1. Expectativa.
Bob Rafelson não prepara nem o espectador mais
atento para o que acontecerá em seguida no filme.
Essa observação parece ser o que mais
distancia esses dois filmes Cada um Vive Como
Quer e O Dia dos Loucos daquilo a
que estamos acostumados a ver nos cinemas. Geralmente,
quando saímos de uma cena para outra, entendemos
para que a cena anterior serve narrativamente ao filme
e por que ela está montada em ordem com outra
para a evolução da trama e o encaminhamento
da história. Grande parte do gosto específico
dessas duas peças nada fáceis de cinema
é o fato de que elas continuamente quebram quaisquer
expectativas que venhamos a ter em relação
àquilo que estamos vendo. As seqüências
iniciais, que os manuais de roteiro afirmam precisar
caber todo o filme em miniatura e explicá-lo
em linhas gerais, fazem mais do que não dizer
o que é o filme: elas insistentemente nos colocam
pistas falsas para sua decifração. O começo
de Five Easy Pieces, depois de mostrar um dia
de trabalho de seu protagonista num campo de petróleo,
enche o áudio com a canção de Tammy
Wynette "Stand By Your Man", fazendo supor
que o filme tratará de uma questão de
superação conjugal. Falso: essa era apenas
a música que estava tocando quando o protagonista
Robert Dupea chega em casa, e o filme irá centrar-se
na dificuldade de relacionamento de Robert não
só com as mulheres, mas com a família
e, de certa forma, com a vida em geral. Igualmente com
King Of Marvin Gardens: depois da tela preta,
Jack Nicholson aparece em extremo close-up sob
fundo negro, dizendo a memorável primeira fala:
"I promised that I would tell you why I never eat
fish". Imediatamente imaginamos que se trata de
algum tipo de confissão psicanalítica,
e por um bom tempo vamos acreditando nisso, até
que a câmera abre aos poucos e uma luz vermelha
vem perturbar nossas crenças. Trata-se, afinal,
de uma improvisação literária,
e Nicholson está num estúdio de rádio,
em seu ambiente de trabalho. Esses dois filmes, OVNIs
tanto no cinema americano da época ou de hoje
(apesar do possível contato "intergalaxial"
com Monte Hellman) quanto na posterior filmografia do
próprio Rafelson, nos aparecem menos como narrativas
orquestradas do que como brutos blocos de real pedindo
a intensa participação do espectador para
sua construção. Praticamente esquecidos
hoje em dia, Five Easy Pieces e King Of Marvin
Gardens ainda dão mostra de uma profunda
e impactante modernidade (o fato de cineastas contemporâneos
decisivos construírem seus filmes a partir desses
"blocos brutos", como Hou Hsiao-hsien, Claire
Denis e Abel Ferrara, só tende a reavaliar dentro
da história do cinema os primeiros filmes de
Rafelson).
2. Elipses. Se
a lógica da montagem e da construção
narrativa desses dois filmes é apresentar blocos
"brutos", com aparência de "não-montados",
então o trabalho de elipse deve transformar-se
na matéria formal mais importante para se operar.
As eplises devem causar estranhamento, sensação
de deslocamento e impressão de não saber
para onde o filme caminha. The King Of Marvin Gardens
realiza isso espetacularmente. O corte mais estupendo
vai de uma cena com Jack Nicholson olhando o céu
(depois de conversar com seu irmão sobre planos
megalômanos para a construção de
um resort no Havaí) para uma apresentação
de dança de Julia Ann Robinson sob fundo negro,
cena que reconheceremos pouco tempo depois como um mal
ajambrado ensaio para o pretenso recebimento do prêmio
de Miss América. Inúmeras lacunas se criam
nessas elipses, e Bob Rafelson faz uso delas no sentido
de incitar o espectador a organizar um quebra-cabeças
que ele apenas apresenta. É assim com a evolução
psicológica das personagens femininas das duas
tramas. Se Depesto (em 5EP) e Jessica (em ...Marvin
Gardens) mantêm-se de personalidade constante
(apesar de permanecerem um tanto opacas e misteriosas
para nós) ao longo dos dois filmes, a personagem
de Ellen Burstyn em Marvin Gardens vai entrando
num circuito mental que só depois do filme podemos
conceber completamente (o próprio Nicholson,
em seu "relatório final" da experiência,
afirma coisa parecida). O mesmo se dá, na mesma
cena, com Betty, uma mulher que Bobby (em 5EP)
conhece no boliche e com quem desenvolve um tênue
desenlace amoroso: ela conta a história de como
sua mãe lhe disse que pessoas com covinhas no
queixo são as renegadas de Deus, e que sempre
que rezava, quando menina, escondia o queixo; em poucos
momentos, ela abandona a melancolia desse relato para
se juntar à brincadeira que fazem Bobby, Elton
e Twinky, sua amiga. Essas variações de
comportamento, anátema para a construção
narrativa mais tradicional (que implica uma lógica
discursiva e comportamental absurdamente mais pobre
que a que temos diariamente, porque insiste em ordenar
o mundo para fazer um sentido que ele nem sempre tem),
nos coloca entretanto diante da imensidão da
vida e de como podemos nos surpreender com atitudes
inesperadas e por vezes mínimas que fazem toda
a diferença.
