Quando
a gente começou, a gente já começou
rindo, não é, Sylvio?
Participaram deste encontro Alessandro Gamo, Luís
Alberto Rocha Melo e André Francioli. Esta conversa
foi registrada, em imagem e som, para o documentário
O Galante Rei da Boca, rodado em julho de 2001,
São Paulo. Apresentamos aqui a transcrição
dos trechos em que Sganzerla e Renoldi falam sobre aspectos
gerais do cinema, bem como sobre as respectivas carreiras
e os trabalhos realizados em parceria. (Luís
Alberto Rocha Melo)
O cinema e a profecia
Rogério Sganzerla
- Uma vez o Alberto Cavalcanti falou assim pra mim:
"Vou te falar uma coisa". Eu digo: "não, eu já
sei". "Mas o que é que você já sabe?"
"Você vai dizer três coisas: que aqui o
pessoal empurra um carrinho e já quer ser diretor,
ninguém quer ser produtor, todo mundo quer dirigir;
que as máquinas são as mais mal-tratadas
do mundo, e que com isso não se tem o respeito
pela técnica". Aí ele disse: "É,
exatamente isso, como é que você sabe que
eu ia dizer isso?" É porque eu li o livro dele
- o Filme e Realidade, que nasceu do curso que
ele veio dar no Brasil. E dali veio a Vera Cruz, a Maristela,
a Multifilmes... Sylvio, conte um pouco da Maristela,
você era vizinho, quer dizer, aquilo na cabeça
da criança, você vendo aquele mundo, os
estúdios...
Sylvio Renoldi - A Maristela
era vizinha do terreno da minha avó, era uma
fábrica de ácidos, antes, entendeu? Aí
essa fábrica fechou e aí começou
a reformar pra fazer um estúdio de cinema lá.
Aí eles fizeram uma grade, assim, que dividia
a Maristela do meu terreno... Eu era moleque, tinha
nove anos, dez anos, e eu ficava enchendo o saco, conhecia
as pessoas que trabalhavam lá, que já
eram conhecidas minhas do bairro e que foram trabalhar
lá. Aí eu ficava ali, às vezes
tinha uma coisa assim: "ah, vamos fazer a voz de uma
criança, um filme, não-sei-o-quê",
eu ia lá no estúdio. Daí fui pegando
amizade, eu vivia dentro do estúdio, entendeu?
Estava sempre num lugar, no outro, até que um
dia, em 1951, um cara falou "por que é que você
não vem trabalhar aqui em vez de ficar enchendo
o saco aí no estúdio?" Aí foi quando
eu comecei a trabalhar na sala de montagem lá
da Maristela. Nessa época foi quando eu conheci
o Cavalcanti, que estava terminando o Mulher de Verdade.
Sganzerla - O Mário
Civelli era uma grande figura, né? Os jornais
criticavam, mas era uma figura fabulosa... Depois ele
virou distribuidor e ganhou uma fortuna com aqueles
filmes tchecos, né?, filmes italianos, de faroeste,
quer dizer... ele tinha visão. Agora, nos livros,
o que se fala sobre ele é que ele era só
um assistente do Roberto Rossellini e que quando passou
o Roma Cidade Aberta não tinha o nome
dele... mas isso não é o importante, não
é?, quer dizer... ali na Itália, imagina,
ainda é mais confuso que o Brasil, então...
o próprio Rossellini era uma coisa fake,
não é? E o Civelli gostava de cinema,
ele entendia de distribuição, ele ajudava
as pessoas... Assim como o Marinho Audrá. Eu
me lembro que ele dizia: "Você vai fazer seu primeiro
filme, você faz aqui na Gravasom de graça."
"Mas por quê, um curta, de graça...?" "Não,
você pode sonorizar, porque nós sabemos
que você depois vai voltar aqui..." E isso realmente
acontecia, e nos estúdios da Odil Fono Brasil
também. Todos os filmes pagavam o mesmo valor,
parece que dez milhões. Você pagava depois
do filme pronto. Você podia trabalhar o que quisesse,
então tinham duas moviolas pra atender a oito,
dez produções. E nunca houve problema,
porque se precisasse, se aparecesse filme de publicidade,
por exemplo, aí se parava, cedia-se os espaços,
havia um intercâmbio, era esse o espírito
das produtoras da década de 50...
Renoldi - Era uma grande
família, todo mundo ajudando um ao outro, não
tinha essa picuinha aí...
Sganzerla - Havia amizade,
né? Não havia a desconfiança, o
desrespeito...
Alessandro Gamo - E o
trabalho na Boca do Lixo?
Sganzerla - O Sylvio
nunca aparecia lá, aparecia raramente...
