no entanto, que apresentam esses fatores – conscientemente ou não – de maneira incrivelmente visceral. Sem Essa Aranha é um exemplo incisivo disso porque trata-se de um filme genuinamente brasileiro. O filme exala brasilidade por todos os seus poros, de maneira natural e espontânea. Não apenas pela escolha de Jorge Loredo – comediante que representa o famoso personagem Zé Bonitinho – para interpretar o personagem titulo, ou pela aparição de Moreira da Silva e Luiz Gonzaga, dois ícones de nossa cultura popular. Qualquer platéia internacional poderá constatar diretamente que está diante de um filme autenticamente experimental e brasileiro. Um filme de exceção, feito clandestinamente em esquema de guerrilha, um filme-grito, um filme-vômito. Será que o rótulo de datado seria depreciativo para um filme que, além de apresentar em sua diegese o calor de sua época , carrega sua época também em seu esquema de produção? O momento estava claro: não era possível produzir ou era possível produzir secretamente e não exibir. Entre a opção de comprar um cinema (que chegou a ser cogitada por Bressane e Sganzerla) e fundar uma produtora, a segunda opção parecia ser a mais arriscada e, talvez por isso, a mais sedutora.
Ao privilegiarem a produção e não a circulação, os autores puderam experimentar um grau de liberdade que jamais seria permitido se eles tivessem se enquadrado no sistema. Diferentemente de seu sócio, a marginalidade para Sganzerla foi antes de tudo uma necessidade e não uma opção. Seus dois primeiros longas-metragens, O Bandido da Luz Vermelha e A Mulher de Todos, realizados na Boca do Lixo, visavam o mercado e foram grandes sucessos de bilheteria – o que possibilitou, inclusive, a maior parte do capital responsável para a criação da Belair. O ano de 1970 e suas especificidades geraram a Belair. Ao mesmo tempo em que facilmente visualizamos em Sem Essa Aranha o carimbo Brasil 1970, notamos amplos paralelos com os dias atuais. Afinal, a totalidade dos problemas nacionais anunciados permanece intacta: fome, miséria, desigualdade social e as indagações constantemente repetidas, o que é o Brasil?, o que é o brasileiro?, são mais contemporâneas do que nunca.
A busca por uma definição do que seria o Brasil e o brasileiro é primeiramente uma resposta ao anseio de auto-afirmação. Para definir um objeto é necessário antes identificá-lo, e o filme opera uma ânsia de classificação simultaneamente a uma urgência de se encontrar uma identidade. Ao mesmo tempo em que é preciso definir o Brasil, é preciso saber o que é o Brasil. Assim como Luz em O Bandido da Luz Vermelha necessitava desesperadamente saber da onde veio, saber quem era, e como válvula de escape depositava todos os seus pertences em um baú identificado com o pronome EU, aqui o individual se estende ao coletivo, é o brasileiro que precisa realmente saber quem é. Maria Gladys e Helena Ignez deslizam o dedo no mapa-múndi procurando onde se localiza o Brasil, sem encontrá-lo. Elas chegam à conclusão de que ele está fora da página, de que o país é carta fora do baralho (alusão ao filme de Sganzerla feito no exílio). Se em O Bandido a saída encontrada por Luz para sanar a sua dor de não saber quem é foi o suicídio – antecipado pelo ato de jogar o conteúdo de seu baú em um esgoto –, em Sem Essa Aranha uma alternativa à auto-aniquilação seria talvez seguir "a linha do mal". Guará, que faz o som direto, diversas vezes grita "a saída do brasileiro é a linha do mal". No plano-seqüência do camarim, Loredo diz: "vender a alma ao demônio, essa é a saída do brasileiro por enquanto", "sempre tive a impressão de que o diabo ia com a nossa cara". As frases são sempre reiteradas, a repetição é aqui um recurso habilmente utilizado . As frases sinalizam uma condição de opressão e agonia, "essa é a pior das épocas", "o sistema solar é um lixo", "êta planetinha metido a besta", "estou com fome, ai que dor de barriga", "o destino da humanidade é horripilante", sendo que a entonação, a expressão facial e o gestual de seus pronunciadores apontam ora para a anarquia (Maria Glayds e Helena Ignez) ora por um tremendo escracho (Jorge Loredo), atestando duas das principais características do cinema que por convenção foi rotulado de Marginal: a exasperação, o desespero, transmutado em diversas ocasiões na forma de um berro, enfatizando o horror daquele momento histórico; e o avacalho, o deboche como possíveis respostas ao mesmo momento.
