Festival do Rio 2003 – Balanços


(acompanharam pela Contracampo: Bruno Andrade, Cleber Eduardo, Daniel Caetano, Eduardo Valente, Felipe Bragança, Fernando Veríssimo, Gilberto Silva Jr., Luiz Carlos Oliveira Jr. e Ruy Gardnier)

BRUNO ANDRADE
Coisas Secretas
Encontros e Desencontros
Elefante
Signo do Caos
Shara

CLEBER EDUARDO
Foram 68 filmes em três semanas, contando sessões de imprensa. Apesar da grande quantidade de horas diante da tela e das poucas horas para se refletir melhor sobre as imagens vistas, sai-se de uma maratona dessas com preferências e algumas conexões entre obras. Temas em comum são tratados de formas distintas e, nesse choque entre as opções, alguns trabalhos destacam-se nas comparações, inevitáveis em um festival, outros encolhem-se quando postos em contexto. Voltar aos filmes cujo lançamento comercial está agendado será necessário para melhor se apreendê-los sem essa às vezes limitante visão comparativa e associativa. De qualquer forma, em meio ao emaranhado visual dos últimos dias, destaco os que mais me impactaram, por uma razão ou outra, e se evidenciaram em relação aos demais. Cabe informar que não vi Elefante, de Gus Vant Sant, um dos preferidos da Contracampo.
Intervenção Divina, de Elia Suleiman
A representação quase sem diálogos da falta de entendimento entre palestinos, transformados em represas de ódios e depósitos de intolerância em um espaço geográfico no qual não têm direito de deslocamento e onde o absurdo é naturalizado no dia a dia como reflexo de sua legitimação pelo Estado, o de Israel, consegue a proeza de politizar as imagens sem restringir a estética à uma funcionalidade de objetivos exclusivamente políticos. Elia Suleiman tem postura cristalina sobre a questão tratada, colocando-se contra a tirânica e repressora manutenção da geografia oficial israelense, mas expõe sua visão com imagens brilhantes.
Carrego Comigo:
a) A ninja palestina colocando o soldado israelense dentro da bandeira da Palestina e usando um escudo no formato do mapa de Israel para derrubar um helicóptero de onde a alvejam. Duas imagens com poder e contundência de comunicação superior a de um manifesto infestado de palavras sem a mesma capacidade.;
b) O balão estampado com o rosto de Arafat voando sobre Jerusalém. Um símbolo de resistência ao qual os policiais israelenses não conseguem impedir de se deslocar;
c) O protagonista palestino interpretado pelo próprio Elia Suleiman parado em seu carro diante de um semáforo. Ao lado, um outro carro, com a bandeira de Israel pendurada, um judeu de kipá dentro. O protagonista coloca em seu toca-fitas uma música árabe pop. Provoca o vizinho de trânsito exercendo seu direito, de ir/(ou)vir, enquanto respeita a mesma lei de trânsito, a de "pare".
Shara, de Naomi Kawase
Os planos-sequências empregados recorrentemente resgatam, parodoxalmente em certo sentido, o conceito de realismo ontológico desenvolvido por André Bazin. A ausência de cortes nestes momentos não servem para se buscar sentido na realidade, como se nela houvesse uma lógica captável pela câmera, mas justamente para o prolongamento dos instantes e o prosseguimento do fluxo de vida contrapor-se à falta de sentido de alguns aburdos do real. Quinto longa-metragem de Naomi Kawase, é ambientado em sua cidade natal, Nara, ex-capital do Japão, que em nada lembra a modernidade de Tóquio
Carrego Comigo:
a) O início do trabalho de parto da mãe do protagonista, cercada e vida no pomar de sua casa, ao centro de um ritual comunitário de celebração da reciclagem da espécie;
b) O diálogo entre pai e filho quando o primeiro fala sobre a necessidade de se esquecer determinações situações para se dar continuidade à caminhada na vida.
