Autoria e autoridade
em xeque: auto-retrato de um país
Sem sua sequência inicial e sua sequência final,
O Prisioneiro da Grade de Ferro seria um dos mais
importantes documentários já feitos no Brasil e um dos
filmes mais impressionantes sobre seu tema, em qualquer
lugar ou época. Com estas duas sequências que inauguram
e fecham seu discurso, o filme passa desta categoria
para a de obra-prima indiscutível.
No início, uma imagem aparentemente abstrata vai se
revelando uma imensa nuvem de fumaça cor de terra e
branca. Esta nuvem se movimenta de forma estranha, e
demoramos a entender que a imagem está sendo projetada
de trás para a frente. A cada segundo e movimento, aquilo
que vemos se torna mais e mais claro: a implosão de
um prédio é mostrada no sentido inverso. E aí, com a
magia audiovisual que só o cinema poderia captar, ressurge
em nossa frente o complexo penitenciário do Carandiru:
das cinzas da sua recente implosão, ele volta à existência.
Afora o fascínio visual verdadeiro deste momento, muito
mais importante é seu significado: implodido (como se
isso fosse solução de algum problema), o Carandiru ressurge
como uma assombração - há algo de sobrenatural naquele
movimento às avessas. O Carandiru ter ido ao chão, nos
diz a sequência e o filme, nada faz para resolver ou
acabar com os problemas que ele sempre representou.
Pelo contrário, só serve para tentar esconder (numa
nuvem de fumaça) a realidade que ainda está nos presídios
e na organização social-política de todo o país. O movimento
essencial deste filme será (e daí a importância desta
sequência inicial) trazer de volta este mundo que se
pretende esconder, como o prédio ressurgindo das suas
cinzas.
Chegaremos na sequência final e sua ligação com este
início, mas antes é preciso falar do tal filme impressionante
que está no meio deste início e deste fim. O maior dos
méritos do Paulo Sacramento documentarista, que este
filme revela, é sua curiosidade e humildade imensas.
Mais importante do que ele é o seu filme e, muito mais
ainda, seus objetos de olhar. Tão importantes, mas tão
importantes, que de objeto de olhar eles viram co-realizadores
do filme. Quando Sacramento (e sua equipe) opta por
um formato de realização onde, através de workshops
com os detentos, estes aprendem a manejar o equipamento
digital e a documentar eles mesmos a sua realidade,
a importância deste procedimento não é "humanitária"
nem muito menos oportunista. Há por trás deste movimento
um reconhecimento pelo documentarista dos limites impostos
ao seu conhecimento de um ambiente ao mesmo tempo tão
particular, fechado e cheio de limites quanto é o de
um presídio. A câmera "imparcial" do documentarista
só poderia ir até um certo ponto, assim como sua capacidade
de se relacionar com aquele ambiente, em parte por motivos
práticos, e em grande parte pelo excesso de clichês
já criados no jornalismo e na ficção sobre a representação
deste espaço. Ao passar a câmera para os detentos, Sacramento
assume suas impossibilidades.
E, mais do que isso, a verdadeira importância: a passagem
de objetos a sujeitos daqueles homens retratados - eles
devem escapar da imagem simplista de marginais tanto
quanto da de coitadinhos. Eles são muito mais do que
um ou do que o outro, por serem antes de tudo homens,
indivíduos que dividem uma realidade comum sem que esta
os torne apenas símbolos ou emblemas. Tratá-los como
tal seria reproduzir os estigmas que os acompanham desde
sempre, e faria muito pouco sentido para quem buscasse
revelar algo de realmente nunca visto/ouvido/pensado
sobre este espaço. Mas, além deste movimento significar
este reconhecimento de uma limitação, ele também possui
outra característica essencial ao melhor documentarista:
saber que seu tema, seu objeto, não deve estar previamente
entendido ao ponto que se saiba que filme vai-se fazer
ao "sair de casa". A realidade é de tal modo fluida,
inconstante e complexa que qualquer filme que a use
como prova de tese pré-construída estará fadado ao fracasso
completo ou a irrelevância. Ao entregar suas câmeras
aos detentos, Sacramento faz o movimento mais difícil
de um realizador contemporâneo: questiona sua própria
autoria do material. Esta idéia estaria completamente
jogada no lixo se fosse Sacramento um realizador mais
ingênuo (ou covarde mesmo) e resolvesse esta separação
com créditos ou com uma montagem onde ficasse claro
o que no filme foi filmado por quem: onde começa um
trecho filmado por um detento, onde volta à documentação
realizada pelo diretor e sua equipe. Mas, esta não foi
a opção dele: em Prisioneiro da Grade de Ferro as
imagens são parte de um mesmo todo, e quem as captou
não faz a menor diferença porque todos (inclusive a
equipe original, o que é impressionante) assumem a mesma
voz.
