Clouds
taste metallic
Enfim, Elefante. Quase um ano após sua passagem
triunfal em Cannes, Elefante finalmente está
entrando em cartaz no Brasil. Bom para nós: (re)veremos
quantas vezes nos for possível, pois o filme possui
uma riqueza visual e discursiva que realmente obriga
a revisão. Elefante aborda um fenômeno que, apesar
de inesgotável na sua variedade de peças, costuma dar
margem às mais simplórias tentativas de explicação.
Mas Gus Van Sant foge das teses e mergulha de cabeça
no espaço que acolhe o filme, disposto a ver e ouvir
o máximo possível, aguçar os sentidos e evitar idéias
acabadas. Sua obra-prima é tanto um exercício vigoroso
em torno das possibilidades do dispositivo quanto a
construção cuidadosa de uma moral do olhar. Assim como
Godard afirma a necessidade de filmar a partir de um
"ponto de vista mineral", Van Sant rechaça qualquer
instância predicativa em sua mise-en-scène, optando
por um jogo de proximidade (leia-se imersão) e significação
primária (apreensão de formas, volumes, deslocamentos).
Em se tratando de um filme que culmina num massacre
aos moldes do ocorrido em Columbine, isso não é coisa
simples.
Antepassados. Dois filmes influenciaram bastante
Gus Van Sant. O primeiro deles é a obra homônima de
Alan Clarke, média-metragem que se passa na Irlanda
do Norte e foi realizado em 1989 para a BBC. Mesmo se
referindo a outro contexto, o Elephant de Clarke
apresenta, além da narrativa picotada de que Van Sant
fez extraordinário uso em seu filme, a difícil temática
da violência praticada por jovens. Em Elefante,
a estrutura narrativa fragmentada, que mostra o mesmo
evento sob diferentes pontos de vista e sem manter sua
linearidade no tempo, corresponde à impossibilidade
de uma visão global e à construção de um sentido moderno
de temporalidade, a fragmentação impedindo uma ordenação
causal (e simplista) dos fatos. Outro filme fundamental
para a composição visual e estrutural de Elefante
foi High School, de Frederick Wiseman, um dos
grandes nomes do "cinema direto". O filme de Wiseman,
de 1968, compõe - com imagens marcantes e de inusitada
beleza - um vasto painel em que situações individuais
se confrontam com a rigidez geométrica do modo de funcionamento
institucional. High School efetua uma sondagem de espaço
muito parecida com o trabalho de Gus Van Sant ao lado
de Harris Savides (brilhante diretor de fotografia de
Elefante) e Leslie Shatz (responsável pelo som):
os planos fechados, o interesse por todo e qualquer
som ambiente (o som de Elefante é expansivo,
traz para um mesmo local ruídos e vozes de toda parte),
a câmera percorrendo a escola como se fosse uma sonda
introduzida num organismo vivo, a observação de situações
cotidianas diversas (sala de aula, palestras, ginástica,
refeitório, corredores), a atração despertada pelos
adolescentes (o que leva a câmera a praticamente querer
colar neles). Embora Elefante tenha cenas
em outras locações (algumas delas fundamentais, como
o giro de 360º no quarto de Alex), seu lugar de condensação
é na escola. Lá prevalecem planos alongados - muitas
vezes em tom documental - que fazem surgir toda uma
tipologia relacionada ao universo estudantil norte-americano:
um desfile de estereótipos que precedem o próprio filme
e compõem um imaginário que Van Sant preferiu deixar
intacto (no sentido de não negá-lo nem tentar decodificá-lo).
Transparência do mal. No filme Tudo É Brasil,
de Rogério Sganzerla, Orson Welles evoca a parábola
do grupo de cegos em que cada um toca uma parte de um
elefante e diz saber como aquele objeto é na sua totalidade.
As respostas saem equivocadas, nenhum dos pedaços é
suficiente para a apreensão do todo. Portanto, conclui
Welles, não se pode conhecer um país visitando somente
uma de suas partes - é preciso estar em muitos lugares.
Essa parábola budista, segundo Gus Van Sant, também
repercutiu no conceito de seu filme. A câmera de Elefante
penetra com pouca profundidade de campo nos corredores
de uma típica high school, somente focando o
que está próximo dela, precisando quase tocar os objetos
que quer mostrar, como se estes precisassem ganhar relevo
para virar imagem. A fluidez da sua movimentação realça
um princípio de ambiência, de captação do ritmo daquele
espaço, com sua dinâmica de cores, formas, texturas,
signos. Nos corredores da escola se acha uma intensa
circulação de corpos cuja relação entre si - de aparência,
nada de interioridade esquemática - não fomenta psicologismos
(o filme flagra a dificuldade de qualquer certeza através
dos signos exteriores - basta pensar na discussão sobre
"olhar para alguém na rua e tentar descobrir sua opção
sexual"). Da mesma forma, a não fixação do ponto de
vista (entendido aqui tanto como posição de onde se
vê quanto como local de produção do discurso) exprime
não só a recusa a uma perspectiva (o que implicaria
distanciamento), mas também a afirmação da inviabilidade
de uma reconstituição definitiva do episódio (o que
alguns "erros" de continuidade insistem em nos lembrar
quando da repetição de uma cena a partir de um novo
ponto de vista).
Kids. Desde seus primeiros filmes que Gus Van
Sant se aproxima do jovem munido muito menos de julgamentos
do que de carinho e compreensão (sem ignorar uma dose
de fetichismo). Gênio Indomável e Encontrando
Forrester, duas investidas no enredo romântico de
auto-superação e transformação, são belíssimos filmes
sobre jovens ultratalentosos recebendo a orientação
de um adulto (diálogo entre gerações absolutamente ausente
no filme aqui em questão). Em Elefante não entra em
cena um rito de passagem, como nos clássicos filmes
de high school, mas simplesmente uma passagem
- de corpos, de forças, de fumaça, de nuvens. Jean Epstein,
que nos anos 20 fez um cinema "impressionista", já dizia
que "os belos filmes são feitos de fotografias e céu".
É com um céu em que passam nuvens velozmente (refrão
visual de toda a carreira de Gus Van Sant) que Elefante
começa e termina. O céu, nuvens, impressões, uma fumaça
negra que se mistura às nuvens e depois passa. Tudo
passa, principalmente enquanto se é adolescente. E Van
Sant não esqueceu disso quando virou adulto.
Luiz
Carlos Oliveira Jr
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