Prazeres Desconhecidos, de Jia Zhang-ke
A falta de perspectiva de dois jovens em relação ao presente e ao futuro, em um apequena cidade contemporânea da China, é representada por meio da vida rarefeita, portanto não entedianta, já que naturalizada, e pelas patéticas ações de afirmação de uma postura transgressora. Os planos de longa duração e ação mínima, compondo um "drama estático", para usar a definição de Maeterlinck, nada tem de maneirismo estilístico de filme artístico, mas sim de pertienente artifício tradutor da condição dos personagens, de seu ambiente e de como elas (dês)integram no ambiente. Jia Zhang-ke, como havia mostrado em Plataforma, exibido na Mostra Internacional de São Paulo de 2001, cultiva o rigor.
Carrego Comigo:
a) As seqüências nas quais um dos protagonistas assiste desenho animado com uma moça;
b) A seqüência final em que, em fuga, na estrada, o protagonista abandona a moto.
Bom Dia, Noite, de Marco Belocchio
A encenação ficcionalizada do seqüestro terminado em morte de Aldo Moro, presidente da Democracia Cristã na Itália, em 1978, não apenas desligitima o fascista fanatismo ideológico dos seqüestradores, com sua visão política cega, como os responsabiliza pela transforma da corrupção institucional em vítima/mártir A postura crítica não surtiria efeito artístico, para além dela mesma, se os artícios empregados na narrativa, como a utilização de música sacra, do som de uma oração coletiva e de imagens oníticas-históricas, não convertesse o ponto de vista em estética.
Carrego Comigo:
a) Os momentos de utilização das músicas sacras e do som de oração;
b) A passagem na qual, diante do noticiário televisivo sobre o seqüestro, os terroristas entoam um mantra, no qual falam reducionismos ideológicos, como se fossem catatônicos;
c) Os planos finais com imagens reais do velório de Aldo Moro, com a presença do Papa Paulo VI (co-responsável pelo resultado final do caso), seguidas da cena na qual o seqüestrado foge do cativeiro. Morte como liberdade para sua imagem.
Encontros e Desencontros, de Sophia Coppola
A aproximação entre um homem de meia idade e uma jovem recém formada em filosofia, perdidos na insônia gerada pelos efeitos do fuso horário durante a estada deles em Tóquio, é o ponto de partida para um filme no qual cada imagem é relevante, mas nenhuma cena constrói-se com o objetivo de ter relevância para a narrativa. Sofia a Coppola, mostrando explícito salto desde Virgens Suicidas, no tocante ao encadamento entre forma e situações filmadas, fez um filme composto só de atmosferas e de momentos em geral cortados.
Carrego Comigo:
a) Todos as cenas nas quais Scarlett Johansson e Bill Murray aparecem juntos;
b) O momento em que os dois, finalmente, dormem na mesma cama;
c) As passagens de passeio de câmera por Tóquio. Poucas vezes o cinema captou com tanto clima poético as imagens da cidade.
LEMBRANÇAS INTERMITENTES
Alguns filmes não entraram nessa lista de cinco preferidos, mas prosseguirão por um bom tempo, pelas marcas deixadas dias após suas sessões. Destaco cinco deles:
Sansa, de Siegfried: pela celebração da liberdade do deslocamento, sem fechar olhos para a angústia do não enraízamento;
Um Pouco do Céu, de Bénédcite Liénard: pela visão dura sobre os sistemas de disciplina, transposta para a tela por estilo rigoroso;
Pinceladas de Fogo, de Im Kwon Taek: pela reflexão sobre a criação e a autoralidade na arte sem abrir mão de fazer arte com o tema.

