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As (dis)funções do corpo
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Todos os filmes de Peter & Bobby Farrelly após Quem Vai Ficar com Mary? foram tidos como decepções comerciais. Como se a dupla de diretores que de certa forma deixou uma marca inegável na comédia americana recente (independente do que achamos dos filmes) tivesse perdido contato com o público. De uma hora para outra, seus filmes parecem ter virado um estorvo nos multiplexes. Ligado em Você (e antes O Amor é Cego) não deixam de ser uma evolução natural do caminho que eles vinham traçando desde Debi & Loide, portanto onde se criou esta cisão? De certa forma a trajetória dos Farrelly lembra a de Jerry Lewis (e é verdade que poderíamos fazer um estudo sobre como tantos inventores da comédia americana, de Chaplin a John Landis, terminaram hostilizados pelo seu antigo público). A comparação é bem apta já que o cinema dos Farrelly e o de Lewis, mesmo que formalmente ligados a escolas diferentes, parecem expressar um posicionamento semelhante diante tanto do mundo quanto do cinema como meio de expressão.
Antes de mais nada, estes filmes apresentam um jogo duplo. Eles são muito engraçados, cheios de piadas construídas a partir dos mais variados tipos de humor. Algo que periga passar despercebido devido a forma aparentemente tão fácil com que os diretores os combinam. Para uma dupla de cineastas que muita gente insiste em ver como apenas dois diretores anônimos de Hollywood, os Farrelly exibem um controle impecável sobre a forma do seu material. Observem como Ligado em Você cuidadosamente retarda o primeiro campo/contracampo dos dois irmãos. Para um diretor que só se importasse em ilustrar o texto, a questão nem seria levantada; enquanto aqueles muito apaixonados pela técnica não perderiam a primeira oportunidade para fazer uso dela. Já os irmãos esperam até o momento que acreditam ter ganhado o direito de lançar mão do recurso, com ótimos resultados.
Por outro lado, as comédias dos Farrelly têm um elemento perturbador. Num primeiro momento isto foi atribuído ao que eles teriam de grosseiros. A tal ponto que a imagem que se formou dos Farrelly nunca refletiu muito aquilo que está dentro dos filmes. Debi & Loide e Quem Vai Ficar com Mary? podem ter produzido uma série de clones onde a grosseria dá o tom, mas nos próprios filmes da dupla isto sempre foi equilibrado por outros elementos. Não que não houvesse neles um humor grosseiro quase surreal. Ele está lá, e em certos momentos ajuda a construir esta sensação de incômodo, ao menos nestes primeiros filmes. Hoje, porém este humor virou de tal forma norma nas comédias recentes que termina por não causar reação nenhuma em si mesmo (tirando, claro, provocações extremas como Fora de Casa de Tom Green). Os Farrelly vem, nos últimos filmes, valorizando progressivamente um outro lado que já estava presente desde os seus primeiros trabalhos: o drama sentimental. Já não era, afinal, Debi & Loide a história de dois bobos inocentes que mal discerniam a situação no qual se meteram? O que o diferenciaria de um filme como Forrest Gump, é que os diretores não escondem que é esta mesma inocência que faz com que os personagens vendam um papagaio morto para um garoto cego.
Pois bem, Ligado em Você é uma comédia sentimental. De forma geral se acredita que, ou se aborda material como esse de uma forma edificante, ou como uma grande piada. Como os Farrelly optam pelas duas coisas, o espectador por vezes se vê perdido diante do que vê. Esta intrusão do drama no humor é tão forte, que mesmo que se ache o filme sem graça, é difícil negar que a relação dos dois irmãos ressoa bem forte. Só que, de outro lado, isto torna o humor do filme bem mais estranho, quase como se o espectador não soubesse se devesse ou não rir de determinada seqüências. Há tantas boas piadas aqui quanto num Debi & Loide , mas nem sempre nos sentimos confortáveis para rir delas.
Mas o grande elemento de incômodo do cinema dos Farrelly é de identificação. É aqui que a ligação com Lewis fica mais clara (se bem que o comediante/cineasta também era chegado numa mistura de humor e drama). Os Farrelly sempre procedem dentro da tradição do cinemão americano, nos fazendo identificar com algum personagem. Só que eles nunca nos oferecem o sujeito médio que reage a situações absurdas como este tipo de comédia geralmente nos apresenta. Ou melhor, eles eliminam completamente a barreira entre o que seria normal ou anormal. Os irmãos siameses de Ligado em Você são muito bem adaptados e acreditam que negociaram todos os problemas que a sua condição poderia proporcionar, o que ajuda nesta aproximação. Só que as coisas não são tão simples assim: por mais que os dois irmãos se entendam bem entre si mesmos, isto não significa que todos os seus problemas são resolvidos. Longe disso, já que é bem claro o desconforto de Bob (Matt Damon) com seu próprio corpo, assim como as dificuldades de Walt (Greg Kinnear) na sua tentativa de ser ator. Aqui entra boa parte do gênio dos Farrelly. A situação dos irmãos siameses podia facilmente ser lida como alegórica para qualquer relação de co-dependência. Só que o filme está bem menos interessado nisso, do que na sensação de inadequação que a condição deles cria (e vale lembrar que mesmo depois que eles passam pela operação as coisas não mudam, já que não há efetivamente diferença entre normal e anormal). Não é à toa que se reaja mal a Ligado em Você; podemos estar diante de uma história positiva com final feliz, mas ela nos conecta com os nossos próprios sentimentos de inadequação.
E ai que percebemos que, de certa forma, estamos diante do irmão bastardo hollywoodiano, mas igualmente bem sucedido, do Gêmeos de Cronenberg. Porque não deixamos de estar no terreno das disfunções do corpo, vistas aqui por um filtro afetuoso e afirmativo. Não é à toa que Ligado em Você exiba com tanta freqüência o corpo estranhamente desengonçado dos irmãos sem camisa (e vale mencionar neste sentido também o brilhante trabalho de linguagem corporal dos dois atores principais); trata-se do primeiro filme em scope dos cineastas, uma decisão que parece incentivada pelo desejo de dar aos dois irmãos o máximo de espaço. Só que o horror nos Farrelly não está nisso em si, muito pelo contrário.O horror para os Farrelly surge na rejeição: é o sentimento que transpassa todos os seus filmes. Aquilo que os personagens parecem sempre temer. O típico herói dos Farrelly é o homem que teme ser rejeitado pelo objeto do seus afetos. Não é algo fácil para ninguém se identificar, muito menos numa pura "diversão", como os filmes são vendidos. Se o diretor tende a enxergar duas formas de tratar uma história como a de Ligado em Você, o espectador também. Ele crê que verá ou uma espécie de freak show, ou a versão oposta: um filme que lhe permitira exercer seus bons sentimentos liberais e politicamente corretos. Ao invés disso os cineastas acabam por nos colocar na indesejada posição de nos identificar com aqueles que preferíamos apenas olhar com chacota ou pena. Instala-se um mal estar na imagem. O corpo grudado de Bob e Walt não deixa de ser o nosso. E não há dentro do cinema americano muitos cineastas tão subversivos e políticos.
Filipe Furtado |
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Matt Damon e Greg Kinnear em Ligado em Você
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