quatro palavras problemáticas
Cada um Vive Como Quer e O Dia dos Loucos, de Bob Rafelson

Five Easy Pieces
, EUA, 1970
The King Of Marvin Gardens, 1972

1. Expectativa. Bob Rafelson não prepara nem o espectador mais atento para o que acontecerá em seguida no filme. Essa observação parece ser o que mais distancia esses dois filmes – Cada um Vive Como Quer e O Dia dos Loucos – daquilo a que estamos acostumados a ver nos cinemas. Geralmente, quando saímos de uma cena para outra, entendemos para que a cena anterior serve narrativamente ao filme e por que ela está montada em ordem com outra para a evolução da trama e o encaminhamento da história. Grande parte do gosto específico dessas duas peças nada fáceis de cinema é o fato de que elas continuamente quebram quaisquer expectativas que venhamos a ter em relação àquilo que estamos vendo. As seqüências iniciais, que os manuais de roteiro afirmam precisar caber todo o filme em miniatura e explicá-lo em linhas gerais, fazem mais do que não dizer o que é o filme: elas insistentemente nos colocam pistas falsas para sua decifração. O começo de Five Easy Pieces, depois de mostrar um dia de trabalho de seu protagonista num campo de petróleo, enche o áudio com a canção de Tammy Wynette "Stand By Your Man", fazendo supor que o filme tratará de uma questão de superação conjugal. Falso: essa era apenas a música que estava tocando quando o protagonista Robert Dupea chega em casa, e o filme irá centrar-se na dificuldade de relacionamento de Robert não só com as mulheres, mas com a família e, de certa forma, com a vida em geral. Igualmente com King Of Marvin Gardens: depois da tela preta, Jack Nicholson aparece em extremo close-up sob fundo negro, dizendo a memorável primeira fala: "I promised that I would tell you why I never eat fish". Imediatamente imaginamos que se trata de algum tipo de confissão psicanalítica, e por um bom tempo vamos acreditando nisso, até que a câmera abre aos poucos e uma luz vermelha vem perturbar nossas crenças. Trata-se, afinal, de uma improvisação literária, e Nicholson está num estúdio de rádio, em seu ambiente de trabalho. Esses dois filmes, OVNIs tanto no cinema americano da época ou de hoje (apesar do possível contato "intergalaxial" com Monte Hellman) quanto na posterior filmografia do próprio Rafelson, nos aparecem menos como narrativas orquestradas do que como brutos blocos de real pedindo a intensa participação do espectador para sua construção. Praticamente esquecidos hoje em dia, Five Easy Pieces e King Of Marvin Gardens ainda dão mostra de uma profunda e impactante modernidade (o fato de cineastas contemporâneos decisivos construírem seus filmes a partir desses "blocos brutos", como Hou Hsiao-hsien, Claire Denis e Abel Ferrara, só tende a reavaliar dentro da história do cinema os primeiros filmes de Rafelson).

2. Elipses. Se a lógica da montagem e da construção narrativa desses dois filmes é apresentar blocos "brutos", com aparência de "não-montados", então o trabalho de elipse deve transformar-se na matéria formal mais importante para se operar. As eplises devem causar estranhamento, sensação de deslocamento e impressão de não saber para onde o filme caminha. The King Of Marvin Gardens realiza isso espetacularmente. O corte mais estupendo vai de uma cena com Jack Nicholson olhando o céu (depois de conversar com seu irmão sobre planos megalômanos para a construção de um resort no Havaí) para uma apresentação de dança de Julia Ann Robinson sob fundo negro, cena que reconheceremos pouco tempo depois como um mal ajambrado ensaio para o pretenso recebimento do prêmio de Miss América. Inúmeras lacunas se criam nessas elipses, e Bob Rafelson faz uso delas no sentido de incitar o espectador a organizar um quebra-cabeças que ele apenas apresenta. É assim com a evolução psicológica das personagens femininas das duas tramas. Se Depesto (em 5EP) e Jessica (em ...Marvin Gardens) mantêm-se de personalidade constante (apesar de permanecerem um tanto opacas e misteriosas para nós) ao longo dos dois filmes, a personagem de Ellen Burstyn em Marvin Gardens vai entrando num circuito mental que só depois do filme podemos conceber completamente (o próprio Nicholson, em seu "relatório final" da experiência, afirma coisa parecida). O mesmo se dá, na mesma cena, com Betty, uma mulher que Bobby (em 5EP) conhece no boliche e com quem desenvolve um tênue desenlace amoroso: ela conta a história de como sua mãe lhe disse que pessoas com covinhas no queixo são as renegadas de Deus, e que sempre que rezava, quando menina, escondia o queixo; em poucos momentos, ela abandona a melancolia desse relato para se juntar à brincadeira que fazem Bobby, Elton e Twinky, sua amiga. Essas variações de comportamento, anátema para a construção narrativa mais tradicional (que implica uma lógica discursiva e comportamental absurdamente mais pobre que a que temos diariamente, porque insiste em ordenar o mundo para fazer um sentido que ele nem sempre tem), nos coloca entretanto diante da imensidão da vida e de como podemos nos surpreender com atitudes inesperadas e por vezes mínimas que fazem toda a diferença.

