Um bate-papo entre Sylvio Renoldi e Rogério Sganzerla
Quando a gente começou, a gente já começou rindo, não é, Sylvio?

Participaram deste encontro Alessandro Gamo, Luís Alberto Rocha Melo e André Francioli. Esta conversa foi registrada, em imagem e som, para o documentário O Galante Rei da Boca, rodado em julho de 2001, São Paulo. Apresentamos aqui a transcrição dos trechos em que Sganzerla e Renoldi falam sobre aspectos gerais do cinema, bem como sobre as respectivas carreiras e os trabalhos realizados em parceria. (Luís Alberto Rocha Melo)

O cinema e a profecia

Rogério Sganzerla - Uma vez o Alberto Cavalcanti falou assim pra mim: "Vou te falar uma coisa". Eu digo: "não, eu já sei". "Mas o que é que você já sabe?" "Você vai dizer três coisas: que aqui o pessoal empurra um carrinho e já quer ser diretor, ninguém quer ser produtor, todo mundo quer dirigir; que as máquinas são as mais mal-tratadas do mundo, e que com isso não se tem o respeito pela técnica". Aí ele disse: "É, exatamente isso, como é que você sabe que eu ia dizer isso?" É porque eu li o livro dele - o Filme e Realidade, que nasceu do curso que ele veio dar no Brasil. E dali veio a Vera Cruz, a Maristela, a Multifilmes... Sylvio, conte um pouco da Maristela, você era vizinho, quer dizer, aquilo na cabeça da criança, você vendo aquele mundo, os estúdios...

Sylvio Renoldi - A Maristela era vizinha do terreno da minha avó, era uma fábrica de ácidos, antes, entendeu? Aí essa fábrica fechou e aí começou a reformar pra fazer um estúdio de cinema lá. Aí eles fizeram uma grade, assim, que dividia a Maristela do meu terreno... Eu era moleque, tinha nove anos, dez anos, e eu ficava enchendo o saco, conhecia as pessoas que trabalhavam lá, que já eram conhecidas minhas do bairro e que foram trabalhar lá. Aí eu ficava ali, às vezes tinha uma coisa assim: "ah, vamos fazer a voz de uma criança, um filme, não-sei-o-quê", eu ia lá no estúdio. Daí fui pegando amizade, eu vivia dentro do estúdio, entendeu? Estava sempre num lugar, no outro, até que um dia, em 1951, um cara falou "por que é que você não vem trabalhar aqui em vez de ficar enchendo o saco aí no estúdio?" Aí foi quando eu comecei a trabalhar na sala de montagem lá da Maristela. Nessa época foi quando eu conheci o Cavalcanti, que estava terminando o Mulher de Verdade.

Sganzerla - O Mário Civelli era uma grande figura, né? Os jornais criticavam, mas era uma figura fabulosa... Depois ele virou distribuidor e ganhou uma fortuna com aqueles filmes tchecos, né?, filmes italianos, de faroeste, quer dizer... ele tinha visão. Agora, nos livros, o que se fala sobre ele é que ele era só um assistente do Roberto Rossellini e que quando passou o Roma Cidade Aberta não tinha o nome dele... mas isso não é o importante, não é?, quer dizer... ali na Itália, imagina, ainda é mais confuso que o Brasil, então... o próprio Rossellini era uma coisa fake, não é? E o Civelli gostava de cinema, ele entendia de distribuição, ele ajudava as pessoas... Assim como o Marinho Audrá. Eu me lembro que ele dizia: "Você vai fazer seu primeiro filme, você faz aqui na Gravasom de graça." "Mas por quê, um curta, de graça...?" "Não, você pode sonorizar, porque nós sabemos que você depois vai voltar aqui..." E isso realmente acontecia, e nos estúdios da Odil Fono Brasil também. Todos os filmes pagavam o mesmo valor, parece que dez milhões. Você pagava depois do filme pronto. Você podia trabalhar o que quisesse, então tinham duas moviolas pra atender a oito, dez produções. E nunca houve problema, porque se precisasse, se aparecesse filme de publicidade, por exemplo, aí se parava, cedia-se os espaços, havia um intercâmbio, era esse o espírito das produtoras da década de 50...

Renoldi - Era uma grande família, todo mundo ajudando um ao outro, não tinha essa picuinha aí...

Sganzerla - Havia amizade, né? Não havia a desconfiança, o desrespeito...

Alessandro Gamo - E o trabalho na Boca do Lixo?

Sganzerla - O Sylvio nunca aparecia lá, aparecia raramente...

