Tradicionalmente efetuam-se
revisões críticas de obras consideradas
"grandes" sob as luzes de novos sistemas estéticos.
Ao mesmo tempo que Delacroix e Chopin passam a ser considerados
demodeés, aponta-se a modernidade de Dante,
Shakespeare ou Piero della Francesca, e talvez a situação
venha a inverter-se daqui a alguns decênios, reabilitando
muita gente através de uma nova e flagrante noção
de modernidade...
Não há nada de estranho nisso; é
assim mesmo – como disse um ensaísta francês:
"si le voies de l'art sont imprévisibles, c'est
parce que celles du hasard ne le sont pas".
Portanto, nada mais lógico do que Griffith, Stroheim,
Vidor serem cultuados pelos cinéfilos de 1965
ao mesmo tempo que Eisenstein, Bresson, De Sica e o
próprio Welles (O Processo) mergulham
no esquecimento. Talvez seja esse o destino das obras
(e autores) de arte. Conhecer o sucesso em fases esporádicas.
Brilhar hoje ou esperar pelas próximas gerações...
Mas sempre existiram destinos privilegiados, exceções.
E a exceção é Cidadão
Kane, filme e personagem.
* * *
Em Orson Welles, como em William
Blake, a beleza é a exuberância. Em todos
os sentidos: exuberância técnica, acúmulo
de personagens, de intenções históricas,
histriônicas, de montagem, exuberância do
mau gosto, e, enfim, a exuberância do cinema americano.
Pouco, muito pouco, desta película envelheceu:
realizada em 1941, ela parece apresentar privilégios
das obras excepcionais.
"- Não se pode explicar a vida de um homem por
uma palavra", diz Thompson, o repórter encarregado
de vasculhar a vida de Kane e descobrir o significado
de "Rosebud", pronunciada no leito de morte.
Da mesma forma, "não se pode explicar a vida
de um homem por um filme..."
Citizen Kane constitui, até prova em contrário,
o primeiro filme (1941) baseado em princípios
relativistas de captação do universo e
de um personagem.
O que é um filme? Segundo o Welles de 1941 é
um objeto de 119 minutos de duração, limitado
e relativo. O filme vai até onde pode. Não
consegue abranger "em absoluto" os homens e seus dilemas
interiores, a civilização americana e
sua essência barroca; isto é, não
consegue conhecê-los. No máximo apreende
alguns aspectos unilaterais e falsamente objetivos (1).
Daí a fragmentação formal. Inspirado
em novos recursos narrativos, principalmente do romance
(Faulkner, John dos Passos), Welles recusa a construção
clássica (clara e unitária), linearmente
progressiva das películas de então. Cidadão
Kane apresenta uma estrutura voluntariamente fragmentária.
Sete depoimentos mais ou menos controversos sobre Charles
Foster Kane além de outras individualidades:
cenas, planos-seqüências, personagens e efeitos
de som.
O imenso "puzzle" de que fala o repórter e que
Susan simbolicamente monta parece ser a fita em si,
ao compor um extenso painel histórico-humano,
o filme-objeto – ou filme-"puzzle" – não chega
a se completar. Falta um último fragmento: "Rosebud",
palavra ou palavra-objeto, como diria Sartre.
A fita possui uma forma aberta
(como na arte barroca e na arte contemporânea),
"incompleta"; trata-se de um jogo a ser mentalmente
organizado pelo espectador.
Orson Welles recusa as habituais cumplicidades entre
câmera e personagem, em que ambos se oferecem
integralmente um ao outro e possibilitam uma relação
direta e ideal. Em Cidadão Kane, filme
e personagem(ns) são elementos autônomos
e até adversos. O filme já não
possui estrutura fechada e definitiva, é aberto
enquanto o personagem é "fechado": invertem-se
os papéis clássicos de filme e personagem
diante do mundo.
Welles introduz um novo tratamento do personagem: neste
Suplemento (21-11-64) já tive oportunidade de
referir-me ao "herói fechado". Como se sabe,
o herói clássico requisitava a sua ilustração
frente à platéia, sendo-nos generosamente
ofertado através de análises clínicas,
lavagens cerebrais, dissecações psicológicas
ou intimistas. Ao contrário, o "herói
fechado" distancia-se de nós até tornar-nos
um núcleo inatingível – como foi tratado
este cidadão.
Para dissecá-lo restam poucas maneiras; uma delas
exige sua destruição. Aniquilado o herói,
a câmera busca depoimentos, remexe e fiscaliza
o passado. (Bandido Giuliano, A Condessa Descalça,
Assim Estava Escrito, entre outros).