3. Família.
Seria fácil associar esses dois filmes sob a
égide da família e de como essa "célula
mater" da sociedade é vista fragmentada,
dissolvida em ambições disparatadas ou
incapaz de integrar os anseios de todos os seus membros
de forma harmoniosa. No entanto, o filme tampouco cede
à lógica de que família é
aquilo que se constrói (os amigos, a esposa)
e não aquilo que se herda (pai, mãe, irmãos),
uma vez que todo tipo de associação familiar
(como Bruce Dern/Ellen Burnstyn/Julia Ann Robinson em
Marvin Gardens). Os dois filmes se constróem
a partir da viagem de seus protagonistas, duas vezes
Jack Nicholson, e do reencontro com os familiares. A
única coisa que aproxima essas duas recepções
eu/família, porém, é o fato de
nos dois filmes o personagem principal sentir-se deslocado
daquilo que seus parentes estão fazendo. Mas
não é exatamente a família que
está em questão, e aparentemente tampouco
a formatação da sociedade americana que
substitui com entretenimento as brechas criadas pelos
movimentos sociais dos anos 60. É antes uma situação
mais arcaica, arquetípica se se quiser, de uma
individualidade forte que cria padrões de comportamento
anti-sociais no momento em que não consegue dar
vazão a seus sentimentos no seio da comunidade
com que convive. Não à toa, Henry Miller
descreveu
Jack Nicholson como o primeiro ator dostoievskiano.
Se há fratura, é uma mais profunda, aquela
que separa o artista que está diante de seu tempo
da sociedade em que vive, porque incapaz de entender
seus valores morais e julgar pouco sociáveis
alguns de seus comportamentos. Não à toa,
um possível filme-irmão de Five Easy
Pieces é Van Gogh, de Maurice Pialat.
Curiosamente, um filme muito relacionado com The
King Of Marvin Gardens é Os Excêntricos
Tenenbaums, de Wes Anderson.
4. Herança.
Mesmo assim, é difícil dizer que essas
duas pérolas assinadas Bob Rafelson formaram
propriamente um séquito de admiradores e realizadores
que se influenciaram por esses filmes. Da mesma forma
que Monte Hellman e seus filmes de gênero elípticos,
Rafelson é um cineasta mais cultuado do que visto
(ao menos no que diz respeito a esses dois filmes específicos,
incontestavelmente o ápice de sua carreira como
diretor), mais trazido à baila quando se fala
dos anos 70 do que propriamente experimentado como uma
forte experiência estética, mais englobado
historicamente em sua época (anos 70, cinemas
novos, nascimento de uma nova geração
de cineastas) do que vivido. Hoje, é antes a
Robert Altman, a Martin Scorsese ou a Francis Ford Coppola
que os cineastas recentes se referem esteticamente quando
fazem seus filmes (de Wes a Paul Thomas Anderson). Tempo
agora, então, para rever essas duas pérolas
de título português tão porcamente
dado (ao fim de Five Easy Pieces, descobrimos
que tudo que o protagonista não faz é
viver como quer, e sim como pode [Bobby:
"I move around a lot, not because I'm looking for
anything really, but 'cause I'm getting away from things
that get bad if I stay."]; ao passo que "O
Dia dos Loucos" transforma instabilidade de comportamento
em maluquice) mas que comportam alguns dos mais belos
momentos de cinema que se pode extrair dessa arte misteriosa
e fugidia
Ruy
Gardnier
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