Renoldi - ... só quando eu montava os filmes, né...? Eu ia lá montar os filmes da Servicine [produtora de Antonio Polo Galante e Alfredo Palácios]. Montava na moviola da Servicine. Mas muitos filmes da Servicine eu montei na Odil, porque ficava mais perto do estúdio, você gravava e ao mesmo tempo montava a cena, entendeu?, o som...

Sganzerla - O que o Sylvio fazia na moviola era impressionante. Ele era capaz de fazer você dizer a mesma coisa, e inverter, cortando os magnéticos, ele tinha um domínio... e também com a moviola, se precisasse extrair um som ótico, ele criava uma instalação e fazia, ele era muito amigo do técnico...

Renoldi - E o dia-a-dia na Boca era normal, entendeu? Puta misturado com ator, ator misturado com puto, era o Massaini que ficava lá de cima, era o outro cara que ficava lá embaixo... Tinham as produtoras mixurucas, tinha o Tony Vieira, tinha um monte de produtoras ali, tinha o Renato Grecchi... então, quer dizer, eram pessoas que arranjavam um dinheirinho e faziam filme, entendeu? Me lembro que o Renato Grecchi fez um filme com o Carlão Reichenbach chamado Corrida Em Busca do Amor e, porra, os caras não tinham motor, entendeu?, então tinha que ficar cinco neguinhos na esquina empurrando o carro porque não tinha motor, entendeu? E daí o carro passava, terminava a cena, puxavam o carro de novo... um filme de corrida com carro sem motor! Então, quer dizer, uma loucura, entende...? Mas o pessoal fazia cinema. Filmavam com filme velho, com filme novo...

Sganzerla - Tem uma história interessantíssima do "Bandido...": na ocasião eu falava: "não interessa o cinema, mas a profecia". Eu escrevi o filme antes de haver a história do João Acácio [o verdadeiro Bandido da Luz Vermelha]. Eu estava na Europa, quando cheguei eu disse: "pô, mas está acontecendo, o roteiro que eu estou escrevendo está acontecendo". Mas aconteceram muitas outras coisas assim, também, por exemplo: nós estávamos quase no rolo seis ou sete, pra mixar, e eu cheguei de manhã no estúdio, eu me lembro que era um sábado, de manhã, e de repente eu ouvi uma metralhadora - tararararararara - eu digo "pô, tá lá o Sylvio de novo revendo os ruídos", porque ele é um montador interessado, é como se fosse um trabalho dele. E eu falei: "mas não precisa, tá tudo certo, vai começar a mixagem agora..." Mas só que a metralhadora não era do filme, que dizia assim : "Militares estrangeiros são metralhados na porta das suas residências..." Eu digo: "porra, mas isso aí... Por que é que o Sylvio tá revendo..." Não era do filme, não. Era na frente da Odil Fono Brasil, estacionaram um carro...

Renoldi - ... estavam metralhando...

Sganzerla - ... pegaram um cara que era aquele capitão Chandler...

Renoldi - ... que morava na casa da Hebe... Os caras metralharam ele ali na porta, duas casas depois da Odil. Nós estávamos preparando, justamente o rolo que nós íamos fazer, era o que dizia "metralhados na porta de sua residência, não-sei-o-quê..." Porra, e lá fora pá-pá-pá, comendo fogo... É coincidência, né?, mas...

Sganzerla - Nós chegamos lá, ele estava ainda vivo, era até uma cena, a mulher, com a criança, o livro que ele tava lendo e ele agonizante... e você foi o único que viu o atentado, né?, Sylvio, foi um fusca que trancou, na saída da garagem... e aí apareceu um repórter, veio a polícia...

Alessandro - Sylvio, você chegou a dar alguma dica na montagem do A Mulher de Todos?

Renoldi - Não, não... não participei, não...

Sganzerla – O Sylvio não pôde, eu pedi muito que o Sylvio montasse, mas ele estava assoberbado de trabalho, então sem que eu soubesse, ele disse: "sim, mas isso é uma mina, e tal"... talvez pela ousadia do tema... Naquela época, um filme paulista sobre o final de semana, como era nas praias, um filme domingueiro, não é?, um "melodrama-de-beira-de-praia", como eu chamo.

Renoldi - O Rogério estava com dificuldade pra fazer o A Mulher de Todos, dificuldade pra continuar, né?, então eu convenci o Galante a entrar em contato com o Rogério pra ver se dava pra dar um toque, já que ele tinha vários projetos, e foi quando eles se acertaram e fizeram o filme. Mas eu nem participei desse filme, eu estava muito ocupado, né?, então o Rogério montou o filme com outra pessoa...

