"Intelectuários" e a barca do atraso em Narradores de Javé
Entre as várias questões que um filme como Narradores de Javé, de Eliane Caffé, pode suscitar, há uma que me parece particularmente interessante, não só pelo vínculo que mantém com uma específica tradição cinematográfica brasileira, como pelo grau de recorrência nos filmes atuais. Trata-se da representação do artista e do intelectual como a figura do tradutor e, em alguns casos, de aliado do "povo" (assim entre aspas, como a tornar visível uma aura mitológica sempre presente em inúmeros filmes brasileiros).
O intelectual, o jornalista e - mais difusamente - o artista, povoaram, como se sabe, o imaginário cinemanovista, sendo, em parte, reflexos da autoprojeção de seus autores sobre a realidade. Não é preciso estendermo-nos nos exemplos: O Desafio (1965), de Saraceni, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, O Bravo Guerreiro (1968), de Gustavo Dahl, Vida Provisória (1968), de Maurício Gomes Leite e Os Inconfidentes (1971), de Joaquim Pedro, são suficientes para ilustrar esta vertente temática, que se encontra, ainda, introjetada no modelo sociológico do documentário e do cinema direto, bem como em seus desdobramentos posteriores (cujo ápice são, até o momento, os filmes de Eduardo Coutinho).
A representação do intelectual no cinema surgiu com força à medida em que a própria representação da realidade social - que marcou a primeira fase do Cinema Novo - entrava em crise. Se estendermos esta análise ao jogo de identificação autor/personagem, veremos também que as contradições entre a figura manipuladora do "realizador" e - desculpem o termo desgastado - o "outro" (objeto filmado), jamais foram inteiramente superadas, permanecendo até os dias atuais, tanto no campo da ficção quanto no documentário.

No cinema brasileiro recente, a figura do intelectual e do artista como mediador surge, às vezes indiretamente, em filmes tão diversos como, por exemplo, O Judeu (1995), de Jom Tob Azulay, Baile Perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Crede-mi (1996), de Bia Lessa e Danny Roland, Policarpo Quaresma, Herói do Brasil (1998), de Paulo Thiago, Cruz e Souza, O Poeta do Desterro (1999), de Sylvio Back, Orfeu (1999), de Carlos Diegues, Cronicamente Inviável (2000), de Sérgio Bianchi, Pierre Fatumbi Verger - Mensageiro Entre Dois Mundos (2000), de Lula Buarque de Hollanda, Rocha Que Voa (2002), de Erik Rocha, Viva São João (2002), de Andrew Waddington, Abril Despedaçado (2002), de Walter Salles, Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles, Carandiru (2003), de Hector Babenco, Deus É Brasileiro (2003), de Carlos Diegues e Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento.
Há, grosso modo, duas leituras dominantes: a "visão de fora", da qual seria um exemplo Carandiru, e a "visão de dentro", cujo filme emblemático talvez seja, por sua qualidade de fenômeno pop, Cidade de Deus. No primeiro caso, o médico age como intermediário entre o "mundo de dentro e o mundo de fora"; no segundo caso, a pretensão é acompanhar a "visão de dentro" de Buscapé, o Peter Parker da favela. É evidente que tal separação entre o "dentro" e o "fora", forjada em ambos os filmes, é meramente ideológica e de maneira alguma exprime uma concretude política.

