27ª Mostra BR de São Paulo – Balanços


(acompanharam pela Contracampo: Cleber Eduardo, Eduardo Valente, Filipe Furtado, Sérgio Alpendre e Ruy Gardnier)

CLEBER EDUARDO
Os melhores filmes vistos em uma mostra de cinema são os filmes que tiveram maior impacto em nós na experiência de assisti-los. Sem muito tempo para se refletir sobre eles após a aproximação com suas imagens, tendemos a construir nossos olhares quase exclusivamente nas próprias sessões, após as quais novas sessões ocupam nossos olhares e nosso empenho reflexivo. Uns se mantém no alto com o tempo e nas revisões, outros tendem a perder o impacto gerado pelo contato inicial, mas, no frigir das cenas e sequências, os preferidos são aqueles a nos acompanhar, aos quais sintimos o desejo de retornar a eles, de modo não só a termos confirmadas nossas impressões, mas também a assimilar alguns ângulos não detectados. No caso da Mostra de SP, que reprisou filmes já destacados no Festival do Rio, como por exemplo a preciosidade de Sophia Coppola (Encontros e Desencontros), foram alguns os momentos de impacto. Segue abaixo uma breve seleção, que, como toda seleção, é temporária e determinada pelo contexto no qual foi feita.
Vai e Vem, de João Cesar Monteiro
Nos filmes do cineasta português, o cinema pode ser qualquer coisa. Exatamente tudo o que, no cinema, o cinema pode ser. Monteiro abraça poesia, teatro, lendas, citações, mitos e alusões ao real. Em sua última obra, realizada com a consciência da proximidade da morte, vemos a afirmação da vida, mas também sua reavaliação, crítica e irônica, principalmente dele como artista, expressa no diálogo de seu personagem com o filho. Monteiro esbanja afeta pelas mulheres (sobretudo, moçoilas), pela língua portuguesa e pela poesia contida na oralidade. Em seu universo, trafega-se pelo erudito e pelo popular, sem delimitação de fronteiras. Em sua forma de construção, há planos sem contraplanos, câmera fixa, enquadramentos longos, com um rigor libertário e não aprisionante, no qual o homem é o objeto do olhar, determinante da moldura. Com uma variedade de sequências memoráveis, fico com a do número musical no ônibus, uma das passagens mais felizes do cinema.
Adeus Dragon Inn, de Tsai Ming Liang
O cineasta malasiano atinge seu momento mais radical nesta obra que, comparada as anteriores, tem ainda menos palavras e ainda menos interação entre seres. Notável como filma a aproximação sem contato entre os corpos enquanto, na tela, um filme de artes marciais coloca os atores em choque uns com outros. Tsai chega àquele estágio no qual as palavras encontram limites para expressar a significação e a a articulação das imagens.
Tirésia, de Bertrand Bonello
Para um cineasta que tematiza o olhar, e consequentemente a imagem, e consequentemente um dos vértices da modernidade, Bonello parece pleitear uma revisão total. A atualização da tragédia grega, a começar pela matriz trágica e prosseguindo pelo identidade do travesti-título, põe em xeque a auto-construção do humano e, dando um passo atrás talvez para enxergar melhor seu tempo, mostra a força sem lógica da natureza. Sempre buscando o estranhamento nas formas de filmar, montar e nas atuações, sempre tateando pelo mistério das cenas sem tentar decifrá-las, o cineasta lança-se a questionar o cinema, a sociedade imagética, as manipulações de aparências, sem deixar de estar dentro de tudo isso. Um filme de seu tempo e contra ele ao mesmo tempo.
A Volta do Filho Pródigo – Os Humilhados de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet
Muitos espectadores reclamam da dificuldade de se vencer as imagens estáticas do casal de cineastas e o palavrório de seus atores para adentrar ao universo proposto. Mas havendo disposição para se superar essas barreiras, maior para uns, menor para outros, é possível encontrar um dos mais poéticos e políticos filmes contemporâneos, no qual a palavra não é apenas uma partícula da linguagem para expressar sentidos, mas também um dado poético em si, cuja composição de sonoridades criam sensações para além do entendimento das frases. Straub/Huillet desafiam não só os limites do espectador, mas da própria arte por meio do qual se expressam, sempre com economia de artifícios.