Luís Alberto - Quem foi o montador?

Sganzerla - O Franklin Pereira... Ele deixou o filme curto demais. Quando chegou a versão final, o filme estava com menos do que a minutagem necessária. Aí eu digo: "não, eu vou dar um jeito, pegar todas as sobras e dar um jeito aqui, fazer mais um rolo..." Talvez pela escola de comercial do Franklin, ele foi cortando, cortando... Mas aí fizemos um rolo, que é o rolo exatamente que as pessoas mais elogiaram, que é aquele negócio do "paga uma cuba, bem"... O próprio Paulo Emílio confessava que viu várias vezes o filme pra ver aquela cena, que na primeira versão não estava. Eu tive que dublar, o estúdio tinha sofrido uma reforma, estava com outra qualidade sonora. O filme é audível, você entende todas as piadas, tem umas dez, quinze piadas ótimas, né?, o Jô, que está muito bem, o Jô Soares... O Franklin copiava um pouco o estilo do Sylvio. Eu acho que o Sylvio, na montagem do "Bandido...", criou um código de montagem que imediatamente todos os outros se colocaram nessa expectativa de dar um novo tratamento, também quanto ao som - não precisar de tanto ruído de sala, valorizar a música com o diálogo, ter várias músicas ao mesmo tempo... E também o bom humor que a gente tinha na sala de montagem acho que passou pro filme, que se mantém atual até hoje porque foi bem editado, que é um aspecto crucial do nosso cinema...

Renoldi - Bem anárquico, né?

Sganzerla - O Sylvio participava das gravações, dos textos do "Bandido..." Quando chegavam aqueles locutores - uma delas era uma velhinha, lá no estúdio, que ninguém queria trabalhar com ela. "Mas é essa!" Aí você disse: "Você vai estragar o filme..." "Não, eu preciso de uma voz assim..." E quando ela começava a ler aquilo eu tinha que sair da sala, que eu começava a dar risada - era uma sátira anárquica, como você disse...

Renoldi - Se você não chamasse ela de senhorita ela não gravava... (risos) "A senhorita pode começar a gravar?"

Sganzerla - Eu acho que todos nós devíamos ter feito mais filmes, devia ter mais produção, agora... cinema é uma atividade cara, enfim, eu acho que depende muito das relações... Com relação ao Sylvio, nós temos que agradecer, os filmes que a gente conseguiu fazer foi através da amizade, da consideração, do respeito, né? E a gente fez um também sobre o Noel Rosa que era fantástico, eram os 80 anos de nascimento, com o João Gilberto cantando Noel Rosa, e o Noel aprendia a fazer a famosa batida com o irmão do Noel Rosa, o Hélio Rosa. Então era um material - a Gal Costa, todo mundo fez - e foi um lançamento bom, lá no Banco do Brasil, mas o filme... O Sylvio gastou uma pequena fortuna, o filme foi dublado, traduzido, e tudo... E aí no Festival resolveram passar dentro do hotel, e não na sala, porque esse filme era média-metragem... quer dizer, eles nem passaram o filme... Isso só podia ser uma represália, uma represália pelo fato de eu ser crítico... Você falou muito bem, Sylvio, o Massaini ficava lá em cima, vendo todas as pessoas filmando... Nós estávamos filmando "O Bandido...", chegou esse repórter, que estava na história do Chandler, aí eu disse: "ó, você vai ver agora, o que está acontecendo aqui na rua, lá dentro do estúdio, isso nós temos e está há meses pronto." Aí ele ficou espantado. E esse mesmo repórter fez uma entrevista com o Massaini e disse: "está vendo aquela filmagem lá embaixo?" Era eu, mais uma pequena equipe filmando um cara carregando um carrinho de latas de filmes... O Massaini diz: "Esse filme não vai passar nunca!" E o repórter imediatamente veio me dizer : "olha, eu estive com esse grande produtor, ele disse que esse seu filme não vai passar em lugar nenhum". Aí eu pensei: "O Massaini vai ser talvez o primeiro a ir no coquetel de lançamento". E aconteceu exatamente isso. Quando o filme ganhou oito, dez prêmios em Brasília, fizemos no Othon Palace um coquetel, ele foi lá me abraçar, e tal. Depois eu conheci melhor o velho Massaini, era uma figura muito legal, entendeu?, era um profissional, enfim...