Renoldi - ... só
quando eu montava os filmes, né...? Eu ia lá
montar os filmes da Servicine [produtora de Antonio
Polo Galante e Alfredo Palácios]. Montava na
moviola da Servicine. Mas muitos filmes da Servicine
eu montei na Odil, porque ficava mais perto do estúdio,
você gravava e ao mesmo tempo montava a cena,
entendeu?, o som...
Sganzerla - O que o Sylvio
fazia na moviola era impressionante. Ele era capaz de
fazer você dizer a mesma coisa, e inverter, cortando
os magnéticos, ele tinha um domínio...
e também com a moviola, se precisasse extrair
um som ótico, ele criava uma instalação
e fazia, ele era muito amigo do técnico...
Renoldi - E o dia-a-dia
na Boca era normal, entendeu? Puta misturado com ator,
ator misturado com puto, era o Massaini que ficava lá
de cima, era o outro cara que ficava lá embaixo...
Tinham as produtoras mixurucas, tinha o Tony Vieira,
tinha um monte de produtoras ali, tinha o Renato Grecchi...
então, quer dizer, eram pessoas que arranjavam
um dinheirinho e faziam filme, entendeu? Me lembro que
o Renato Grecchi fez um filme com o Carlão Reichenbach
chamado Corrida Em Busca do Amor e, porra, os
caras não tinham motor, entendeu?, então
tinha que ficar cinco neguinhos na esquina empurrando
o carro porque não tinha motor, entendeu? E daí
o carro passava, terminava a cena, puxavam o carro de
novo... um filme de corrida com carro sem motor! Então,
quer dizer, uma loucura, entende...? Mas o pessoal fazia
cinema. Filmavam com filme velho, com filme novo...
Sganzerla - Tem uma história
interessantíssima do "Bandido...": na
ocasião eu falava: "não interessa o cinema,
mas a profecia". Eu escrevi o filme antes de haver a
história do João Acácio [o verdadeiro
Bandido da Luz Vermelha]. Eu estava na Europa, quando
cheguei eu disse: "pô, mas está acontecendo,
o roteiro que eu estou escrevendo está acontecendo".
Mas aconteceram muitas outras coisas assim, também,
por exemplo: nós estávamos quase no rolo
seis ou sete, pra mixar, e eu cheguei de manhã
no estúdio, eu me lembro que era um sábado,
de manhã, e de repente eu ouvi uma metralhadora
- tararararararara - eu digo "pô, tá lá
o Sylvio de novo revendo os ruídos", porque ele
é um montador interessado, é como se fosse
um trabalho dele. E eu falei: "mas não precisa,
tá tudo certo, vai começar a mixagem agora..."
Mas só que a metralhadora não era do filme,
que dizia assim : "Militares estrangeiros são
metralhados na porta das suas residências..."
Eu digo: "porra, mas isso aí... Por que é
que o Sylvio tá revendo..." Não era do
filme, não. Era na frente da Odil Fono Brasil,
estacionaram um carro...
Renoldi - ... estavam
metralhando...
Sganzerla - ... pegaram
um cara que era aquele capitão Chandler...
Renoldi - ... que morava
na casa da Hebe... Os caras metralharam ele ali na porta,
duas casas depois da Odil. Nós estávamos
preparando, justamente o rolo que nós íamos
fazer, era o que dizia "metralhados na porta de sua
residência, não-sei-o-quê..." Porra,
e lá fora pá-pá-pá, comendo
fogo... É coincidência, né?, mas...
Sganzerla - Nós
chegamos lá, ele estava ainda vivo, era até
uma cena, a mulher, com a criança, o livro que
ele tava lendo e ele agonizante... e você foi
o único que viu o atentado, né?, Sylvio,
foi um fusca que trancou, na saída da garagem...
e aí apareceu um repórter, veio a polícia...
Alessandro - Sylvio,
você chegou a dar alguma dica na montagem do A
Mulher de Todos?
Renoldi - Não,
não... não participei, não...
Sganzerla – O Sylvio
não pôde, eu pedi muito que o Sylvio montasse,
mas ele estava assoberbado de trabalho, então
sem que eu soubesse, ele disse: "sim, mas isso
é uma mina, e tal"... talvez pela ousadia
do tema... Naquela época, um filme paulista sobre
o final de semana, como era nas praias, um filme domingueiro,
não é?, um "melodrama-de-beira-de-praia",
como eu chamo.
Renoldi - O Rogério
estava com dificuldade pra fazer o A Mulher de Todos,
dificuldade pra continuar, né?, então
eu convenci o Galante a entrar em contato com o Rogério
pra ver se dava pra dar um toque, já que ele
tinha vários projetos, e foi quando eles se acertaram
e fizeram o filme. Mas eu nem participei desse filme,
eu estava muito ocupado, né?, então o
Rogério montou o filme com outra pessoa...