Fúria, de Karim Dridi
Uma história de amor mais ou menos batida pode ser apenas mais uma história de amor batida e também pode ser apenas a substância de uma construção estética e dramática fortes o suficiente para reiventar a história de amor batida sob outros parâmetros. Karim Dridi crê nisso. A elaboração sofisticada de seus planos, a sensualidade de algumas de suas cenas e o caráter trágico das ações, que mostram como os personagens estão atados a seus desejos e a uma conspiração do acaso contra esses desejos, dá uma estatura significativa a seu filme. Foi uma das boas supresas da programação.

EDUARDO VALENTE
Depois do Festival do Rio, a Mostra de SP complementou a programação de um ano bastante rico em filmes importantes sendo feitos pelo mundo (isso tirando pelo painel dos que aqui chegaram...). Em SP, até mais do que no Rio, as retrospectivas foram parte essencial do evento, ainda que sofram discriminação parecida com a carioca (se no Rio são isoladas em salas fora do centro do Festival, em SP são acumuladas em horários que batem). Tradicionalmente SP aposta mais em retrospectivas de diretores menos emblemáticos, e ainda mais em retrospectivas de diretores que ainda estão trabalhando. Embora (infelizmente) não seja mais o caso de João César Monteiro, ainda assim tratou-se de uma das mostras mais essenciais de um autor contemporâneo a passar pelo Brasil. Junto com a revelação de boa parte da obra de Kiju Yoshida, e do investimento em autores e filmes mudos menos assistidos, SP foi um complemento perfeito aos consagrados Welles e Monicelli.
No que se refere aos títulos novos, é difícil separar as duas mostras pela repetição de vários títulos. Assim, não faria sentido falar de novo de Elefante, Encontros e Desencontros, A Captura dos Friedman, etc. Mas, mesmo assim é importante ver que houve ainda vários títulos essenciais exibidos em só um dos festivais (como, no caso do Rio, Shara, Coisas Secretas, Bom Dia Noite, Ana e os Outros, Sansa, etc), o que mostra como é importante (para os que tenham esta possibilidade, lógico) comparecer aos dois eventos.
Bom, mas vamos a um rápido balanço do melhor e do pior que eu vi em SP, lista menor que a do Rio por não considerar os filmes exibidos lá (e destacando pelo menos dois filmes que não pude ver: Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira e A Mansão do Lago, de Lester James Parries).
Os destaques:
1) Adeus, Dragon Inn de Tsai Ming-liang e Vai e Vem, de João César Monteiro
Dois filmes-síntese, resumos de obras completas e importantes, apêndices de preocupações formais, temáticas, verdadeiras declarações de princípios (e, no caso de Monteiro, testamento). Tsai, a meu ver, faz aqui seu melhor filme. Monteiro, não. Mas são dois filmes pulsantes e cheios de paixão pelo cinema e pela vida.
2) Ouro Carmim, de Jafar Panahi, A Primeira Carta, de Abdolfazl Jalili, O Silêncio entre Dois Pensamentos, de Babak Payami, Fôlego Profundo, de Parviz Shahbazi.
Cada um por motivos muito diferentes demonstra uma vitalidade do cinema iraniano, que fica mais importante pela sua variedade (este ano tivemos mais de 15 filmes iranianos exibidos nos dois festivais) do que por um traço em comum, ou a afirmação de um mestre (como Kiarostami). Ninguém duvida que seja uma das cinematografias mais importantes do mundo hoje, mas talvez neste ano possamos ter realmente afirmado isso a partir do conjunto de seus filmes.
3) Pequenas Feridas, de Pascal Bonitzer e Naquele Dia, de Raul Ruiz.
O cinema como jogo, como linguagem e construção narrativa livre, sempre sob o controle do olhar de um diretor (e roteirista, no caso de Bonitzer) fazendo com que a manufatura de seu filme não o torne engessado só por estar ás claras o tempo todo. Filmes sobre fazer filmes, sem no entanto deixarem de ser sobre gente. E sobre a loucura do ser humano.