Outras leituras são e foram, de fato, possíveis - e neste exato momento me vem à cabeça um filme hoje pouco visto e reconhecido, Crueldade Mortal (1976), de Luis Paulino dos Santos. Aliás, um exercício interessante seria comparar o filme de Paulino com Dogville (2003), de Lars Von Trier, já que o sacrifício de um personagem por uma população extremamente violenta resulta em conclusões diversas, sendo o filme brasileiro bem mais dramático e sufocante do que a solução deus-ex-machina de Von Trier. De qualquer maneira, fechando esta pequena digressão, o que interessa destacar em Crueldade Mortal é um aspecto muito pouco presente nos filmes brasileiros atuais, inclusive no próprio Narradores de Javé: o "povo" visto não como um conglomerado de "pessoas boas e virtuosas", mas como individualidades contraditórias que também podem ser perversas, cruéis, preconceituosas, covardes e ignorantes - enfim, que se apresentam como de fato elas são, isto é, seres humanos.
Voltando ao filme de Eliane Caffé, ele retoma a figura do "mediador" entre a "cultura oficial" e o "povo" numa chave até certo ponto incomum - e bem diferente da que encontramos em Kenoma (1998), no qual um inventor quase medieval, isolado no tempo e no espaço, buscava aperfeiçoar a máquina do movimento perpétuo. Em Narradores de Javé, o personagem de Antônio Biá, vivido com extrema sensibilidade por José Dumont, não é um intelectual ou um artista de classe média; pertence ao outro "núcleo", que na ficção convencional é denominada de "povo", ou seja, é um sujeito pobre, ex-carteiro, de educação muito rudimentar, que sabe escrever medianamente mas supera todas essas deficiências através de sua potência criativa e inspiração poética. Biá se autodenomina, conforme seu linguajar específico e irônico, um "intelectuário".

Acontece que este "intelectuário", figura híbrida (metade "intelectual"/metade "povo"), tal como uma espécie de lobisomem ou nosferatu do sertão, vive isolado do convívio com a população de Javé, obrigado a um ostracismo depois que passou a mandar falsas cartas difamando os moradores da região, conservando, assim, seu modesto emprego nos correios. Nas mãos de Biá, escrever cartas é um perigoso ato de ficção, que o transforma num marginal e passa a ser para ele um estigma, uma maldição. Temos aqui, portanto, uma dupla variante em relação à figura tradicional do intelectual como a "voz da razão" e mediador popular. No caso de Antônio Biá, como foi dito, ele não mais pertence à classe média; por outro lado, mesmo sendo um personagem "do povo", Biá não se sente integrado a este mesmo "povo" e nem o "povo" busca agregá-lo. O único traço que une o "intelectuário" Biá aos "intelectuais de elite" da tradição cinemanovista é justamente o sentimento de marginalidade.

A cidadezinha de Javé vive, por sua vez, um momento de conflito: empresários e políticos querem fazer do pequeno município uma grande barragem, e a população naturalmente se revolta. Há uma tumultuada assembléia na igreja local e um dos "filhos da terra", que acaba exercendo o papel de líder (Nelson Xavier), tem a idéia salvadora: sugere que se escreva um livro contando as origens de Javé para que a cidade seja considerada pelos órgãos competentes um patrimônio da humanidade, sendo assim tombada pelo governo. Como a maior parte da população é iletrada, acabam tendo que recorrer ao "intelectuário" Antônio Biá, para que ele bote no papel as histórias, lendas e versões de cada um dos moradores sobre a cidade que está prestes a desaparecer. Por livre e espontânea pressão, Biá, até então entregue ao alcoolismo, aceita a incumbência e recebe das mãos de Nelson Xavier um grande livro em branco.

Neste processo de "resgate" do intelectual marginal alcoólatra, que o força a sair da sombra do imobilismo para a ação desalienante, é curioso notar a semelhança que existe entre o filme de Eliane Caffé e O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha (1969). No caso, a figura do Professor (Othon Bastos) tem evidente parentesco com o personagem de José Dumont. Em "O Dragão...", o Professor é também um alcoólatra, um marginal dentro das forças que atuam na cidade de Jardim das Piranhas, região que também vive uma fase crepuscular, com as imensas rodovias asfaltadas e seus caminhões sinalizando o avanço industrial sobre o campo, e certos símbolos míticos como o cangaço tornando-se mera fantasmagoria, resquícios de um passado já domesticado. Neste universo decadente, o Professor vive bêbado pelos bares, sofrendo o desprezo do poder político e sendo ignorado pela população. É a própria representação esquemática da fragilidade oscilante da classe média. Quando, porém, se intensifica a situação de confronto entre o poder do Coronel e as "forças populares" (representadas por alegorias como o cangaceiro Coirana, a Santa, o negro Antão, além, é claro, do próprio "povo" - sempre pano de fundo - e a personagem central de Antônio das Mortes, que toma o "partido popular"), o Professor se vê obrigado a optar por um dos dois lados da luta. Ele pega nas armas e se junta ao "povo", não sem antes ser colocado em seu "devido lugar" por Antônio das Mortes: "A gente briga junto mas de um modo diferente... Lute com a força das suas idéias."