DANIEL CAETANO
melhores filmes recentes (vistos no festival ou antes)
- o signo do caos
- o prisioneiro da grade de ferro
- coisas secretas
- shara
- dogville
(tendo deixado para ver mais tarde alguns filmes bem-falados como "intervenção divina", "encontros e desencontros", "elefante" e "bom dia, noite")
melhores filmes vistos ou revistos nas retrospectivas
- Falstaff - Badaladas à Meia-noite
- F for Fake
- Filmando Otelo
- All That Jazz
- Romance Popular
momentos mais marcantes dos filmes do festival:
- o abraço final de mãe e filho em "a captura dos Friedman", uma das imagens mais bonitas e emocionantes dos últimos anos
- as imagens iniciais de "coisas secretas"
- o plano final de "dogma do amor", dantesco e inesquecível
- a dança debaixo de chuva em "shara"
- e o olhar de Falstaff para o novo rei Henrique V

EDUARDO VALENTE
Num Festival como o do Rio, com tantas e tão variadas opções e recortes, é difícil tentar refletir tanto sobre "o que foi o Festival", e resta mais mesmo dizer "qual foi o meu Festival". Poderia-se, afinal, passar muito mais tempo se falando sobre a obra de Orson Welles (e seu exílio no Centro Cultural da Justiça Federal), sobre grandesíssimos filmes como All That Jazz e New York, New York (ou filmes fracos como Pink Floyd – The Wall, na mesma mostra de musicais) ou ainda sobre os não assistidos Monicelli e Loucos por Cinema, mostras em si mesmas muito interessantes. Mas, aqui faremos apenas um balanço a partir das mostras de filmes mais recentes, tentando menos olhar somente para os meus filmes favoritos, e mais sobre o que eles permitem entrever do cinema mundial hoje. Como sou um fã das comparações, paralelas e transversais, prefiro o formato do diálogo entre filmes ao tentar este painel.
Destaques do Festival
1) Shara, de Naomi Kawase e Coisas Secretas, de Jean-Claude Brissseau
Duas propostas de cinema em tudo distintas. Em tudo a não ser na pulsão vital que emana da tela, e que é o principal deste tal cinema. Dois ensaios sobre os grandes temas da vida e da morte, em registros absolutamente distintos (o naturalismo quase documental de Kawase, a opção pelo operístico, pelo simbólico e pelo discursivo em Brisseau). Para provar que a vida não é coisa simples, e por isso mesmo o cinema não pode ser um só.
2) Elefante, de Gus Van Sant e Intervenção Divina, de Elia Suleiman
Como lidar com situações onde a vida beira o insuportável? Van Sant vai em busca dos acontecimentos de Columbine com verdadeiro e emocionante interesse, sem procurar respostas e culpados, e sim um mergulho numa realidade pela beleza da ficção. Suleiman fabula em torno da sua própria realidade de povo sem pátria, sem terra, só com uma causa obsessiva, a da libertação. Filmes vitais, essenciais, hoje e sempre. Mas, principalmente, HOJE.
3) Ana e os Outros, de Celina Murga, Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola e Sansa, de Sigfried
A beleza do transitório, a percepção da importância do movimento constante, dos encontros fugazes (ou nem tanto) e das emoções maiores. Filmes de gente, com gente, sobre gente. A poesia nas menores coisas da vida.
4) O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento e A Captura dos Friedman, de Andrew Jarecki
Dois radicais ensaios sobre a impossibilidade de captar uma Verdade pré-existente através das câmeras documentais. O filme de Sacramento é uma obra-prima, o de Jarecki apenas um belo exemplar de respeito ao seu material, mas as relações entre os filmes são riquíssimas.
5) The Brown Bunny, de Vincent Gallo e Falando de Sexo, de John McNaughton
Duas retomadas de tradições aparentemente perdidas do cinema americano, absolutamente opostas. Em Gallo, a volta a um cinema radicalmente independente e quase caseiro (os créditos inteiros finais duravam menos do que a maioria das listas de eletricistas no cinema atual) onde tão importante quanto a história é o trajeto até ela. Em McNaughton, a falta de vergonha da comédia rasgada, da piada absurda, do mau gosto quase sempre genial. Opostos absolutos em tudo, menos na disposição (bem sucedida, como pudemos testemunhar) de afrontar as "bem educadas" platéias.