A valorização dos técnicos e o cinema como uma questão de "classe"

Sganzerla – Eu me lembro quando a gente se encontrou, o Sylvio estava fazendo os ruídos do Grande Sertão, Veredas, né? O pessoal jovem, o Sylvio acolhia muito bem, na Odil Fono Brasil, que tinha uma excelente equipe, né? E ali também se fazia rádio, gravava-se programa de rádio... o Benedito Ruy Barbosa escrevia novelas pra rádio e o Sylvio já produzia e montava esse filmes, né? O filme importante foi o Bebel, Garota Propaganda [Maurice Capovilla, 1967] porque era um filme paulista voltado pro pessoal que veio da imprensa. O Roberto Santos, que é praticamente irmão da gente, grande figura do cinema paulista... o Bebel foi dirigido pelo Capovilla, que era meu companheiro no Jornal da Tarde, a gente escrevia lá na segunda-feira, sobre todos os filmes que tinham entrado em cartaz, então tínhamos que ver um monte de filmes na segunda, e na terça enchíamos umas páginas inteiras, e o Bebel foi um filme que tinha um elenco muito bom, a montagem, e uma produção, que, enfim... e o passo seguinte foi o "Bandido..." Eu acho que o Roberto Santos empurrou bastante o projeto, e tudo... quando a gente começou, a gente já começou rindo, não é, Sylvio? As primeiras piadas... uma quantidade enorme de material rodado...

Renoldi – O Rogério sempre faz a mesma coisa, ele chega sempre com o filme numa mala, né...? (risos) Traz o filme todo despedaçado numa mala pra... então... O Bandido da Luz Vermelha era um filme interessante, que, aliás - devemos falar -, tinham umas pessoas que não queriam...

Sganzerla - ... nem que fosse feito, quanto mais exibido...

Renoldi – É... quanto mais montado, né?... Então picharam: "como é que você vai montar um filme de um louco", não-sei-o-quê... E eu falei, "é um filme de louco e nós vamos montar ele como foi feito". E foi o que foi feito, o filme era louco e a montagem foi feita loucamente, tanto é que até hoje é um filme moderno. Na época era uma loucura, né?, ninguém admitia. Pelo ranço que se tinha, do modo como todo mundo fazia cinema: Khoury fazendo cinema estrangeiro no Brasil, o Biáfora tentando fazer um cinema estrangeiro também no Brasil, não-sei-quem fazendo, pichando... então, quando mudava a coisa, era muito difícil você se manter. Essa que foi a vantagem, se conseguiu, com "O Bandido...", fazer um cinema brasileiro. Aquela porcaria era brasileira, não era imitação, tentar imitar o cinema estrangeiro, Bergman e outros bichos aí que eles queriam. Então foi uma época que deixa saudade, que não vai voltar mais mesmo... E se o Brasil não mudar a postura de leis como tinha nos anos 70 e 80 e se fazer cumprir, não vai existir mais cinema brasileiro, vão existir esses negócios: dando um tiro no escuro aqui, outro lá, desafiando os caras na sombra... mas abertamente não vai existir. Ou então, algum milionário aí que dá uma grana pro filho fazer um filme. Faz um filme só, nunca mais faz nada, e aí fica nessa ilusão: "ah, o cinema nacional agora vai". Vai nada! Se não houver um apoio do governo pra valer, não existe cinema. E não existe cinema em nenhum lugar do mundo, se não tiver uma proteção do governo. Taí o Rogério: o Rogério é um diretor que teve êxito, não é dos diretores que não faz nada. Fez filmes bons e não tem chance. Está aí, gramando pra fazer uma porcaria de um filme, não tem chance, ninguém ajuda...

Sganzerla – Você ajudou muito... Enquanto não houver a revalorização do elemento profissional... quem faz o cinema são os técnicos, os profissionais, os diretores, os montadores, e não os burocratas. Tem alguns servidores, funcionários, que são prestativos, e tal, mas temos exemplos de burocratas que substituíram a censura oficial, aquela censura do momento mais difícil, que substituem desestimulando o trabalho, aí eu acho que realmente... enquanto não houver essa revalorização... como o Sylvio diz, em qualquer país do mundo, o governo deve dar alguma parte de apoio. Nós não estamos aqui pedindo dinheiro, estamos pedindo mais justiça, porque não há o elemento intérprete disso...

Renoldi – Pelo menos uma exibição garantida, né? Isso é o mínimo.