O tom de Sem Essa Aranha é mais ríspido. O ato de avacalhar, diferentemente de O Bandido e de A Mulher de Todos, não se consome em si. Ele não é circular, ele não se recicla continuamente como a reiteração da voz off dos locutores de rádio no ultimo plano de O Bandido e do casal de farofeiros no ultimo plano de A Mulher de Todos. Aqui há um momento em que esse ato não encontra mais espaço. A frase de Villaça poderia ser substituída pela de Luiz Gonzaga, pronunciada na penúltima seqüência e endereçada diretamente aos espectadores. O músico, sério no meio de seu grupo, olha para a câmera e diz "não sei se vocês já perceberam mas estamos vivendo um anti-Brasil, não sabemos o que vai ser nem aonde vamos parar". A banda continua tocando como se estivesse presa em um ritual eterno e a música emanada por ela não cessa mesmo quando os músicos desaparecem de nosso campo de visão, sumindo no caminho que parece não ter fim. A estrada, o caminho a ser percorrido, imagem recorrente no cinema de Bressane, aparece no filme de Sganzerla com o mesmo propósito, o de enfatizar a idéia de que algo está incompleto, de que algo ainda está para ser concluído e, se ainda não foi possível vislumbrar uma saída sempre, permanecerá o anseio de encontrá-la . A música de Luiz Gonzaga funciona como um gesto de resistência que perdura mesmo sem a visualização dos músicos, assim como os gritos revolucionários da Belair ecoaram no cinema brasileiro mesmo sem a propagação de seus filmes.
A música continua no plano seguinte, em que Helena Ignez chuta e passa o pé em uma cruz, ato que dialoga diretamente com o de Aparecida, outra das atrizes do filme. Helena nega e se coloca acima do símbolo cristão como se atestasse a sua independência em relação a ele. Ela está só em um mundo em que não é mais possível constatar um chão amparando os seus pés, ela não só está em um anti-Brasil como também em um antimundo. Nesse local onde o sentido e a razão não habitam, todos os objetos sagrados são dignos de profanação . Tudo é profanável, todas as zonas proibidas precisam ser exploradas, a violação é um impulso que não deve ser contido. Aparecida, ao lado do cadáver de Aranha, pega uma garrafa e a enfia na vagina, consumando um auto-estupro. Além da violência explícita, no entanto, o ato emana também um sentimento de libertação. A profanação do corpo e da cruz são dois atos libertários pois são contra duas prisões, a da religião e a da repressão moral ao próprio corpo. Poucas cenas são tão chocantes quanto essa.
O choque como recurso estético, tão freqüentemente utilizado pela Belair, seguia uma tendência cara à arte brasileira dos anos 70 no diz respeito à superação do modelo convencional estabelecido na relação espectador-obra . O estatuto de espectador era sistematicamente violado pois, como já dizia Franz Fanon, todo espectador não passa de um covarde. Assim, tanto nas experiências do teatro Oficina, que operava uma aproximação com o espectador não apenas através da mera demolição da "quarta parede" mas também em contatos agressivos diretos com sua platéia, quanto no neoconcretismo carioca, que transgredia o conceito de obra de arte como objeto unicamente contemplativo e transformava o espectador em participador ou até mesmo em co-autor – como os ultra-sensoriais e os parangolés de Hélio Oiticica e os objetos relacionais de Lygia Clark. Na produção da Belair, além da agressão como elemento-chave para acionar o estranhamento responsável por diminuir a atitude passiva e contemplativa que define a condição clássica de espectador, há outros mecanismos utilizados, como, por exemplo, a denúncia do aparato cinematográfico. A imagem agora é desprovida de realidade, o seu estatuto de espelho do real é quebrado, sabemos que o filme é um filme e que há a presença de uma fonte produtora por trás daquilo que estamos vendo. O filme perde o seu aspecto de objeto acabado e de obra finalizada e embrulhada . Aqui, ao estarmos cientes de seu processo de realização, participamos do ato de desembrulhá-lo. Ouvimos a voz do técnico de som interagindo com a ação, a câmera choca com a cara do ator, vemos vários takes da mesma cena, o diretor batendo claquete (Família do Barulho) , vemos os atores lendo o texto em um caderno, a presença pulsante da equipe, etc.