6) Dogville, de Lars Von Trier
Tematicamente, o filme até se vincula a alguns outros, mas o mais interessante deste objeto de ódio e amor incondicionais é justamente sua capacidade de ser tantas coisas ao mesmo tempo. Von Trier é o apogeu do cineasta contemporâneo, tão personagem quanto criador de sua própria obra. Esquizofrênico, questionável, talentoso. Mas, sempre impossível de ignorar.
Outros filmes de destaque: A Borboleta Púrpura, O Agente da Estação, Devdas, Cruzeiro do Sul, demonlover.
Deploráveis do Festival
1) Tulse Luper, de Peter Greenaway e Em Nome de Deus, de Peter Mullan
De um lado, o exibicionismo auto-centrado e estéril de Greenaway. Para quem declarou há alguns anos que o cinema estava morto, produz obras de imensa coerência, inertes e desimportantes. Do outro lado, as "boas intenções", sempre elas, escondendo uma dramaturgia tacanha, devedora não reconhecida do gênero dos "filmes de cadeia", de generalizações e compreensão risível da realidade, sob a assinatura de "denúncia". Os grandes festivais continuam comprando (Cannes num caso, Veneza no outro) os gatos por lebre que os "grandes nomes" vendem.
2) Medo X, de Nicolas Windig Refn e Dogma do Amor, de Thomas Vintenberg
O cinema cria seus próprios demônios: meninos muito bem educados na "arte cinematográfica", usando-a como intermediária distante com a vida, falando sobre e para si mesmos. David Lynch se revela matriz ainda maior para maus leitores de sua obra do que Quentin Tarantino jamais foi. Filmes assépticos para almas idem, endereçados especialmente para os que odeiam estar vivos.
3) Aos Treze, de Catherine Hardwicke e Laurel Canyon, de Lisa Cholodenko
Costumava ser que o cinema independente americano aparecia como depositário das idéias mais vanguardistas e anti-sistema, do risco em relação às certezas dos grandes estúdios. Pelo menos era o que nos vendiam. Dois filmes mais conservadores do que o rei, se disfarçando de moderninhos por detrás de linguagem "ixperta" e personagens "malandrinhos" para propagar o moralismo mais tacanho.
4) As Alegres Comadres, de Leila Hipólito e Viva Sapato!, de Luiz Carlos Lacerda
O filme brasileiro mais daninho era, disparado, Viva Voz. Mas, contra este há pelo menos o que se opor, há que se revoltar e questionar, o que o torna em alguma instância vivo e urgente. Já estes dois são cinema como arte morta, empalhada, repetição de clichês sobre clichês, sem qualquer motivo de existência para seus autores, o espectador, o cinema mundial (ou brasileiro). Filmes para constar, nada pior.
5) Viajantes e Mágicos, de Khyentse Norbu e O Aluguel, de Krsitijonas Vildiziunas
O exotismo e o fascínio pelas terras estranhas justificando péssimo cinema. Ambos referendados por Veneza (que já não é sinal de seriedade há tempos), um no registro mais tabititate de um cinema de "propaganda e boas intenções", o outro no mais tosco "simbolismo". Péssimos sob todos os aspectos, injustificáveis em qualquer seleção.
6) Ricordati di Me, de Gabrielle Muccino e Viva Voz, de Paulo Morelli
Sob o disfarce do "cinema de contato com o público", do histrionismo exagerado e de uma "contemporaneidade", visões de mundo tipificantes, manipulações baratas, e, em última instância, muito cinema a ser ignorado.
Tão ruins quanto: Falcões, Promessa de Vida, Nada Mais, A Súplica, Verão Gelado, Chouchou em Apuros.

FELIPE BRAGANÇA
Cinco filmes, uma surpresa, uma questão:
Recortando, certamente, sigamos nosso trabalho. Dos 43 novos filmes assistidos, ao longo de 14 dias, listo aqui uns poucos, seja por seu impacto fulminante no momento da projeção, seja por sua representatividade dentro de um certo conjunto de filmes e as possibilidades de se pensar o cinema à partir deles.
Sobre todos os outros...