Sganzerla – Por exemplo, o Sylvio tem grandes idéias... Além de ser um amigo, um profissional, um produtor associado, é um roteirista, um argumentista, ele bola grandes piadas, idéias, gags... Isso não tem preço. Agora, vai-se filmar, tem aí parque de luz, material... Mas o que é que adianta filmar, fazer o quê com o filme? A funcionalidade, o uso desse produto...

Renoldi – Exibir aonde? Você faz um filme e não tem lugar pra exibir. Não tem um cinema, não tem nada. Tem cinema de shopping, um camarada faz dez cinemas aqui, vinte lá, mas você não passa, o filme não passa em nenhum lugar. Pode desistir. Quem tiver idéia de fazer um filme, enquanto não tiver uma proteção grande pro cinema, não vai fazer filme. A única coisa hoje em dia que um produtor faz - que é a malandragem - é ganhar na produção. Faz um orçamento de cinco paus, gasta dois, pega três e bota no bolso, e fica morrendo de rir dos otários que ajudaram a fazer e pastaram. Essa é que é a realidade.

Sganzerla – E esse é um dos prêmios que a burocracia oficial nos impôs, que é criar pequenos agregados... são filmes de colegas, de amigos, de companheiros de classe - de classe nos dois sentidos, e acredito que não há muita classe cinematográfica nisso, porque o roubo é sempre negativo, né...?

Alessandro – Sylvio, você poderia falar das produções que você participou com o Galante, que você montou?

Renoldi – Ah, eu montei uma série de filmes, né? O Cangaceiro Sem Deus [Osvaldo de Oliveira, 1969], O Cangaceiro Sanguinário [Osvaldo de Oliveira, 1969], As Deusas [Walter Hugo Khoury, 1972], Sertão em Festa [Osvaldo de Oliveira, 1970], Rancho Fundo [Osvaldo de Oliveira, 1970]... aliás o Sertão em Festa foi o filme que deu mais dinheiro pro Galante, um filme sem muita pretensão mas que entrou na linha do Mazzaroppi. E depois, também... é, eu fiz uns dez filmes com o Galante, fiz uma co-produção que foi O Pornógrafo, com o João Callegaro e o Osvaldo de Oliveira.

Sganzerla O Pornógrafo, como é que nasceu O Pornógrafo, Sylvio?

Renoldi – Isso foi idéia do João Callegaro, fazer a história de um imigrante que pastava na cidade paulista, mas isso... era uma coisa bem do João, né? E depois... Nós fizemos um filme de gozação que era o Rogo a Deus e Mando Bala [Osvaldo de Oliveira, 1970], que era um bang-bang, entendeu?, que a gente estava com saco cheio de western-spaghetti, então nós fizemos esse filme... a gente se dava ao luxo de fazer uma besteira dessas... Mas na realidade o que nós vamos dizer é o seguinte: nunca, nunca, o dinheiro que entrou no cinema ficou no cinema.

Sganzerla - Não foi reinvestido...

Renoldi - Não foi reinvestido. Primeiro que eu acho que era pouco, entende? E mais se perdia pelo caminho.

Sganzerla - Na sonegação...

Renoldi - Na sonegação, na exibição...

Sganzerla - É a falta de uma fiscalização como o Mazzaroppi tinha. Quando os filmes viajavam, ele mandava um fiscal, uma pequena despesa para... aí vinham os caminhões, enchia de gente... os filmes se pagavam amortizando na cidade de São Paulo, que tinha um mercado maior do que a França inteira...

Renoldi - Eu calculo que naquela época o desvio era entre 80% e 90% da bilheteria. Só quando o filme dava muita grana mesmo é que aparecia algum dinheiro, mas quando era produção média, assim, não aparecia nunca.

André Francioli - E você, Rogério, como é que você vê essa decadência do cinema que vocês apontaram aqui?

Sganzerla - Vejo uma decadência provocada pelo intelectualismo de alguns "responsáveis" - entre aspas - que foram convocados para incentivar o cinema nacional e, na verdade, substituíram a censura. Substituíram através do princípio da exclusão: "Não, você não pode, você pode, aquele pode"... Geralmente o que podia era o coleguinha da classe... Então se tornou o cinema familiar, uma coisa mafiosa, que nunca é positiva...