Kane é apreendido em fragmentos independentes;
vive através de flashbacks, isto é,
no passado, e neste processo o tempo assume importância
capital; o herói é rompido no tempo. Esta
dialética repete-se em inúmeras obras
do cinema moderno.
Igualmente "fechados" são os personagens e objetos;
"Rosebud", o trenó, a fortuna de Kane são
elementos desconhecidos para nós. Thompson, por
exemplo, não o vemos claramente, não há
informações psicológicas sobre
a sua pessoa; é quase sempre uma presença
apagada, vista de costas, uma sombra que perscruta o
mundo, talvez a visão da História. Ou
então do cinema.
É verdade que tal tratamento corresponde ao ideal
expressionista de transformar os seres e objetos em
símbolos. Mas eles não são somente
símbolos, há algo mais. A certa altura,
"Rosebud", por exemplo, deixa de ser somente o signo
da melancolia de Kane para tornar-se, também,
um elemento de conflito, isto é, para materializar-se.
Os significados são inúmeros (símbolo
da pureza, da infância perdida, do amor e implicações
maternas, da regressão, da felicidade etc.) mas
o que é, finalmente, Rosebud? Também Welles
não intenta decifrá-lo.
O princípio da película – fornecer múltiplos
pontos de vista sobre uma mesma incógnita – aproxima-se
muito daquele tom de entrevista evidenciado em diversas
fitas modernas, chegando mesmo a instituir uma técnica
cinematográfica de reportagem. Neste sentido,
lembro algumas posições de câmera
diante do décor: um entrevistador diante
do entrevistado; a filmagem desdramatizada, em cenas
longas, de um grupo de pessoas conversando, rindo, discutindo
geralmente ao mesmo tempo (Welles não filma ações
mas discussões, agravadas posteriormente em A
Marca da Maldade e O Processo). Cidadão
Kane antecipa a "estética da conversa fiada",
característica do cinema moderno, a que se refere
o crítico J. C. Ismael.
Outro crítico, o francês Jean Domarchi,
declarou, num artigo intitulado "América", que
"para Welles ver o mundo significa falar desse mundo".
Não é à toa que Kane renuncia à
fortuna por um minúsculo matutino nova-iorquino
ou que o fio condutor da história seja um jornalista:
a fita parece, de fato, uma imensa reportagem sobre
uma grande personalidade. E como na reportagem, detém-se
em perguntar: quem é Kane? "Rosebud"? O amor,
a civilização americana? O dinheiro? Naturalmente
as respostas não são dadas: "os grandes
cineastas primam pela enunciação de problemas
e não por sua resolução", dizia
na ocasião o próprio Welles.
Outro fator de modernidade é a proximidade com
o teatro. O cineasta aproveitou a sua carreira anterior,
que movimentara fortemente Broadway e arredores, oferecendo
inéditas experiências sonoras ao cinema
de então. Neste sentido, nada mais teatral, no
cinema, do que o "estilo radionovela" adotado em algumas
seqüências, talvez em homenagem à
sua carreira de rádio.
Esquematicamente, pode-se definir esta fita como uma
híbrida junção entre reportagem
e teatro... a serviço do cinema.
Notas:
(1) Verdade é que o tratamento varia. Apesar
de tudo, o cineasta não se desligara completamente
do cinema clássico da época, como não
seria possível, de resto. O cinema clássico
infiltra-se ainda por entre o relativismo predominante,
o que é acentuado pelo fato de Welles ser um
homem a viver – e a filmar – oscilações
constantes. Cineasta de envergadura, sim, Welles não
chega a solucionar tais oscilações numa
síntese que diz procurar, encontradiça
em cineastas de primeira grandeza (Lang, Hawks, por
exemplo). Ao mesmo tempo que a fita oferece uma visão
relativa e condicionada do universo (a impossibilidade
de conhecer Kane, as limitações do nosso
mundo), pretende, no desenlace, oferecer uma visão
ideal, absurda – própria de um Deus ou de um
psicanalista... (nos momentos em que revela o segredo
da palavra). Idêntica ruptura observa-se na representação
física da mise-en-scène diante
do real; em alguns momentos a câmera localiza-se
numa altura sóbria, junto ao décor
(especialmente nas entradas), em outros ela projeta-se
de alturas inimagináveis, talvez dos "céus
da RKO", destacando os momentos em que o diretor pretende
penetrar diretamente, com a câmera, em segredos
indevassáveis (diante da "boite", do palácio
de Xanadu etc.)
Rogério Sganzerla
(Suplemento Literário d'O Estado de S. Paulo,
28 de agosto de 1965)
|