Tendo
em vista o conjunto da obra de Bob Rafelson, cineasta
profundamente fincado na cultura americana contemporânea
à época da realização de seus
filmes, As Montanhas da Lua pode parecer a princípio
um trabalho completamente deslocado. Trata-se de uma fita
de época, cuja ação transcorre entre
a África e a Inglaterra de meados do século
XIX, focada na trajetória verídica de dois
exploradores britânicos, Richard Francis Burton
(Patrick Bergen) e John Hanning Speke (Iain Glen), para
descobrir e mapear a região da nascente do Rio
Nilo, conhecida entre os nativos pelo nome mítico
que dá orígem ao título.
O que poderia, em outras
situações, render apenas um filme de ação
ligeira, acaba por se configuirar salvo falha de memória
– no melhor filme já feito sobre a exploração
colonialista do território africano. Desde uma
das primeiras sequências, na qual Speke, à
procura de Burton, tenta invadir na base do grito uma
mesquita onde este último encontra-se orando
entre os muçulmanos, Rafelson já deixa
claras as diferenças de temperamentos e objetivos
entre os dois protagonistas que daí para frente
irão direcionar o tom do filme. Temos, portanto,
o jovem e arrogante Speke, em busca de glória
e dotado de toda a postura colonialista européia,
em oposição a Burton, visto como acima
de tudo um cientista, um homem que tenta a todo custo
explorar de igual para igual as mais diversas culturas.
Apenas um filme, por sinal,
seria pouco para retrarar a grandeza da figura que foi
Richard Francis Burton, que durante quase todo o século
XIX, em missões militares, científicas
ou diplomáticas, esteve nas mais variadas regiões
do mundo, como Índia, Arábia, África
e Brasil (onde trabalhou como cônsul britânico
justamente após os fatos narrados em As Montanhas
da Lua) sempre agindo como intérprete e
divulgador das culturas locais (por exemplo, traduzindo
para o inglês obras como As Mil e Uma Noites
e Kama Sutra). Rafelson dá conta,
em duas horas e quinze, que transcorrem de forma ágil
e sem uma única sequência desnecessária,
de apresentar as principais facetas do personagem, fugindo exceto talvez pela relação entre Burton
e o africano interpretado por Delroy Lindo da lenga-lenga
políticamente correta que na época de
lançamento do filme encontrava-se em franca ascenção.
Mostra Burton como um eterno inquieto, o que o torna
bastante próximo de Robert Dupea (Jack Nicholson),
protagonista de Cada Um Vive Como Quer, seu
trabalho mais célebre.
Cerca de metade da projeção
de As Montanhas da Lua é centrada na
segunda expedição feita por Burton e Speke
em busca da nascente do Nilo, ao fim da qual Speke,
sem o parceiro que ficara retido devido a grave infecção
nas pernas, descobre um grande lago, o qual batiza de
Victoria, afirmando ser esta a nascente; informação
não confirmada por Burton, uma vêz que
Speke não disponha de bases científicas
para tal. O filme mostra, porém, que a batalha
travada perante a sociedade da Inglaterra vitoriana
foi tào árdua quanto as dificuldades impostas
pelo continente africano. E é justamente aí
que As Montanhas da Lua demonstra sua permanente
atualidade, com uma visão crítica da forma
como a imprensa e o meio acadêmico da época
promoviam suas “celebridades”, considerando o nobre,
belo e sempre disponível Speke uma figura mais
atraente e palatável para o público leitor
que o metódico, taciturno e escocês Burton.
As Montanhas da Lua
é um “filmaço” em todas as possibilidades
de abrangência do termo. Rafelson trabalha com
uma narrativa clássica, sem, entretanto, incorrer
nas limitações do academicismo que seria
de esperar em filmes de época com protagonistas
britânicos. Agora, curioso e intrigante é
verificar, após uma pesquisa na internet, que
uma fita quase unanimemente reconhecida e louvada em
suas qualidades por inúmeros textos, seja na
época de seu lançamento, seja ao longo
dos anos posteriores, teve uma repercussão menos
que modesta e permenece praticamente desconhecida das
mais diversas gamas de público. Façamos
justiça, então. As Montanhas da Lua
é nada menos que obrigatório, mesmo
que seja numa modesta cópia de VHS em tela cheia,
enquanto aguardamos, com otimismo, um lançamento
em DVD com o capricho merecido, com enquadramento respeitando
o formato 1:85 no qual foi cuidadosamente concebido.
Gilberto
Silva Jr.
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