Renoldi - E existe o problema internacional, também, né...? Se o Brasil faz uma lei, os caras dizem: "ah, nós vamos proibir o café, vamos proibir isso, proibir aquilo" - então o cinema nacional sempre foi um mercado que eles sempre quiseram ter na mão, como têm hoje, entendeu? Então eles fazem qualquer coisa, porque eles se protegem muito. Agora nós, aqui, é chumbo grosso em todo o cinema, não tem proteção, não tem nada, porque existe uma pressão, entendeu? Quantas vezes os caras chegaram e disseram: "Não é possível que um filme brasileiro dê mais que um filme que gastou cinqüenta milhões de dólares". Os caras não se conformavam. Hoje eles estão como querem: todos os cinemas estão com contrato, eles vêm de lá já com a exibição garantida e o cinema nacional taí: não tem lugar. Não tem mesmo. Rogério tá querendo fazer um filme? Eu quero ver - vai exibir aonde, esse filme?

Sganzerla - É mais fácil no exterior, tem que fazer os filmes de prestígio...

Renoldi - O negócio agora é: se tiver que fazer um filme tem que fazer em inglês, em espanhol, em qualquer língua, menos em português...

Sganzerla - Agora, estava sempre baseado, o sucesso dos filmes brasileiros, no custo do ingresso baixo, o que favorece a fita brasileira. Quanto mais alto o ingresso, menos público. A quantidade é que vai gerar a qualidade - e o ingresso baixo.

Renoldi - Naquela época também tinha o incentivo do ingresso. Então, quando você fazia um "x" de renda, você recebia uma grana limpa do...

Sganzerla - ... do serviço de arrecadação. É uma coisa que a prefeitura de São Paulo fez nos anos 50, em 1955, a Lei do Adicional. Mas não assim: "ah, vamos dar pra um, pra outro", não: conforme a bilheteria você ganhava 10% a mais do governo, quer dizer, um incentivo dependendo do resultado dessa venda de ingresso. E quando o filme tinha uma categoria melhor, quando era um diretor bom, etc., aí às vezes dava, por exemplo, 25%, e aí se tornava um grande negócio, mas era em função do trabalho, do resultado, da performance, e não de premiações exclusivistas... Hoje em dia o cara ganha pra trabalhar e já fatura antes de trabalhar, porque não há um critério de avaliação dos filmes, não tem ninguém que consiga nem avaliar os roteiros, né? Às vezes grandes projetos são jogados no lixo, e continua se fazendo sempre aquele modelo errado de filme, não é?, filme muito caro, pra ingresso caro - não é nem pão, nem circo, não é nada, nem uma coisa nem outra. E quando isso ocorre é ruim pra todo mundo. Eu acho que o cinema é uma atividade produtiva: manter a língua, a imagem do nosso país, e ocupar uma parte desse mercado. Já ocupou nas décadas de 1970 e 80, de trinta a quarenta por cento... É porque lá fora, o exibidor fica com 10%; 90% vai pra produtora. Aqui é o contrário, é 90% pro dono da sala e 10% pro produtor... Na verdade 25%, 30% do bruto - quer dizer, você descontando cartazes, cópias, serviço de lançamento, anúncios, você fica sempre com pouco...

O cinema e o princípio da (des) continuidade

Alessandro - E essas mudanças de ritmo, de linguagem, que vocês estão vendo, em relação ao cinema, de uma época para cá?

Renoldi - Não, linguagem não mudou nenhuma. Eu acho que os filmes ficaram é muito ruins, entendeu...? Acho que não mudou nada. Os filmes é que são muito ruins, é uma TV de baixa qualidade que estão fazendo, esse é que é o problema...

Sganzerla - Exatamente...

Renoldi - Alguns filmes são bons, mas... um ou outro, o resto é tudo piada.

Francioli - Como é que você vê o alcance estético dessa produção atual, Rogério?