A montagem do filme tem a inteligência de escapar tanto
do denuncismo barato e fácil quanto de um esvaziamento
do horror das penitenciárias. Assumindo na sua forma
a multiplicidade de sensações e experiências que vemos,
o filme toma para si o registro do quebra-cabeças formado
por fragmentos que fazem pouco sentido em si, mas muito
sentido quando vistos em conjunto (embora, neste caso,
não haverá jamais uma imagem final única a ser formada).
Por isso mesmo, o filme revela desde a alegria do jogo
de futebol e das visitas, as realidades da prática do
sexo ou religiosa, até as condições sub-humanas de celas
super-lotadas e os horrores de um atendimento médico
precário e insuficiente. O pagode, o rap, os facões
e a pinga produzida ali dentro mesmo têm o mesmo peso,
pois são todos partes de um imenso todo, e assim são
tratados pela montagem Um outro trabalho que precisa
ser muito destacado, aliás, é o da edição de som (além
da captação deste: em si, simplíssima, mas muitas vezes
prodigiosa): som e montagem nos fazem transbordar pelo
Carandiru, o tempo todo.
E, finalmente, voltamos ao já mencionado final do filme.
Após reconstruir com tal ineditismo e respeito a experiência
dos detentos deste fantasma de concreto, o filme passa
a palavra às autoridades. Primeiro, com falas de vários
ex-diretores do complexo, onde o sentimento onipresente
é o de que há algo de completamente errado num modelo
que prega a correção ou a solução quando é, obviamente,
muito mais causa e distorção. E, finalmente, a palavra
das autoridades atuais, encarnadas no governador de
São Paulo que, ao contrário da implosão inicial, discursa
na abertura de uma nova cadeia, de uma nova penitenciária.
Seu orgulho ao falar dos números de vagas para detentos
criados em seu governo, como se falasse de construção
de estradas ou escolas, é da natureza mais abjeta do
jogo das autoridades, em completo desacordo e habitante
um universo distinto de todo da realidade, que acabamos
de presenciar. Ali importa menos que seja Alckmin ou
qualquer outro nome: o que vemos é a completa distância
que separa quem decide de quem sofre as consequências.
Aquele sorriso grotesco, aquelas palmas submissas, todos
contraditos pelas palavras do padre que abençoa a inauguração
e lamenta o motivo de estar ali. Como o plano inicial,
voltamos a ver nas palavras do governador a certeza
de que o horror continua e continuará por um bom tempo.
Derrubar paredes de um presídio como se o concreto fosse
a causa do que ali dentro aconteceu (e acontece) é parte
da mesma lógica segundo a qual número de vagas em cadeias
é orgulho para governantes. Esta lógica que circunda
e oprime a realidade que vimos aprisionada no filme
entre estes dois momentos, e que torna O Prisioneiro
da Grade de Ferro um dos mais contundentes e coerentes
exemplos do discurso cinematográfico unindo forma a
conteúdo e unindo cinema a realidade.
Eduardo Valente
Filmografia
Como diretor
1991 Ave! (curta)
1994 Juvenília (curta)
2003 O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos)
Como produtor (somente os longas)
2002 Amarelo Manga, de Claudio Assis
Como montador (somente os longas)
2000 Cronicamente Inviável, de Sérgio Bianchi
2000 Tônica Dominante, de Lina Chamie
2002 Amarelo Manga
2003 O Prisioneiro da Grade de Ferro (auto-retratos)
2004 Quanto Vale ou é por Quilo, de Sérgio Bianchi (em
montagem)
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