Luís Alberto -
Quem foi o montador?
Sganzerla - O Franklin
Pereira... Ele deixou o filme curto demais. Quando chegou
a versão final, o filme estava com menos do que
a minutagem necessária. Aí eu digo: "não,
eu vou dar um jeito, pegar todas as sobras e dar um
jeito aqui, fazer mais um rolo..." Talvez pela escola
de comercial do Franklin, ele foi cortando, cortando...
Mas aí fizemos um rolo, que é o rolo exatamente
que as pessoas mais elogiaram, que é aquele negócio
do "paga uma cuba, bem"... O próprio Paulo Emílio
confessava que viu várias vezes o filme pra ver
aquela cena, que na primeira versão não
estava. Eu tive que dublar, o estúdio tinha sofrido
uma reforma, estava com outra qualidade sonora. O filme
é audível, você entende todas as
piadas, tem umas dez, quinze piadas ótimas, né?,
o Jô, que está muito bem, o Jô Soares...
O Franklin copiava um pouco o estilo do Sylvio. Eu acho
que o Sylvio, na montagem do "Bandido...", criou
um código de montagem que imediatamente todos
os outros se colocaram nessa expectativa de dar um novo
tratamento, também quanto ao som - não
precisar de tanto ruído de sala, valorizar a
música com o diálogo, ter várias
músicas ao mesmo tempo... E também o bom
humor que a gente tinha na sala de montagem acho que
passou pro filme, que se mantém atual até
hoje porque foi bem editado, que é um aspecto
crucial do nosso cinema...
Renoldi - Bem anárquico,
né?
Sganzerla - O Sylvio
participava das gravações, dos textos
do "Bandido..." Quando chegavam aqueles locutores
- uma delas era uma velhinha, lá no estúdio,
que ninguém queria trabalhar com ela. "Mas é
essa!" Aí você disse: "Você vai estragar
o filme..." "Não, eu preciso de uma voz assim..."
E quando ela começava a ler aquilo eu tinha que
sair da sala, que eu começava a dar risada -
era uma sátira anárquica, como você
disse...
Renoldi - Se você
não chamasse ela de senhorita ela não
gravava... (risos) "A senhorita pode começar
a gravar?"
Sganzerla - Eu acho que
todos nós devíamos ter feito mais filmes,
devia ter mais produção, agora... cinema
é uma atividade cara, enfim, eu acho que depende
muito das relações... Com relação
ao Sylvio, nós temos que agradecer, os filmes
que a gente conseguiu fazer foi através da amizade,
da consideração, do respeito, né?
E a gente fez um também sobre o Noel Rosa que
era fantástico, eram os 80 anos de nascimento,
com o João Gilberto cantando Noel Rosa, e o Noel
aprendia a fazer a famosa batida com o irmão
do Noel Rosa, o Hélio Rosa. Então era
um material - a Gal Costa, todo mundo fez - e foi um
lançamento bom, lá no Banco do Brasil,
mas o filme... O Sylvio gastou uma pequena fortuna,
o filme foi dublado, traduzido, e tudo... E aí
no Festival resolveram passar dentro do hotel, e não
na sala, porque esse filme era média-metragem...
quer dizer, eles nem passaram o filme... Isso só
podia ser uma represália, uma represália
pelo fato de eu ser crítico... Você falou
muito bem, Sylvio, o Massaini ficava lá em cima,
vendo todas as pessoas filmando... Nós estávamos
filmando "O Bandido...", chegou esse repórter,
que estava na história do Chandler, aí
eu disse: "ó, você vai ver agora, o que
está acontecendo aqui na rua, lá dentro
do estúdio, isso nós temos e está
há meses pronto." Aí ele ficou espantado.
E esse mesmo repórter fez uma entrevista com
o Massaini e disse: "está vendo aquela filmagem
lá embaixo?" Era eu, mais uma pequena equipe
filmando um cara carregando um carrinho de latas de
filmes... O Massaini diz: "Esse filme não vai
passar nunca!" E o repórter imediatamente veio
me dizer : "olha, eu estive com esse grande produtor,
ele disse que esse seu filme não vai passar em
lugar nenhum". Aí eu pensei: "O Massaini vai
ser talvez o primeiro a ir no coquetel de lançamento".
E aconteceu exatamente isso. Quando o filme ganhou oito,
dez prêmios em Brasília, fizemos no Othon
Palace um coquetel, ele foi lá me abraçar,
e tal. Depois eu conheci melhor o velho Massaini, era
uma figura muito legal, entendeu?, era um profissional,
enfim...