Sganzerla - Eu penso como o Sylvio acabou de dizer, eu acho que é uma piada onerosa, pra todo mundo... Por exemplo, acham que um filme pra ser bom tem que ser chato. Não necessariamente, né? Então, às vezes os filmes pra serem sérios tem que ser aquela coisa cansativa. Eu vejo o contrário, eu acho que falta ritmo, faltam gêneros, criar modelos, standarts, qualquer tipo de filme pode ser bom, desde que se faça com o cuidado que a coisa necessita: uma boa planificação, objetividade, trabalho de equipe, um produtor que dê condições de você trabalhar livremente... O que tá faltando, também, é que as histórias são mal escritas, entendeu? Você pega um livro deste tamanho e faz, mas aí não houve a transposição, entendeu? E faltam dialoguistas, quais são os dialoguistas que têm aqui no Brasil? Tem alguns que estão lá no rádio, na televisão, não sei, nós não temos nem isso - dialoguistas - temos dois, três. Devia se gastar mais papel e menos película, né? Agora, eu acho que os filmes são muito chatos, porque tentar copiar a televisão é errado. A televisão é que deveria copiar o cinema, porque a televisão não tem nem o traquejo, mesmo com os recursos técnicos e com as equipes você vai estar sempre sendo sub-produto, não é por aí... Não vamos copiar os defeitos, vamos copiar as qualidades, não é? E depois tem esse princípio da exclusão, né? Tem que valorizar o profissional... quem fez o cinema foram os profissionais, os técnicos, os fotógrafos, os montadores... A montagem é o grande aspecto, não é um aspecto, é o aspecto do filme - não sou eu quem digo -, mas pra conseguir isso é preciso ter um assistente, precisa ter uma preservação, precisa ter um certo - não digo conforto, mas um mínimo... E esse mínimo sempre foi negado pelas figuras que comandam aqui essa "indústria", entre aspas, que não é nem arte nem indústria - não é nada. Agora a televisão quer entrar no mercado com os incentivos fiscais. Eu acho isso um absurdo, porque a televisão são as maiores fortunas do país, eles têm minas de ouro na Amazônia... Se eles quiserem entrar e fazer cinema com o dinheiro deles, correto, perfeito, agora - não com o dinheiro que deveria ser dos independentes, não com incentivos fiscais... Quer dizer, criou-se um impasse: se eu quiser trabalhar na televisão não me aceitam. Mas o que é que esse pessoal tá fazendo agora? Eles estão se dirigindo a esse mercado, multiplex, e criando toda uma imposição. E eu acho que vai continuar um cinema capenga, um cinema que não é o verdadeiro... não é cinema, isso, também... Não é nem comércio nem arte...

Renoldi - Hoje a produção que existe é a produção de comercial: se faz com o cheque na mão, entendeu? O camarada diz: "preciso daquela mala lá". O camarada vai lá, faz um cheque e traz a mala. Quer dizer, você vai fazer um longa-metragem desse jeito, pô? É pra ir pro buraco...! Antigamente você ia lá, convencia o camarada, o camarada ainda trazia pra você o negócio, depois vinha buscar e te agradecia, e dizia: "só quero uma foto da cena". Hoje em dia não, hoje em dia é tudo com cheque na mão, pô! Qualquer coisa que você vai fazer é com cheque na mão, isso é fazer produção? Isso qualquer idiota faz! "Preciso filmar lá no museu" - chega lá no museu e diz: "olha, eu tenho aqui cinco mil pra..." "ah, tudo bem." Pronto. Quer dizer, pô... "Ah, mas pra pegar aquele baú lá vai custar mais mil". Então quer dizer: qual produção que vai agüentar isso?

Sganzerla - É verdade. E comercial demora dez dias, cinco dias...

Renoldi - Não, um dia!

Sganzerla - ...um dia... Agora um longa-metragem são meses...

Renoldi - ...não, e o comercial é financiado, né? Então você tem um orçamento pra gastar no comercial, agora - produção de comercial em longa não funciona, entendeu? E nós estamos reduzidos a isso. Se você quiser fazer a produção de um longa, você vai ter produtor de comercial, entendeu? Então...

Sganzerla - É porque não se valorizou a figura do produtor. O Galante, por exemplo, era um excelente produtor. Embora ele não fosse culto, nem erudito, não tivesse uma biblioteca em casa, era um cara muito inteligente, e hábil nas relações, até fascinava as pessoas - "vamos trabalhar, vamos fazer"... Ele é quem deveria ter ocupado lá um cargo, como foi, numa época, o Roberto Farias: um cara profissional, emergente do meio, não um intelectual. Um crítico vai escrever sobre a ponte, ele não vai ser igual ao engenheiro que fez a ponte... Tinha que se valorizar a figura do produtor. Às vezes - isso acontece no mundo inteiro - um mau filme resulta num intervalo, mas... deve-se ter a chance de se poder voltar. Eu acho que o Galante está com bons projetos agora, com o Galileu Garcia, com o Ícaro Martins, o Inácio Araújo, que é um cara que sempre batalha no jornal pelo nosso cinema...

Alessandro - O Inácio Araújo começou com você, não é, Sylvio...?

Renoldi - Era meu assistente...

Sganzerla - Tinha um cabelo desse tamanho...!

Renoldi - O Inácio eu tinha que ligar pra ele, e mandar ele vir trabalhar senão ele estava na rua, porque ele tinha a mania de dormir de manhã, entende...?

