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Quem vai ficar com Ângela?
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Raros filmes têm o dom de ficar mais contemporâneos com o tempo. A Mulher de Todos é um deles. Dele, pode-se dizer que era um choque na época, que foi feito como um baque, a final liberação da mulher num cinema por demais comportado no terreno dos costumes. Fio desencapado, Ângela Carne e Osso é insubmissa, irascível, faz dos homens gato e sapato... e tanto melhor para eles. A Mulher de Todos é um filme para aqueles que jamais conseguiram entender por que Rosa tropeça e é deixada para trás por Manoel em sua busca pelo absoluto sertão-mar de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Hoje, assistir a Ângela Carne e Osso em seu frisson demoníaco não vem como um choque, mas age por um processo atemporal de identificação: Ângela é de nossa época.
Para mostrar a caretice suprema de um dado momento histórico, narrar as desventuras de um bandido esquizofrênico tentando purgar o subdesenvolvimento de um país não era radical o suficiente. Naturalmente, para criticar um conjunto de valores caducos e decretar a degenerescência total de uma vidinha média de classe média, era preciso utilizar um personagem que desprezasse como um todo a completa ordem dos valores e das ambições desse mundo. E se Luz por um momento identificou-se a esse propósito como um desesperado que invade o sacrossanto lar e viola ardentemente as mães de família, é porque ele é o anjo-demônio que vem de fora para espelhar o quão gasto anda o mundo. Só que para o espelho funcionar melhor, era preciso uma personagem que fosse tanto "de fora" quanto "de dentro", mas que estivesse mais por dentro do que todos aqueles que acham que estão por dentro estando por fora. Era preciso uma verdadeira mulher. E uma mulher de todos.
Mas uma personagem, por si só, não faz tudo isso. É preciso saber filmá-la, achar a conjugação formal perfeita para dar vazão ao extravazamento de sentido e de movimentos daqueles a quem filmamos. Uma personagem é também e acima de tudo a aproximação que a câmera tem dela, como decompõe, recompõe, decupa e integra, aproxima-se e se afasta de seu objeto. Objeto aí já nem é mais o melhor termo. Poder-se-ia falar de uma forma-Ângela que é ao mesmo tempo a atriz, o corpo atuando em seu meio, a câmera apoderando-se dessa atriz e desses movimentos, e por fim a seqüência lógica que compõem todas as ações da personagem.
Em A Mulher de Todos, a profusão de referências cinematográficas casa completamente com o gênio de Helena-Ângela. Como filmar um vulcão? Só sendo um vulcão... E é essa pecha que Rogério Sganzerla colhe para si e realiza à maravilha nessa peça ímpar dentro de sua cinematografia, como também na cinematografia do país. Os coadjuvantes do filme, pobres coadjuvantes, parecem tão retardados quanto os retrógrados filmes da época. "Benhê, paga uma cuba!" (Telma Reston e Abrahão Farc como turistas paulistas no balneário da Ilha dos Prazeres) é a resposta à cafonice pseudo-européia do cinema "elegante" paulista da época. Plirtz é a vingança contra os industriais graves da Vera Cruz e os decadentes burgueses pobremente tipificados de um certo cinema novo. Mas Plirtz é também o avatar tupiniquim de Arkadin, o panóptico todo-poderoso do Relatório Confidencial de Welles, vivido aqui em chave bitolada e grotesca. Como sempre em Sganzerla, nossa heroína avacalha. Mas, pra variar, se esculhamba no final, e se esculhamba pra valer.
Arte pop, A Mulher de Todos é irmão emprestado de Roy Lichtenstein, dos seriados de televisão, dos pornôs suecos, das histórias em quadrinhos, de Godard e dos cinemas novos, polonês (Skolimowski), japonês (Oshima) ou italiano (o Pasolini de As Bonecas). Sua profunda sabedoria é a superficialidade, o afirmar-se pleno do instante enquanto cada personagem sabe-se sem futuro e sem passado. Mas ao mesmo tempo é filme sem pai nem mãe, feito pra gente que não vai a museu (ou antes pra gente que não é museu) porque o museu imediato das avenidas & suas transversais rende muito mais. Filme único no mundo em sua estrutura, em seu tom, em sua grosseria programática (que não tem nada a ver com a grosseria burra dos personagens boçais), A Mulher de Todos paira nobre na paisagem de um cinema vigoroso e desbravador. Amamos a forma-Ângela e nos apaixonamos por Ângela... pior para nós... melhor para nós. Ângela não gosta de gente. É isso aí, porque nós também não!
Ruy Gardnier |
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Helena Ignez em A Mulher de Todos (1969) |
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