A valorização
dos técnicos e o cinema como uma questão
de "classe"
Sganzerla – Eu me lembro
quando a gente se encontrou, o Sylvio estava fazendo
os ruídos do Grande Sertão, Veredas,
né? O pessoal jovem, o Sylvio acolhia muito bem,
na Odil Fono Brasil, que tinha uma excelente equipe,
né? E ali também se fazia rádio,
gravava-se programa de rádio... o Benedito Ruy
Barbosa escrevia novelas pra rádio e o Sylvio
já produzia e montava esse filmes, né?
O filme importante foi o Bebel, Garota Propaganda
[Maurice Capovilla, 1967] porque era um filme paulista
voltado pro pessoal que veio da imprensa. O Roberto
Santos, que é praticamente irmão da gente,
grande figura do cinema paulista... o Bebel foi
dirigido pelo Capovilla, que era meu companheiro no
Jornal da Tarde, a gente escrevia lá na
segunda-feira, sobre todos os filmes que tinham entrado
em cartaz, então tínhamos que ver um monte
de filmes na segunda, e na terça enchíamos
umas páginas inteiras, e o Bebel foi um
filme que tinha um elenco muito bom, a montagem, e uma
produção, que, enfim... e o passo seguinte
foi o "Bandido..." Eu acho que o Roberto Santos
empurrou bastante o projeto, e tudo... quando a gente
começou, a gente já começou rindo,
não é, Sylvio? As primeiras piadas...
uma quantidade enorme de material rodado...
Renoldi – O Rogério
sempre faz a mesma coisa, ele chega sempre com o filme
numa mala, né...? (risos) Traz o filme todo despedaçado
numa mala pra... então... O Bandido da Luz
Vermelha era um filme interessante, que, aliás
- devemos falar -, tinham umas pessoas que não
queriam...
Sganzerla - ... nem que
fosse feito, quanto mais exibido...
Renoldi – É...
quanto mais montado, né?... Então picharam:
"como é que você vai montar um filme
de um louco", não-sei-o-quê... E eu
falei, "é um filme de louco e nós
vamos montar ele como foi feito". E foi o que foi
feito, o filme era louco e a montagem foi feita loucamente,
tanto é que até hoje é um filme
moderno. Na época era uma loucura, né?,
ninguém admitia. Pelo ranço que se tinha,
do modo como todo mundo fazia cinema: Khoury fazendo
cinema estrangeiro no Brasil, o Biáfora tentando
fazer um cinema estrangeiro também no Brasil,
não-sei-quem fazendo, pichando... então,
quando mudava a coisa, era muito difícil você
se manter. Essa que foi a vantagem, se conseguiu, com
"O Bandido...", fazer um cinema brasileiro. Aquela
porcaria era brasileira, não era imitação,
tentar imitar o cinema estrangeiro, Bergman e outros
bichos aí que eles queriam. Então foi
uma época que deixa saudade, que não vai
voltar mais mesmo... E se o Brasil não mudar
a postura de leis como tinha nos anos 70 e 80 e se fazer
cumprir, não vai existir mais cinema brasileiro,
vão existir esses negócios: dando um tiro
no escuro aqui, outro lá, desafiando os caras
na sombra... mas abertamente não vai existir.
Ou então, algum milionário aí que
dá uma grana pro filho fazer um filme. Faz um
filme só, nunca mais faz nada, e aí fica
nessa ilusão: "ah, o cinema nacional agora
vai". Vai nada! Se não houver um apoio do
governo pra valer, não existe cinema. E não
existe cinema em nenhum lugar do mundo, se não
tiver uma proteção do governo. Taí
o Rogério: o Rogério é um diretor
que teve êxito, não é dos diretores
que não faz nada. Fez filmes bons e não
tem chance. Está aí, gramando pra fazer
uma porcaria de um filme, não tem chance, ninguém
ajuda...
Sganzerla – Você
ajudou muito... Enquanto não houver a revalorização
do elemento profissional... quem faz o cinema são
os técnicos, os profissionais, os diretores,
os montadores, e não os burocratas. Tem alguns
servidores, funcionários, que são prestativos,
e tal, mas temos exemplos de burocratas que substituíram
a censura oficial, aquela censura do momento mais difícil,
que substituem desestimulando o trabalho, aí
eu acho que realmente... enquanto não houver
essa revalorização... como o Sylvio diz,
em qualquer país do mundo, o governo deve dar
alguma parte de apoio. Nós não estamos
aqui pedindo dinheiro, estamos pedindo mais justiça,
porque não há o elemento intérprete
disso...
Renoldi – Pelo menos
uma exibição garantida, né? Isso
é o mínimo.