Em Narradores de Javé, é também por fatores externos que Antônio Biá presta seus serviços a uma causa popular. Assim como o Professor glauberiano, o personagem de José Dumont mantém com a cidade uma relação de identidade, de afeto e de repulsa. O sarcasmo e a ironia conduzem as ações e os comentários de Biá, e até o final não há qualquer ato conseqüente que o reabilite como "digno de confiança" e de reconhecimento por parte da população, que o trata com justificada hostilidade. Porém, ao contrário do Professor, Biá não "pega nas armas" nem luta com a "força de suas idéias". Encarregado de escrever a história de Javé, perde-se na variedade das versões e das lendas, recusa-se a aceitar as histórias tal como são contadas, insistindo em aumentá-las (ou diminui-las), indispõe-se ou negocia vantagens com os "narradores" e, ao fim do prazo estabelecido, devolve o livro em branco. Incapaz de registrar em letras a história dos moradores e da cidade de Javé, é novamente escorraçado e marginalizado. Somente quando vê a cidade submergindo nas águas, tomado de súbito arrependimento, Biá decide empunhar o lápis e escrever a "segunda" história de Javé, que começa justamente onde o filme acaba, em novo ciclo de resistência e migração.

De forma muito hábil, Eliane Caffé mistura atores como Gero Camilo, Ruy Rezende, Nelson Xavier e o próprio José Dumont aos não-atores - os "moradores de Javé". O resultado, além de um belo trabalho de direção, serve de forma consistente ao propósito de refletir sobre o conflito entre deslocamento e integração no personagem de Antônio Biá. O padrão "forma e fundo", que domina o enfoque cinemanovista quanto à representação do "intelectual" e do "povo", é aqui retrabalhado, visando mesclar num mesmo plano de ação o "ator principal" e o "coadjuvante não-ator", ao mesmo tempo fugindo do modelo teatral predominante em Ruy Guerra (A Queda - 1976), Jorge Bodansky/Orlando Senna (Iracema, Uma Transa Amazônica - 1974) João Batista de Andrade (Gamal, o Delírio do Sexo - 1970) ou mesmo Glauber Rocha (Terra em Transe, "O Dragão...", O Leão de Sete Cabeças etc.).
Além do deslocamento e da marginalidade do personagem de José Dumont, há outros aspectos curiosos no interior do universo criado por Eliane Caffé. Em primeiro lugar, a ausência de uma caracterização objetiva das "forças contrárias ao povo" - no caso, o governo e os engenheiros que querem construir a hidrelétrica. Este é, aliás, um dos pontos mais críticos e problemáticos do filme. Narradores de Javé parece ter medo de encará-los ou mesmo de dar visibilidade a eles. Não há políticos ou autoridades em Javé, somente moradores, que se reúnem e deliberam por si próprios o que devem ou não fazer. A liderança momentânea de Nelson Xavier deve-se apenas ao fato de que ele é o mais articulado. As decisões são tomadas mediante ruidosas assembléias e votações confusas, mas nunca há uma referência explícita a qualquer autoridade política concreta.

O governo, por exemplo, só aparece no filme através de uma placa, e o único personagem que representa a "força opressiva" é um pistoleiro contratado pelos engenheiros, isto é, também um "homem do povo", que trabalha para o poder, uma espécie de Mata-Vaca, só para continuarmos nas comparações com O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro.

Mesmo os engenheiros, que estão efetivamente no filme, surgem apenas em enquadramentos oblíquos, de costas, de perfil, sem que a câmera dê a eles a chance de um diálogo. Ou seja, há uma recusa, muito comum ao cinema brasileiro da "retomada", em se filmar quem tem ou representa o "poder". No entanto - e isso é o mais inquietante -, no grupo de engenheiros um deles tem uma câmera. E com ela, filma a população que cerca o acampamento e começa a protestar. Filma os rostos dos moradores, no melhor estilo cinema direto. A textura do vídeo toma a tela inteira e os depoimentos se sucedem, ora angustiados, ora revoltados, ora desafiadores. A cena (emulação do documentário) se interrompe com o som de um tiro, e novamente caímos no terreno da "ficção pura" - diga-se de passagem, com certo prejuízo, pois a série de "depoimentos" é de fato um ponto alto do filme e a cena que se segue é bastante fraca.