Outros destaques: Raja, Seu Irmão, Ao Primeiro Sopro de Vento, A Volta do Filho Pródigo-Os Humilhados.
As piores coisas (mais uma vez, estamos ignorando aqueles já citados nesta categoria na avaliação do Festival do Rio):
1) Combate, de Ruth Mader e Luzes Distantes, de Hans-Christian Schmidt
Há, é verdade, uma certa distância entre o cinema "filha-da-puta" de Mader (filhote direto do deplorável Dias de Cão, de Ulrich Seidl), com sua visão do ser humano como pedaço de carne fadado à decadência física e moral; e o pessimismo supostamente bem intencionado e humanista de Schmidt. No entanto, o que os une é uma mesma visão das relações sociais e humanas que, ao tentar igualar a experiência humana pela noção do "mundo cão", é tão tola quanto qualquer filmete polianístico-calhorda do tipo "o mundo vai bem" feito por políticos em pleno mandato. Em ambos os casos, para provar seus pontos de vista, reduzem a experiência humana a uma desculpa para soltar seus argumentos simplórios.
2) Pai e Filho, de Alexander Sokúrov e As Invasões Bárbaras, de Denys Arcand
O primeiro podia ser só um equivocado filme "de arte", e o segundo podia ser só um manipulador melodrama tolo. No entanto, por trás (ou, no caso de Arcand, pela frente também) destes defeitos menores destila o discurso recalcado dos artistas "sem lugar no mundo", da ode à uma arte ou tempo perdidos, se escorando num invólucro de cinema artístico num caso e humanista no outro. Tudo tolice para esconder seu principal ponto em comum: o conservadorismo mais babaca, que é tanto pior porque se faz de liberal.
3) O Retorno, de Andrey Zviagintsev e No Céu do Líbano, de Randa Chahal Shabbag
Ou "Deu a louca em Veneza". A mais importante participação de Mario Monicelli nos festivais deste ano certamente não foi ser homenageado no Rio, e sim ser o presidente do júri que deu os Leões de Ouro e Prata para estes dois embustes sem fim (um, escondendo seu primarismo dramático e temático por trás de uma fotografia e montagem "profundas", o outro por trás de um humanismo raso e da relação com os atuais conflitos do Oriente Médio), tendo nas mãos, entre outros, os filmes de Tsai, Oliveira, Bellocchio (para falar dos que já vimos). E pelo jeito a coisa é contagiosa, porque na seção Contracorrente o fraquinho Vodka Lemon bateu, entre outros, o esplendoroso Encontros e Desencontros. O melhor é não prestar atenção em prêmios mesmo, nunca.
Hors concours: Dez Minutos Mais Velho – A Série. Picaretagem à toda prova. Sob uma esfarrapada desculpa de "filmes sobre o tempo", com ainda mais picaretas separações com nome de instrumentos (O Trompete, O Cello), um desfile de diretores "de renome" (para o bem ou para o mal) refestelando-se na preguiça ou na simples falta do que dizer. Exceções? Três: o belíssimo curta de Victor Erice (não por acaso, talvez, o menos "renomado" dos diretores), a homenagem simples mas sincera de Jiri Menzel e o trecho de Godard, à la Histoire(s) du Cinema. Jim Jarmusch e Claire Denis fizeram pequenas obras, eventualmente agradáveis, mas plenamente dispensáveis em suas obras. O resto ia do simplesmente tedioso (Spike Lee, Aki Kaurismaki, Werner Herzog), resvalava no tolo (Volker Schlondorff, Bertolucci, Wenders, Chen Kaige), até chegar ao francamente insuportável (István Szabo, Michael Radford e, em especial, Mike Figgis).
Outros destaques negativos: O Festim do Louva-Deus, O Povo do Churrasco, A Mulher que queria ser Presidente dos EUA, Aprendendo a Perder, A Vida Dessa Garota, A Alma de um Homem.