Sganzerla – Por exemplo,
o Sylvio tem grandes idéias... Além de
ser um amigo, um profissional, um produtor associado,
é um roteirista, um argumentista, ele bola grandes
piadas, idéias, gags... Isso não
tem preço. Agora, vai-se filmar, tem aí
parque de luz, material... Mas o que é que adianta
filmar, fazer o quê com o filme? A funcionalidade,
o uso desse produto...
Renoldi – Exibir aonde?
Você faz um filme e não tem lugar pra exibir.
Não tem um cinema, não tem nada. Tem cinema
de shopping, um camarada faz dez cinemas aqui,
vinte lá, mas você não passa, o
filme não passa em nenhum lugar. Pode desistir.
Quem tiver idéia de fazer um filme, enquanto
não tiver uma proteção grande pro
cinema, não vai fazer filme. A única coisa
hoje em dia que um produtor faz - que é a malandragem
- é ganhar na produção. Faz um
orçamento de cinco paus, gasta dois, pega
três e bota no bolso, e fica morrendo de rir dos
otários que ajudaram a fazer e pastaram. Essa
é que é a realidade.
Sganzerla – E esse é
um dos prêmios que a burocracia oficial nos impôs,
que é criar pequenos agregados... são
filmes de colegas, de amigos, de companheiros de classe
- de classe nos dois sentidos, e acredito que não
há muita classe cinematográfica
nisso, porque o roubo é sempre negativo, né...?
Alessandro – Sylvio,
você poderia falar das produções
que você participou com o Galante, que você
montou?
Renoldi – Ah, eu montei
uma série de filmes, né? O Cangaceiro
Sem Deus [Osvaldo de Oliveira, 1969], O Cangaceiro
Sanguinário [Osvaldo de Oliveira, 1969],
As Deusas [Walter Hugo Khoury, 1972], Sertão
em Festa [Osvaldo de Oliveira, 1970], Rancho
Fundo [Osvaldo de Oliveira, 1970]... aliás
o Sertão em Festa foi o filme que deu
mais dinheiro pro Galante, um filme sem muita pretensão
mas que entrou na linha do Mazzaroppi. E depois, também...
é, eu fiz uns dez filmes com o Galante, fiz uma
co-produção que foi O Pornógrafo,
com o João Callegaro e o Osvaldo de Oliveira.
Sganzerla – O Pornógrafo,
como é que nasceu O Pornógrafo,
Sylvio?
Renoldi – Isso foi idéia
do João Callegaro, fazer a história de
um imigrante que pastava na cidade paulista, mas isso...
era uma coisa bem do João, né? E depois...
Nós fizemos um filme de gozação
que era o Rogo a Deus e Mando Bala [Osvaldo de
Oliveira, 1970], que era um bang-bang, entendeu?,
que a gente estava com saco cheio de western-spaghetti,
então nós fizemos esse filme... a gente
se dava ao luxo de fazer uma besteira dessas... Mas
na realidade o que nós vamos dizer é o
seguinte: nunca, nunca, o dinheiro que entrou no cinema
ficou no cinema.
Sganzerla - Não
foi reinvestido...
Renoldi - Não
foi reinvestido. Primeiro que eu acho que era pouco,
entende? E mais se perdia pelo caminho.
Sganzerla - Na sonegação...
Renoldi - Na sonegação,
na exibição...
Sganzerla - É
a falta de uma fiscalização como o Mazzaroppi
tinha. Quando os filmes viajavam, ele mandava um fiscal,
uma pequena despesa para... aí vinham os caminhões,
enchia de gente... os filmes se pagavam amortizando
na cidade de São Paulo, que tinha um mercado
maior do que a França inteira...
Renoldi - Eu calculo
que naquela época o desvio era entre 80% e 90%
da bilheteria. Só quando o filme dava muita grana
mesmo é que aparecia algum dinheiro, mas quando
era produção média, assim, não
aparecia nunca.
André Francioli
- E você, Rogério, como é que você
vê essa decadência do cinema que vocês
apontaram aqui?
Sganzerla - Vejo uma
decadência provocada pelo intelectualismo de alguns
"responsáveis" - entre aspas - que foram
convocados para incentivar o cinema nacional e, na verdade,
substituíram a censura. Substituíram através
do princípio da exclusão: "Não,
você não pode, você pode, aquele
pode"... Geralmente o que podia era o coleguinha
da classe... Então se tornou o cinema familiar,
uma coisa mafiosa, que nunca é positiva...
Renoldi - E existe o
problema internacional, também, né...?
Se o Brasil faz uma lei, os caras dizem: "ah,
nós vamos proibir o café, vamos proibir
isso, proibir aquilo" - então o cinema nacional
sempre foi um mercado que eles sempre quiseram ter na
mão, como têm hoje, entendeu? Então
eles fazem qualquer coisa, porque eles se protegem muito.
Agora nós, aqui, é chumbo grosso em todo
o cinema, não tem proteção, não
tem nada, porque existe uma pressão, entendeu?