1 - Shara, de Naomi Kawase (Japão, 2002). Uma única seqüência como a da dança sob a chuva vale, sozinha, por muitos filmes. Elegia intensa ao tempo e à vida, Shara é cinema que merece dedicação, meditação e inspiração. Dos travellings iniciais ao plano final (magnífico), Naomi Kawase faz um cinema-espírito, gesto de alegria altiva diante da dor, do medo e do peso da memória. A possibilidade do novo e do mesmo, do mesmo no novo e vice-versa. Filme a ser revisto, revisitado, planos que impregnam não apenas os olhos e a tela, mas a pele...Como música. Cinema-música, talvez. De eriçar o pêlo dos braços.
Duas obras-primas:
2 – O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento (Brasil, 2002). A começar pelo plano antológico da dês-demolição (gesto de memória), o filme é, desde já, o mais importante documentário brasileiro desde Santo Forte (1999) e certamente o melhor filme brasileiro deste ano. Ficção compartilhada, o filme constrói sua ética não como um derivado moral, mas como jogo, tabuleiro de ações e práticas em que os detentos do Carandiru, público e equipe se encontram, se atravessam, se olham. Obra-prima da multiplicidade discursiva e da aproximação tensionada com o outro. Documentário, digam assim, cujo discurso não tem medo do abismo da diferença nem da beleza efêmera do encontro: a câmera digital, como instrumento de expressão, o diretor como um regente interventor do improviso.
3 – Pinceladas de Fogo, de Im Kwon-taek (Coréia, 2002). A trajetória de um artista como a trajetória de suas inspirações, atravessadas uma pelas outras em fluxos narrativos de memória e fragmentados eclipsados...Os caminhos do artista, ao longo das décadas, se esgueiram através da história, dos jogos de poder, das mudanças e das repetições. O ato da arte não como produto, mas como expressão física, parte do corpo de quem cria, excreção como a saliva, como o suor, como o sêmen. Um homem em estado caótico e incandescente de invenção: seu grito, sobre os telhados da cidade, como um ânimo que não tem outra opção senão se desesperar. É justamente nesse desespero, nessa ruptura incontornável com a espera e com a permanência, que Kwon-taek narra seu mito. Com um instinto épico-narrativo raro no cinema contemporâneo.
Dois destaques:
4 – Prazeres Desconhecidos, de Jia Zhang-ke (China, 2002). O que mais impressiona nesse terceiro filme de Zhang-ke, é a forma como costura, tensiona e harmoniza a narrativa particular de seus personagens com as mudanças e acontecimentos de seu território e de seu país, sem com isso cair na solução precária de querer tecer um "retrato" macro-geracional. Dois personagens atravessados por seu tempo e por seus desafios, narrados de forma rara e inspiradora, e encenados em fotografia digital digna de antologia.
5 – Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola (EUA, 2003). A energia que atravessa a tela desde as primeiras cenas em que Bill Murray e Scarlett Johansson contracenam, é fruto de uma carpintaria apurada de diálogos, encenação e trama, que fazem de Sofia Coppola, definitivamente, uma cineasta a ser observada com interesse e prazer. Temas contemporâneos urgentes atravessam a vida íntima das personagens, construindo um cinema elegante e gentilmente crítico. Capaz de conquistar pela simplicidade com que se encena sobre afecções complexas, e pela discrição narrativa de quem sabe construir seu discurso através de gestos mínimos, se aproveitando dos clichês para surpreender.
Uma boa surpresa:
Ana e os outros, de Celina Murga (Argentina, 2002). Rohmer e Kiarostami. Um pouco de cada um desses mestres dá fruto à rara atmosfera desse primeiro filme de Celina Murga, minha surpresa positiva entre os filmes Latinos em exibição. A forma habilidosa com que leva uma trama de não-eventos adiante, conseguindo sempre articular novas idéias e observações através de diálogos indiretos e encenação segura, deixam claros o conhecimento do cinema e a firmeza discursiva dessa jovem cineasta. Vale anotar o nome e abrir os olhos.