FILIPE FURTADO
Apesar do grande numero de filmes que já nasceram mortos (como os de Arcand, Sokurov, Vinterberg, etc) a Mostra apresentou uma seleção das mais fortes com muitos cineastas de primeiro tipo no melhor da forma. Vale ressaltar negativamente que por mais um ano a seleção se revelou desprovida de grandes surpresas com os melhores filmes vindo de diretores já consagrados. Vale ressaltar que não vi alguns trabalhos importantes como Elefante, Pequenas Feridas e Alila.
1 – A História de Marie e Julien (Jacques Rivette) – A partir do jogo de atração entre dois atores retira-se todo o cinema possivel.
2 – Vai e Vem (João César Monteiro) e Um Filme Falado (Manoel de Oliveira) – Dois mestres portugueses em momento de plenitude.
3 – Adeus, Dragon Inn (Tsai Ming-liang) – Filme de cinema.
4 – O Signo do Caos (Rogério Sganzerla) – A Autobiografia de Sganzerla. Tão doloroso quanto necessário.
5 – demonlover (Olivier Assayas) – O fascínio/horror da imagem no seu estado mais mercantil.
Outros momentos vitais da Mostra incluíram Lifeline (curta de Victor Erice para O Trompete), A Volta do Filho Pródigo – Os Humilhados (Jean-Marie Straub e Danièle Huillet), Encontros e Desencontros (Sofia Coppola), Anjo da Guerra (André Techiné), Raja (Jacques Doillon) e Prova de Amor (David Gordon Green). Sem contar a retrospectiva de Monteiro, marcada por grandes filmes.

RUY GARDNIER
Pode haver paraíso do cinéfilo numa mostra de 300 filmes? Se sim, a 27ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo esteve perto de sê-lo. Uma filmografia inteira a descobrir (Kiju Yoshida), outras a complementar (Mauritz Stiller, João César Monteiro), além de bem-vindas homenagens (a Yasujiro Ozu notadamente), misturados com as excentricidades de sempre da Mostra (muito do cinema austríaco e do alemão, e como sempre nada especial a declarar) e com as apostas personalíssimas do diretor, Leon Cakoff. Cuidado impecável com as condições de exibição e com o controle das sessões (contam-se nos dedos as sessões atrasadas, os filmes que não chegaram, os problemas com tradução e legendagem foram próximos do zero). O melhor filme foi visto duas vezes no Rio: Elefante. Dentre os filmes contemporâneos (novos Yoshida e Monteiro incluídos), meus preferidos foram:
1-5) Elefante, de Gus Van Sant (ver defesa no balanço carioca)
6-7) O Signo do Caos de Rogério Sganzerla e Um Filme Falado, de Manoel de Oliveira. Dois filmes sobre destruição de mundo e de cultura que dão um mergulho vertiginoso no nada para nos fazer melhor voltar à tona com alguma esperança.
8) Vai e Vem, de João César Monteiro. Teste de paciência com o espectador médio assim como em Branca de Neve, Vai e Vem é menos uma peça dilapidada do que a acumulação de cenas às vezes um tanto arbitrárias dos últimos dias de um homem que definha. Definha mas vive sua vida até o limite. Uma vez que aceitamos ser submetidos à vontade (vital e cinematográfica, não parece haver limite exato) de Monteiro, nasce uma beleza rara e jamais vista. O plano final é de antologia, e a seqüência em que toca "Bella Ciao" por si só é um dos mais inacreditáveis structural films já feitos.
9) História de Marie e Julien, de Jacques Rivette. Rivette ama camadas: nos estabelece na intriga a partir de uma chantagem que nunca fará muito sentido à trama, nos instala numa intrincada história de fantasmas unicamente para querer refletir sobre uma coisa muito simples: l'amour, tout simplement. O amor obstinado, o relógio que lembra o tempo que passa, Béart radiante prometendo perseguir seu amor até o infinito se preciso.
Além de duas pérolas: Encontros e Desencontros de Sofia Coppola e A Volta do Filho Pródigo – Os Humilhados, de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet.