Sganzerla - Ele tem cara de dorminhoco, né...? (risos) Você tinha que chamar ele, o assistente... quer dizer, você estava ensinando - talvez por isso que ele consiga escrever tão bem, porque a montagem é um princípio de organização das idéias, de identificação dos contrários...

Renoldi - O Inácio é um cara talentoso...

Sganzerla - Agora, devia se fazer, talvez, um trabalho que mostrasse como era naquela época e hoje, né?, Sylvio, estabelecer as relações... As pessoas emprestavam latas de filme, eu me lembro... e sempre devolviam, todo mundo se entendia ali... Eu acho que o Bar Soberano foi importante ali, né?, você armava produções...

Renoldi - Todo mundo se encontrava ali. Às vezes tinha quatro, cinco mesas ocupadas, mas cada uma estava fazendo um filme...

Sganzerla - E havia a amizade, também... O João Callegaro era o mais talentoso, das Libertinas [João Callegaro, Carlos Reichenbach, Antônio Lima, 1968]. E O Pornógrafo, que foi idéia dele... E aí criou-se aquela coisa de que filme preto-e-branco não podia ser lançado - isso era um absurdo, pô, preto-e-branco... não se pode jogar fora as coisas, assim, é preciso abrir o leque, mesmo. Eu vejo o pessoal premiado, os cineastas oficiais, sempre dizendo "não, está totalmente aberto o cinema..." Mas não é, é sempre a mesma coisa, uma panelinha, você vê até pelas designações das comissões...

Renoldi - Esse filme, O Pornógrafo, o Florentino Llorente chegou num dia, estavam reunidos todos os exibidores do Brasil, ele era presidente... Ele sentou e falou assim: "Eu assisti um filme hoje que eu não vou exibir e acho que ninguém deve exibir, chama-se O Pornógrafo". Nós ficamos dois anos pra exibir o filme...

Sganzerla - Eu nunca vi, eu sou amigo de infância do João Callegaro desde os sete, oito anos de idade, nós já éramos amigos... Quer dizer, você não poder ver o filme do amigo, de uma pessoa que você... Assim também como o filme do Tonacci, eu fui ver na Itália - lá passa, como uma obra-prima, e tal, agora, aqui... Então tem alguma coisa errada, teria-se que colocar isso em termos institucionais de se criar uma lei e de se ter algum apoio indireto... E por que é que o Florentino não gostou do Pornógrafo?

Renoldi - Sei lá, pô... Devia estar de mau-humor...

Sganzerla - Quer dizer, ele quis ser mais censor que a própria censura, né...?

Renoldi - Quem exibia os filmes no circuito Serrador era a mulher do Florentino. Se ela não gostasse do filme, ninguém exibia o filme lá. Aquela velha...

Sganzerla - Eu acho que quem sai perdendo é o país, as novas gerações, as pessoas que gostam de cinema... Eu ando me dedicando mais, não sei, à literatura... também eu acho que é tanta luta, que as pessoas não merecem, você fica sofrendo, sofrendo, pra depois fazer uma coisa que depois não... eu acho que o que está sendo prejudicado é a própria cultura, não há uma cultura cinematográfica orgânica no país, um processo-cinema democrático. Eu acho que quem estão prejudicando são exatamente esses censores, que são os aparentes fomentadores e que na verdade substituem a censura, eles fazem tudo pra derrubar um projeto como, por exemplo, esse do Noel Rosa, que é um projeto interessante, porque está lá na epígrafe do livro do Alex Viany [Introdução ao Cinema Brasileiro, 1959] - "o samba, a prontidão", ou seja, a fórmula. E por que não usar isso? Nós queremos fazer um filme mais narrativo, comercial, agradável, mas... O apoio que a gente tem encontrado é justamente dos técnicos, dos artífices, dos artesãos... Os burocratas têm impedido, num certo sentido... Então não adianta os professores criarem mais diretores no mercado, se os veteranos não são respeitados. Eu acho que o fundamental é que quem veio antes tem uma certa primazia, tem que se tirar o chapéu, pra quem fez... O Sylvio é um caso exemplar, ele montou - quantos filmes? - mais de 80 filmes de longa-metragem, sem contar...

Renoldi - Setenta e seis...

Sganzerla - Setenta e seis longas-metragens... É um número, quer dizer, então não se pode perder o resultado dessa experiência, o valor da experiência... Já ganhou vários prêmios, e tudo, mas o importante não é o elogio, o importante é o trabalho, né? E no cinema brasileiro não há continuidade, que é a base de qualquer cinematografia, o princípio da continuidade...

Transcrição e edição: Luís Alberto Rocha Melo