A Liberdade na Imagem
Permeável por toda a obra de Rogério Sganzerla em sua maneira de agir nos sets, o seu tratamento com os envolvidos (atores, equipe) sempre teve uma força descomunal no resultado de seus filmes. Tendendo a uma aproximação forte com sua equipe, Sganzerla se capacitou de conseguir captar na tela aquele ambiente, independendo de toda a encenação (que nunca deixa de se fazer presente), uma espécie de sintonia local entre equipe e imagem, uma força impressionante da presença do espaço filmado (e aquilo que se fazia presente a sua volta). Uma química invejável sob qualquer aspecto. Partindo desta qualidade de rebanhos infinitos, Sganzerla iria alcançar o ápice da liberdade formal, aos poucos partindo em pedaços o artifício.

Sobretudo no período da Belair, em que Rogério e Julio Bressane filmaram seis longas-metragens em menos de três meses (além do misterioso projeto A Miss e o Dinossauro, espécie de making-of que aparentemente jamais teve saída definitiva), fazia-se constante o olhar de Sganzerla saber transformar-se no ato de filmar – a encenação que se reinventa a todo momento. Sganzerla parece nos filmes sempre estar simplesmente observando momentos, e enquanto esses atos (mesmos os menos prováveis) se realizavam, fazia o que melhor sabia: filmar. Em Copacabana Mon Amour, Helena Ignez e Lillian Lemmertz reencenam o mesmo gesto diversas vezes, repetindo falas e sentimentos, se movimentam seja numa rua movimentada, seja em um quarto fechado; a cada instante, a câmera parece jogar um novo olhar sobre o espaço filmado, mesmo sem cortes, seja pelo movimento, seja pela canção de Gilberto Gil ao fundo. Em outro momento, Guará invade as ruas do Rio de Janeiro, caminha entre pedestres, canta sentimentos existencialistas, e literalmente salta em cena; a câmera nunca o perde. Fica sempre a sensação de que tudo é muito livre em cena, seja o trabalho dos atores (mesmo quando presos aos diálogos geniais e únicos de Sganzerla), seja aquela construção de espaço presente na imagem, sem abandonar a dramaturgia mas subvertendo-a em algo único, somente compreendido após visão (e revisão) das obras do cineasta.

A montagem foi sempre algo defendido por Sganzerla como imprescindível para o cinema, trabalho sempre refletido diretamente nos seus filmes, tendo o média Isto É Noel Rosa como o exemplo perfeito disto, um filme que pertence tanto ou mais à montagem do que a qualquer outro elemento (não à toa, Rogério assinou junto o comum "um filme de" com o grande Sylvio Renoldi). Já nos tempos da Belair, esse interesse incessante de Sganzerla pela montagem se refletia mesmo nos filmes carregados de plano seqüência, e era crucial para a tal mencionada "liberdade da imagem" que parece refletir o cinema de Sganzerla. A maneira com a qual Sganzerla viria a inserir a música em suas obras iria pontuar diretamente essa preocupação, fossem as melodias de Noel Rosa, a marginália de Gilberto Gil ou a magia da guitarra de Jimi Hendrix, entre outros favoritos do cineasta. Buscando também em momentos inusitados músicas de trabalhos alheios, como o tema de Hatari, de Hawks, que acaba pontuando bem a ligação de A Mulher de Todos com o trabalho do grande cineasta americano, influência assumida. Sganzerla não teme a repetição em seus filmes. Não são só planos e encenações repetidas diversas vezes nas cenas, mas as próprias canções fazem parte parte deste movimento; Copacabana Mon Amour é o perfeito exemplo do sentimento liberto do cinema de Sganzerla, com seu cinemascope com câmera na mão, diálogos que muitas vezes dão lugares a berros, a canção de Gil ao fundo enlouquecida (como o "sol de Copacabana enlouquecendo certos cidadões"), Helena Ignez e Guará soltos em cena para pular, beijar, gritar, babar, cuspir – um verdadeiro vudu cinematográfico. O caos se emprega em cena.

Em sua última e derradeira obra-prima, O Signo do Caos, Sganzerla assume quase um sentimento autodestrutivo – se encerra com o filme pegando fogo –, acentuando ainda mais a obrigatoriedade do filme. Mais uma vez o trabalho do cineasta com os atores e a construção do espaço será impressionante: seus personagens permanecem sempre genialmente avacalhados e inseridos naquele local, ou se espalhando em cena. O filme se abre inicialmente com alguns planos mais longos, somente para que Sganzerla vá, à medida que o filme progride, martelando na montagem as cenas, chegando a causar um sentimento impressionante de incômodo, encostando o espectador contra a parede. Será o momento mais radical de Sganzerla, algo até mais pesado como experiência cinematográfica que Sem Essa Aranha, em que toda a ação se dá somente em alguns planos-seqüência.

É interessante, então, que o uso da montagem e da trilha como alegoria direta para esse sentimento de liberdade seja tão vital, ponderando que na teoria deveriam quebrar a naturalidade mais direta dos fatos; o caso é que a liberdade sganzerliana se dá na imagem, existindo enquanto cinema, sendo mais justo exclamar: "a liberdade na imagem" – nada mais natural então que a montagem ou a música sejam tão importantes e caros ao cinema do autor, como a união da comunidade em volta dos filmes, dando o tom destes momentos encantadores do cinema de Rogério Sganzerla, artista único e inimitável. Resta-nos – o mundo – buscar nossa própria (re)inventividade.

Guilherme Martins
 
Wilson Grey e Rogério Sganzerla.