Ao contrário de toda a redação da revista, não me senti minimamente estimulado por Adeus, Dragon Inn, filme que faz de sua mestria incontestável de realização uma utilização um tanto perversa (a saber, a repetição de fórmulas sem nenhuma ousadia ou a tentativa de desenvolver ou ampliar o escopo temático do artista). Mas nada no nível da atrocidade que é Dogville. As Invasões Bárbaras foi visto logo depois da Mostra, já no Rio, mas é também uma das coisas mais notavelmente perversas na relação de complacência fúnebre que estabelece com seus espectadores (que o adoram). Destaque para filmes de que se esperava muita coisa e que revelaram-se, se não completamente nulos, fortemente burocráticos: O Retorno, O Desaparecido (Lee Kang-sheng), Naquele Dia (Ruiz), Distante (Ceylan)...
Menção especial à estetização do miserabilismo existencial, terreno em que Gaspar Noé não está muito longe de Patrice Chéreau, a não ser no que diz respeito à honestidade dos princípios de cada um, ao disfarce humanista (ou seja, falar sobre a profundidade da vida) e ao ritmo das obras de cada um: Tempos de Lobo, Seu Irmão.

SÉRGIO ALPENDRE
50 filmes, 53 sessões. Revi As Termas de Akitsu porque senti que o filme era muito maior do que eu havia achado numa primeira visão. Revi Adeus Dragon Inn porque não sabia que o filme ia ser comprado e queria rever um grande artista num momento que parece ser uma súmula de sua obra anterior. Revi também Vai e Vem, na última sessão da mostra. Perdi filmes importantes como A Mansão do Lago, Naquele Dia e A Bacia de John Wayne, lamento. Deixei de ver obras que me eram de menor interesse, ainda que os verei quando passarem em circuito. Filmes como Tempos do Lobo, Encantadora de Baleias e Adeus Lenin.
Gostei imensamente de Vai e Vem, testamento de um grande, João Cesar Monteiro, iconoclasta lusitano que paradoxalmente presta tributo em todos os seus filmes à velha escritura de Camões e Gil Vicente. Como uma árvore centenária que precisa de uma complexa estrutura para sustentá-la, Monteiro senta à praça para acompanhar a passagem do tempo e entregar-nos a beleza de se envelhecer. A conservação como característica de Portugal. Ode ao diálogo, à rebeldia e à vida, acima de tudo. Os dois planos musicais do ônibus, bem como alguns planos com suas mulheres-a-dias, estão entre os melhores não só da Mostra, mas dos últimos anos. Última luta de um artista único.
Outro português, Manoel de Oliveira, compareceu com um de seus filmes mais impactantes, o incompreendido Um Filme Falado. Muito se escreveu / escreverá sobre esse filme na Contracampo, resta-me apenas uma observação. Concordo que a exposição de que todos se entendiam falando línguas diferentes ficou didática, mas o didatismo se justifica pela menção à nova Babel, capitaneada pelo almirante, onde todos poderiam se expressar em sua própria língua sem desentendimentos. Além disso, o tom professoral tem tudo a ver com a tese de Oliveira sobre a fragilidade da história conforme é passada pelas gerações. O diretor se insere, com a professora, no cerne das interrogações da filha. E impotente, limita-se a fornecer os dados oficiais. Ainda assim, a história deve ser transmitida. Sutil, e por isso mesmo incompreendido. O final tem o poder de chocar sem se enfraquecer depois de um tempo de reflexão. Justifica-se, não como um golpe cruel, mas como um alerta. Capacidade rara no cinema de qualquer tempo.
Encerrando a trinca de obras-primas, Adeus Dragon Inn, de Tsai Ming-Liang. Discordo do Ruy Gardnier. Não é cinema de grife. É idiossincrasia levada ao extremo do minimalismo. Um grande tratado sobre o aproveitamento do espaço, como bem disse, ainda embasbacado, o amigo Bruno Andrade, além de um aprimoramento do uso do tempo. O plano do cinema deserto após a derradeira exibição ilustra esse aprimoramento. Assim como os planos em que os homossexuais, paralisados por preconceitos de outrem e deles mesmos, hesitam antes de qualquer abordagem que, quando acontece, é discreta demais para ser correspondida com desenvoltura. O ator que chora é um momento de cortar o coração e seu diálogo final com seu companheiro de cena no filme dentro do filme é bem inserido. Não é didático como querem alguns, mas perfeitamente justificável pela construção sutil dos personagens. Eles tinham de dizer algo ao se reencontrar. E seria algo parecido com o que disseram no filme. Não é explicativo, é entrega aos personagens.