Quantas vezes os caras chegaram e disseram: "Não
é possível que um filme brasileiro dê
mais que um filme que gastou cinqüenta milhões
de dólares". Os caras não se conformavam.
Hoje eles estão como querem: todos os cinemas
estão com contrato, eles vêm de lá
já com a exibição garantida e o
cinema nacional taí: não tem lugar. Não
tem mesmo. Rogério tá querendo fazer um
filme? Eu quero ver - vai exibir aonde, esse filme?
Sganzerla - É
mais fácil no exterior, tem que fazer os filmes
de prestígio...
Renoldi - O negócio
agora é: se tiver que fazer um filme tem que
fazer em inglês, em espanhol, em qualquer língua,
menos em português...
Sganzerla - Agora, estava
sempre baseado, o sucesso dos filmes brasileiros, no
custo do ingresso baixo, o que favorece a fita brasileira.
Quanto mais alto o ingresso, menos público. A
quantidade é que vai gerar a qualidade - e o
ingresso baixo.
Renoldi - Naquela época
também tinha o incentivo do ingresso. Então,
quando você fazia um "x" de renda, você
recebia uma grana limpa do...
Sganzerla - ... do serviço
de arrecadação. É uma coisa que
a prefeitura de São Paulo fez nos anos 50, em
1955, a Lei do Adicional. Mas não assim: "ah,
vamos dar pra um, pra outro", não: conforme a
bilheteria você ganhava 10% a mais do governo,
quer dizer, um incentivo dependendo do resultado dessa
venda de ingresso. E quando o filme tinha uma categoria
melhor, quando era um diretor bom, etc., aí às
vezes dava, por exemplo, 25%, e aí se tornava
um grande negócio, mas era em função
do trabalho, do resultado, da performance, e
não de premiações exclusivistas...
Hoje em dia o cara ganha pra trabalhar e já fatura
antes de trabalhar, porque não há um critério
de avaliação dos filmes, não tem
ninguém que consiga nem avaliar os roteiros,
né? Às vezes grandes projetos são
jogados no lixo, e continua se fazendo sempre aquele
modelo errado de filme, não é?, filme
muito caro, pra ingresso caro - não é
nem pão, nem circo, não é nada,
nem uma coisa nem outra. E quando isso ocorre é
ruim pra todo mundo. Eu acho que o cinema é uma
atividade produtiva: manter a língua, a imagem
do nosso país, e ocupar uma parte desse mercado.
Já ocupou nas décadas de 1970 e 80, de
trinta a quarenta por cento... É porque lá
fora, o exibidor fica com 10%; 90% vai pra produtora.
Aqui é o contrário, é 90% pro dono
da sala e 10% pro produtor... Na verdade 25%, 30% do
bruto - quer dizer, você descontando cartazes,
cópias, serviço de lançamento,
anúncios, você fica sempre com pouco...
O cinema e o princípio
da (des) continuidade
Alessandro - E essas
mudanças de ritmo, de linguagem, que vocês
estão vendo, em relação ao cinema,
de uma época para cá?
Renoldi - Não,
linguagem não mudou nenhuma. Eu acho que os filmes
ficaram é muito ruins, entendeu...? Acho que
não mudou nada. Os filmes é que são
muito ruins, é uma TV de baixa qualidade que
estão fazendo, esse é que é o problema...
Sganzerla - Exatamente...
Renoldi - Alguns filmes
são bons, mas... um ou outro, o resto é
tudo piada.
Francioli - Como é
que você vê o alcance estético dessa
produção atual, Rogério?
Sganzerla - Eu penso
como o Sylvio acabou de dizer, eu acho que é
uma piada onerosa, pra todo mundo... Por exemplo, acham
que um filme pra ser bom tem que ser chato. Não
necessariamente, né? Então, às
vezes os filmes pra serem sérios tem que ser
aquela coisa cansativa. Eu vejo o contrário,
eu acho que falta ritmo, faltam gêneros, criar
modelos, standarts, qualquer tipo de filme pode
ser bom, desde que se faça com o cuidado que
a coisa necessita: uma boa planificação,
objetividade, trabalho de equipe, um produtor que dê
condições de você trabalhar livremente...
O que tá faltando, também, é que
as histórias são mal escritas, entendeu?
Você pega um livro deste tamanho e faz, mas aí
não houve a transposição, entendeu?
E faltam dialoguistas, quais são os dialoguistas
que têm aqui no Brasil? Tem alguns que estão
lá no rádio, na televisão, não
sei, nós não temos nem isso - dialoguistas
- temos dois, três. Devia se gastar mais papel
e menos película, né? Agora, eu acho que
os filmes são muito chatos, porque tentar copiar
a televisão é errado. A televisão
é que deveria copiar o cinema, porque a televisão
não tem nem o traquejo, mesmo com os recursos
técnicos e com as equipes você vai estar
sempre sendo sub-produto, não é por aí...