Há uma bela cena que atesta o processo criativo da Belair como processo essencialmente coletivo. A equipe está toda refletida em um espelho, imagem que não só sinaliza a interação da equipe com a obra unindo-as em uma coisa só, como também deixa transparente a intensidade da relação daquele grupo de pessoas com o cinema. Ao se filmarem, aquelas pessoas não estão filmando só o seu umbigo, como se poderia dizer, até porque o cinema não é mais algo exterior: o cinema já se constitui em uma extensão. Esse procedimento se desprende da classificação de metalingüístico porque ele não é mais o cinema conscientemente retratando e falando sobre o próprio cinema, mas acima de tudo o registro de pessoas que o possuem como auto-referência. A Belair não executou apenas uma nova forma de se fazer cinema – equipe reduzida composta unicamente por amigos baseada no improviso e na criação momentânea, filmagens rápidas e simultâneas completando em três meses a marca de seis longas realizados – como também uma nova maneira de vivenciá-lo e de respirá-lo. A frase "o cinema a partir da vida" é então substituída pela "o cinema sendo vida". Cinema e vida são mais do que nunca uma coisa só.
Essa concepção também pode ser evidenciada através de outro procedimento recorrente nos filmes da Belair: a intervenção direta dos atores e da equipe com as pessoas da rua. Tanto em Cuidado Madame quanto em Barão Olavo, os transeuntes de Copacabana são pegos de surpresa, são transformados em figurantes ao acaso, são capturados pela câmera da mesma maneira como em um filme documental. Em Sem Essa Aranha temos a maravilhosa seqüência do morro do Vidigal, em que Jorge Loredo, agora não mais caracterizado como Aranha ou ator de teatro de revista, embora ainda seja chamado por esse nome, desce as ladeiras seguido por um séquito de curiosos. Eles interagem com a representação, riem, tocam nos atores. Em outra seqüência, os atores estão em frente a um restaurante desempenhando suas performances e os garçons estão parados no fundo, observando a encenação. O vidro que envolve o universo ficcional é sistematicamente apedrejado: estamos vendo uma representação ou o registro documental de uma representação? Estamos vendo um personagem ou somente a figura do ator? A condensação da encenação em um único plano estendido ao seu limite máximo possui muitas vezes a característica de revelar a figura humana do ator antes escondida na casca do personagem. O ator então sai e volta para a sua casca repetidas vezes sem deixar claro onde começa um e onde termina o outro.
O trabalho do ator e a construção de personagem nos filmes de Sganzerla escapam de todas as regras básicas formuladas pelos primeiros teóricos que se debruçaram sobre o assunto, pois neles o material manuseado é essencialmente outro. Antinaturalista e anti-realista por definição, o seu cinema somente poderia ser povoado por personagens desprovidos de construções psicológicas ou sociológicas. Os personagens sganzerlianos vivem fundamentalmente o instante, o exato e preciso momento de suas articulações, não existindo portanto antecedência ou projeções futuras . O presente é único e é depositado em Sem Essa Aranha na unidade espacial e temporal do plano-seqüência . As ações dos personagens, assim como o seu desenvolvimento dramático, começam e acabam em um único plano e não apresentam continuidade no seguinte. Os planos-seqüência formam blocos narrativos independentes e isolados que não interagem entre si. A não-existência da intriga faz com que os personagens não obedeçam a nenhum senso de progressão psicológica, condensando-se em tipos, em personagens facilmente identificados por seus trejeitos característicos ou por seus bordões. Sabemos que a tipificação de personagens é oriunda de uma longeva tradição teatral. Porém, a tipificação efetivada por Sganzerla está intimamente conectada às histórias em quadrinhos e aos programas humorísticos. Não se deram por acaso as escolhas de humoristas consagrados pela televisão como Pagano Sobrinho, Jô Soares ou Jorge Loredo. A habilidade no manuseio desses personagens, assim como na elaboração de seus bordões, frases e diálogos, foram indiscutivelmente umas das grandes marcas de Sganzerla. Quem não se lembra da magnífica Ângela Carne e Osso, ou do bordão de Jô Soares "eu sou um bitolado" em A Mulher de Todos? Ou dos incríveis diálogos travados entre Mojica e Wilson Gray em Abismu?
Sem Essa Aranha não é apenas o melhor e o menos visto filme de Rogério Sganzerla como também uma experiência obrigatória e urgente. Esperamos que esse filme e os demais que compõem a Belair possam ser propagados e difundidos sem mutilações para que novas gerações tenham a oportunidade de conhecer integralmente o fenômeno que foi sem dúvida um "terremoto clandestino".
Estevão Garcia |
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Jorge Loredo (Zé Bonitinho) em Sem Essa Aranha
(1970)
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