Um pouco abaixo, mas igualmente dignos das mais sinceras loas, estão:
Lifeline - curta de Victor Erice belo e poético, de longe o melhor da série Ten Minutes Older. Uma investigação do perigo do totalitarismo enquanto uma pequena vida corre risco. Poderia ser uma analogia banal, não fosse a sutileza de Erice em trabalhar com as emoções humanas. Um perigo maior ronda a serenidade do campo, mas o ser humano é grande demais para fatalismos.
A História de Marie e Julien - belo retorno de Rivette ao cinema da alma, como em A Religiosa, ainda seu melhor filme. Emanuelle Béart prova que nem só de sex appeal vive sua carreira. E a cena da ressurreição é realmente belíssima.

Raja - Doillon e sua maestria no tratamento dos delicados dilemas humanos. Filme aparentemente simples, de tom baixo, mas que encanta pelo que consegue de harmonioso com elementos perigosamente ambíguos.
Encontros e Desencontros - Sofia Coppola acerta em cheio novamente com uma comédia romântica como há muito não se via. Bill Murray dublando o backing vocal da música dos Pretenders enquanto a graciosa Scarlet Johansson canta é de uma poesia de fazer chorar.
Elefante - Nem vou falar muito que o filme já tem defensores o suficiente na revista. É o melhor filme de Gus Van Sant. O que melhor casa intenção com realização. Alguns pequenos deslizes, como uma tendência a possibilitar interpretações equivocadas (o beijo no chuveiro, por exemplo) que contrastam com a secura do filme. Belo e imperfeito, enfim.
A Volta do Filho Pródigo / Os Humilhados - ouvi a seguinte afirmação de um frequentador da mostra: "o casal voltou à boa forma depois do chato Operai Contadini". Não vejo como a experiência radical e bela de Straub e Huillet pudesse ser inteiramente bem sucedida sem o estágio necessário que foi o filme anterior. Este novo é sensívelmente superior, mas penso que foi a depuração de um radicalismo, antes do que seu arrefecimento. Obra maior, indiscutivelmente.
Alguns outros filmes são bons o suficiente para merecerem destaque, mas incompletos, ora pela falta de originalidade na mise-en-scene (O Desaparecido, Distante, Gozu - derivativo como os demais, mas com um verniz esquisitão que enganou muita gente), ora pela simples constatação de que algo bem superior já fora feito com mais ou menos os mesmos elementos (Falando de Sexo, Pequenas Feridas, Demonlover).
Há ainda o saboroso "brinde" das retrospectivas, das quais acompanhei de perto a do Yoshida e a do Monteiro. Meus preferidos foram Eros + Massacre, Histórias Escritas com Água e Morro dos Ventos Uivantes, os três do Yoshida, e todos os que vi do João Cesar Monteiro, cineasta singular cuja visão rica e conflitante do mundo nos fará falta. Não pude acompanhar a do Mauritz Stiller, infelizmente. E Ozu está muito acima do bem e do mal.
Filmes fracos ou ignóbeis:
Ser Feliz - lição de auto-ajuda via cinema.
Borboleta Púrpura - cinema acadêmico sem noção de pontuação.
O Retorno - personagens patéticos e verniz artístico.
As Invasões Bárbaras - chantagem emocional.
De Passagem - arremedo de filme de arte europeu. Poucas coisas boas num conjunto constrangedor.
A Vida de David Gale - a maldição das reviravoltas.
Fúria - algo de Verhoeven sem um décimo do talento (e olha que não sou dos entusiastas de Showgirls).
Os medianos, como sempre, não valem a simples menção. Restaram apenas como estatística. Que venha a próxima.