Temos aqui, então, o real conflito estabelecido em Narradores de Javé: ele se dá não entre "o povo" e o "poder", mas entre os que têm ou não a posse dos meios de comunicação. Diante do livro aberto de Antônio Biá ou de uma câmera mini-DV, os "narradores" de Javé têm atitudes inteiramente diversas. No primeiro caso, há um tempo longo de formulação das histórias, o descompromisso com o imediato, a fabulação poética, a preocupação com o passado e com o lado épico das situações narradas. Diante da câmera de vídeo, todas essas sofisticadas elaborações orais desaparecem imediatamente, dando lugar ao protesto vivo, a uma certa anarquia de idéias, a uma quase histeria um tanto árida, à palavra de ordem, à reivindicação, à emoção incontrolada. Há um esvaziamento da história (como instância narrativa) para que predomine a vivência histórica do aqui-agora. Politicamente, o que interessa aos moradores de Javé não é um livro aberto, mas uma câmera de vídeo. Mas esta está nas mãos dos engenheiros, ou seja, dos "homens do governo", ou seja, da elite no poder.
A ausência perturbadora dos personagens da "elite" ganha, assim, uma explicação plausível, embora não menos problemática: ao filmar os engenheiros de costas, de perfil, ou assumindo literalmente o ponto de vista deles, Eliane Caffé identifica o próprio cinema - e, portanto, sua própria função como cineasta - à "elite", ao "poder", aos "inimigos" daquela população.
Antônio Biá, um "intelectuário", nada pode fazer com um livro escrito a lápis. Por sua vez, os que deram os "depoimentos" para a câmera do engenheiro foram apenas sugados. Nada receberão em troca e a imagem de cada um deles torna-se propriedade do governo. Eliane Caffé formula, assim, uma interessante crítica ao próprio cinema brasileiro, ou melhor, à máxima demagógica da câmera como a "janela para o mundo". A oralidade se perde quando posta no papel - a riqueza da palavra falada desaparece na série de sinais visuais que pouco interessam a uma população analfabeta. Por outro lado, a oralidade também se esvazia quando registrada em imagem e som, seja porque passa a ser substituída pelo imediatismo da televisão (que a tudo superficializa) seja porque passa a ser vampirizada pela elite que detêm os meios de produção cinematográficos. O papel do intelectual mediador fica, assim, totalmente desprovido de sentido: não serve para nada nem para ninguém, e seu produto é mera mercadoria institucional ou artesanato fadado ao desaparecimento. E quando se trata de um "intelectuário", como Antônio Biá, a situação é ainda mais trágica: o atraso o aprisiona no papel-e-lápis.

Em um filme de fácil comunicação popular, que trabalha com o humor e com algumas irônicas reflexões, Eliane Caffé é muito mais profunda em sua análise sobre a "validade" e "utilidade" de uma obra cultural do que as cínicas e auto-complacentes discussões "éticas" de um À Margem da Imagem (2002), de Evaldo Mocarzel. Estruturalmente, Narradores de Javé também segue este intuito irônico: a história de Biá não passa de uma narração, que ouvimos da boca de Nelson Xavier, no cenário miserável de um boteco de beira de rio. E esta narração é contada a um jovem de mochila, turista perdido no lugarejo, que se atrasou e não conseguiu pegar a última barca. Ao longo do filme, ele não diz nada, apenas acompanha a narrativa, tal como um espectador de cinema. E nós (incluindo a própria cineasta), duplamente espectadores, agimos como este jovem: buscamos correr para não perder a última barca que segue rio acima. E se não conseguimos, que remédio? Ficamos na margem, vendo o tempo passar, ouvindo histórias, ansiando pela chegada de outra barca que, enfim, nos tire do atraso.

Luís Alberto Rocha Melo
 
José Dumont e Nelson Dantas em Narradores de Javé