3. Família. Seria fácil associar esses dois filmes sob a égide da família e de como essa "célula mater" da sociedade é vista fragmentada, dissolvida em ambições disparatadas ou incapaz de integrar os anseios de todos os seus membros de forma harmoniosa. No entanto, o filme tampouco cede à lógica de que família é aquilo que se constrói (os amigos, a esposa) e não aquilo que se herda (pai, mãe, irmãos), uma vez que todo tipo de associação familiar (como Bruce Dern/Ellen Burnstyn/Julia Ann Robinson em Marvin Gardens). Os dois filmes se constróem a partir da viagem de seus protagonistas, duas vezes Jack Nicholson, e do reencontro com os familiares. A única coisa que aproxima essas duas recepções eu/família, porém, é o fato de nos dois filmes o personagem principal sentir-se deslocado daquilo que seus parentes estão fazendo. Mas não é exatamente a família que está em questão, e aparentemente tampouco a formatação da sociedade americana que substitui com entretenimento as brechas criadas pelos movimentos sociais dos anos 60. É antes uma situação mais arcaica, arquetípica se se quiser, de uma individualidade forte que cria padrões de comportamento anti-sociais no momento em que não consegue dar vazão a seus sentimentos no seio da comunidade com que convive. Não à toa, Henry Miller descreveu Jack Nicholson como o primeiro ator dostoievskiano. Se há fratura, é uma mais profunda, aquela que separa o artista que está diante de seu tempo da sociedade em que vive, porque incapaz de entender seus valores morais e julgar pouco sociáveis alguns de seus comportamentos. Não à toa, um possível filme-irmão de Five Easy Pieces é Van Gogh, de Maurice Pialat. Curiosamente, um filme muito relacionado com The King Of Marvin Gardens é Os Excêntricos Tenenbaums, de Wes Anderson.

4. Herança. Mesmo assim, é difícil dizer que essas duas pérolas assinadas Bob Rafelson formaram propriamente um séquito de admiradores e realizadores que se influenciaram por esses filmes. Da mesma forma que Monte Hellman e seus filmes de gênero elípticos, Rafelson é um cineasta mais cultuado do que visto (ao menos no que diz respeito a esses dois filmes específicos, incontestavelmente o ápice de sua carreira como diretor), mais trazido à baila quando se fala dos anos 70 do que propriamente experimentado como uma forte experiência estética, mais englobado historicamente em sua época (anos 70, cinemas novos, nascimento de uma nova geração de cineastas) do que vivido. Hoje, é antes a Robert Altman, a Martin Scorsese ou a Francis Ford Coppola que os cineastas recentes se referem esteticamente quando fazem seus filmes (de Wes a Paul Thomas Anderson). Tempo agora, então, para rever essas duas pérolas de título português tão porcamente dado (ao fim de Five Easy Pieces, descobrimos que tudo que o protagonista não faz é viver como quer, e sim como pode [Bobby: "I move around a lot, not because I'm looking for anything really, but 'cause I'm getting away from things that get bad if I stay."]; ao passo que "O Dia dos Loucos" transforma instabilidade de comportamento em maluquice) mas que comportam alguns dos mais belos momentos de cinema que se pode extrair dessa arte misteriosa e fugidia

Ruy Gardnier