Não vamos copiar os defeitos, vamos copiar as
qualidades, não é? E depois tem esse princípio
da exclusão, né? Tem que valorizar o profissional...
quem fez o cinema foram os profissionais, os técnicos,
os fotógrafos, os montadores... A montagem é
o grande aspecto, não é um aspecto,
é o aspecto do filme - não sou
eu quem digo -, mas pra conseguir isso é preciso
ter um assistente, precisa ter uma preservação,
precisa ter um certo - não digo conforto, mas
um mínimo... E esse mínimo sempre foi
negado pelas figuras que comandam aqui essa "indústria",
entre aspas, que não é nem arte nem indústria
- não é nada. Agora a televisão
quer entrar no mercado com os incentivos fiscais. Eu
acho isso um absurdo, porque a televisão são
as maiores fortunas do país, eles têm minas
de ouro na Amazônia... Se eles quiserem entrar
e fazer cinema com o dinheiro deles, correto, perfeito,
agora - não com o dinheiro que deveria ser dos
independentes, não com incentivos fiscais...
Quer dizer, criou-se um impasse: se eu quiser trabalhar
na televisão não me aceitam. Mas o que
é que esse pessoal tá fazendo agora? Eles
estão se dirigindo a esse mercado, multiplex,
e criando toda uma imposição. E eu acho
que vai continuar um cinema capenga, um cinema que não
é o verdadeiro... não é cinema,
isso, também... Não é nem comércio
nem arte...
Renoldi - Hoje a produção
que existe é a produção de comercial:
se faz com o cheque na mão, entendeu? O camarada
diz: "preciso daquela mala lá". O camarada vai
lá, faz um cheque e traz a mala. Quer dizer,
você vai fazer um longa-metragem desse jeito,
pô? É pra ir pro buraco...! Antigamente
você ia lá, convencia o camarada, o camarada
ainda trazia pra você o negócio, depois
vinha buscar e te agradecia, e dizia: "só quero
uma foto da cena". Hoje em dia não, hoje em dia
é tudo com cheque na mão, pô! Qualquer
coisa que você vai fazer é com cheque na
mão, isso é fazer produção?
Isso qualquer idiota faz! "Preciso filmar lá
no museu" - chega lá no museu e diz: "olha, eu
tenho aqui cinco mil pra..." "ah, tudo bem." Pronto.
Quer dizer, pô... "Ah, mas pra pegar aquele baú
lá vai custar mais mil". Então quer dizer:
qual produção que vai agüentar isso?
Sganzerla - É
verdade. E comercial demora dez dias, cinco dias...
Renoldi - Não,
um dia!
Sganzerla - ...um dia...
Agora um longa-metragem são meses...
Renoldi - ...não,
e o comercial é financiado, né? Então
você tem um orçamento pra gastar no comercial,
agora - produção de comercial em longa
não funciona, entendeu? E nós estamos
reduzidos a isso. Se você quiser fazer a produção
de um longa, você vai ter produtor de comercial,
entendeu? Então...
Sganzerla - É
porque não se valorizou a figura do produtor.
O Galante, por exemplo, era um excelente produtor. Embora
ele não fosse culto, nem erudito, não
tivesse uma biblioteca em casa, era um cara muito inteligente,
e hábil nas relações, até
fascinava as pessoas - "vamos trabalhar, vamos fazer"...
Ele é quem deveria ter ocupado lá um cargo,
como foi, numa época, o Roberto Farias: um cara
profissional, emergente do meio, não um intelectual.
Um crítico vai escrever sobre a ponte, ele não
vai ser igual ao engenheiro que fez a ponte... Tinha
que se valorizar a figura do produtor. Às vezes
- isso acontece no mundo inteiro - um mau filme resulta
num intervalo, mas... deve-se ter a chance de se poder
voltar. Eu acho que o Galante está com bons projetos
agora, com o Galileu Garcia, com o Ícaro Martins,
o Inácio Araújo, que é um cara
que sempre batalha no jornal pelo nosso cinema...
Alessandro - O Inácio
Araújo começou com você, não
é, Sylvio...?
Renoldi - Era meu assistente...
Sganzerla - Tinha um
cabelo desse tamanho...!
Renoldi - O Inácio
eu tinha que ligar pra ele, e mandar ele vir trabalhar
senão ele estava na rua, porque ele tinha a mania
de dormir de manhã, entende...?
Sganzerla - Ele tem cara
de dorminhoco, né...? (risos) Você tinha
que chamar ele, o assistente... quer dizer, você
estava ensinando - talvez por isso que ele consiga escrever
tão bem, porque a montagem é um princípio
de organização das idéias, de identificação
dos contrários...
Renoldi - O Inácio
é um cara talentoso...
Sganzerla - Agora, devia
se fazer, talvez, um trabalho que mostrasse como era
naquela época e hoje, né?, Sylvio, estabelecer
as relações... As pessoas emprestavam
latas de filme, eu me lembro... e sempre devolviam,
todo mundo se entendia ali... Eu acho que o Bar Soberano
foi importante ali, né?, você armava produções...
Renoldi - Todo mundo
se encontrava ali. Às vezes tinha quatro, cinco
mesas ocupadas, mas cada uma estava fazendo um filme...
Sganzerla - E havia a
amizade, também... O João Callegaro era
o mais talentoso, das Libertinas [João
Callegaro, Carlos Reichenbach, Antônio Lima, 1968].
E O Pornógrafo, que foi idéia dele...
E aí criou-se aquela coisa de que filme preto-e-branco
não podia ser lançado - isso era um absurdo,
pô, preto-e-branco... não se pode jogar
fora as coisas, assim, é preciso abrir o leque,
mesmo. Eu vejo o pessoal premiado, os cineastas oficiais,
sempre dizendo "não, está totalmente aberto
o cinema..." Mas não é, é sempre
a mesma coisa, uma panelinha, você vê até
pelas designações das comissões...
Renoldi - Esse filme,
O Pornógrafo, o Florentino Llorente chegou
num dia, estavam reunidos todos os exibidores do Brasil,
ele era presidente... Ele sentou e falou assim: "Eu
assisti um filme hoje que eu não vou exibir e
acho que ninguém deve exibir, chama-se O Pornógrafo".
Nós ficamos dois anos pra exibir o filme...
Sganzerla - Eu nunca
vi, eu sou amigo de infância do João Callegaro
desde os sete, oito anos de idade, nós já
éramos amigos... Quer dizer, você não
poder ver o filme do amigo, de uma pessoa que você...
Assim também como o filme do Tonacci, eu fui
ver na Itália - lá passa, como uma obra-prima,
e tal, agora, aqui... Então tem alguma coisa
errada, teria-se que colocar isso em termos institucionais
de se criar uma lei e de se ter algum apoio indireto...
E por que é que o Florentino não gostou
do Pornógrafo?
Renoldi - Sei lá,
pô... Devia estar de mau-humor...
Sganzerla - Quer dizer,
ele quis ser mais censor que a própria censura,
né...?
Renoldi - Quem exibia
os filmes no circuito Serrador era a mulher do Florentino.
Se ela não gostasse do filme, ninguém
exibia o filme lá. Aquela velha...
Sganzerla - Eu acho que
quem sai perdendo é o país, as novas gerações,
as pessoas que gostam de cinema... Eu ando me dedicando
mais, não sei, à literatura... também
eu acho que é tanta luta, que as pessoas não
merecem, você fica sofrendo, sofrendo, pra depois
fazer uma coisa que depois não... eu acho que
o que está sendo prejudicado é a própria
cultura, não há uma cultura cinematográfica
orgânica no país, um processo-cinema
democrático. Eu acho que quem estão prejudicando
são exatamente esses censores, que são
os aparentes fomentadores e que na verdade substituem
a censura, eles fazem tudo pra derrubar um projeto como,
por exemplo, esse do Noel Rosa, que é um projeto
interessante, porque está lá na epígrafe
do livro do Alex Viany [Introdução
ao Cinema Brasileiro, 1959] - "o samba, a prontidão",
ou seja, a fórmula. E por que não usar
isso? Nós queremos fazer um filme mais narrativo,
comercial, agradável, mas... O apoio que a gente
tem encontrado é justamente dos técnicos,
dos artífices, dos artesãos... Os burocratas
têm impedido, num certo sentido... Então
não adianta os professores criarem mais diretores
no mercado, se os veteranos não são respeitados.
Eu acho que o fundamental é que quem veio antes
tem uma certa primazia, tem que se tirar o chapéu,
pra quem fez... O Sylvio é um caso exemplar,
ele montou - quantos filmes? - mais de 80 filmes de
longa-metragem, sem contar...
Renoldi - Setenta e seis...
Sganzerla - Setenta e
seis longas-metragens... É um número,
quer dizer, então não se pode perder o
resultado dessa experiência, o valor da experiência...
Já ganhou vários prêmios, e tudo,
mas o importante não é o elogio, o importante
é o trabalho, né? E no cinema brasileiro
não há continuidade, que é a base
de qualquer cinematografia, o princípio da continuidade...
Transcrição
e edição: Luís Alberto Rocha Melo
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