Um filme-questão:
Elefante, de Gus Van Sant (EUA, 2003). Um dos filmes mais aguardados do Festival, Elefante se destaca, certamente, pelo fino artesanato com que leva adiante uma proposta de encenação objetiva, derivado do ideal cinema-diretista e "não-interventor" do início da década de 60 nos EUA. Sua máscara de intimidade com o espaço, seguindo o ideal de uma captação da atmosfera de uma high-school norte-americana, está, certamente, aquém da observação do teatro-institucional que Frederick Wiseman (representante seminal do cinema-direto e seu principal crítico interno) fez há mais de 30 anos em seu High School (1969). Gus Van Sant, ao contrário desse olhar recortado sobre a dinâmica institucional, opta por uma narrativa fragmentada em "personagens representativos", preocupado em esboçar um retrato geracional através de pequenas mazelas (listadas como tipos e clichês encenados). Mesmo que não pratique a síntese, Elefante acredita na localização dos sintomas (e não é a inserção de um Beethoven que vai quebrar essa sua estrutura dirigista). Um certo fetiche pela encenação da imanência parece tomar conta do filme, num exercício contra-moralista que se quer como antídoto aos discursos fatalistas de um tempo de histerias (ver Michael Morre ou o recente Aos Treze, como exemplos...), mas não foge de um papel de contra-fluxo discursivo ("vejam, suas expectativas estavam erradas", parece dizer todo o tempo). Comparado ao jogo cênico de um cinema da intimidade cênica como Dez, de Kiarostami, sua defasagem quanto ao compartilhar discursivo-íntimo sobre um recorte temático, é mais que evidente. Cinema "coruja de Minerva" que quer apenas dizer um fraco e humilde: "estou cego". Mas só se pensa enquanto cego, aquele que pré-supõe um possível enxergar. Falar por dentro da cegueira ("e não falar da morte" – como escreve Spinoza) e não sobre a cegueira: esse o movimento que Gus Van Sant e seu Elefante não sabem, não podem fazer. Faltam riscos e sobram por demais certezas discursivas para um filme que se queria como um gesto nobre da dúvida. Abismar-se, isso é o que o filme não faz; apenas discorre, seguro e desanimado, sobre o abismo. (Para breve, prometo, uma análise narrativa do filme).

FERNANDO VERÍSSIMO
Começando por um suicídio e terminando em um parto -- cinco grandes filmes de um festival de
extremos e descobertas.
EROS + MASSACRE
Ken Park & Elefante
Duas narrativas, um mesmo princípio: esboço de uma dramaturgia do encontro, a partir da observação de corpos à deriva. Compreender um universo estranho passa obrigatoriamente pela necessidade de (se) colocar em perspectiva, e de se reconhecer no ato do registro -- princípio e fim que se confundem em narrativas circulares, preocupadas em construir de forma ativa uma memória do futuro.
LOST IN TRANSLATION
Encontros e Desencontros & Falando de Sexo
Ainda o corpo, ou um corpo: o de Bill Murray, em todos os estados: princípio e fim do filme de Sofia Coppola. E mais a confirmação (se é que alguém precisava dela) de que John McNaughton é o grande representante de toda uma
rica e inesgotável tradição norte-americana de cinema físico.
ENCONTROS E DESENCONTROS
Shara
A mais intensa celebração da vida em um filme de fantasmas. Encontro de festivais, enquanto lá fora a chuva cai.

GILBERTO SILVA JR.
Não faço comentários sobre os filmes, pois, como os títulos são mais ou menos os mesmos, possivelmente eles cairiam na redundância.
Os cinco melhores:
1) Prazeres Desconhecidos
2) Intervenção Divina
3) Shara
4) Bom Dia, Noite
5) Pinceladas de Fogo
Outros muito bons:
- Devdas
- Conto da Desobediência
- Falando de Sexo
- Coisas Secretas
- Roger, o Conquistador
Revendo e babando:
- All That Jazz
- Badaladas à Meia-Noite
Não vi:
- Elefante, Encontros e Desencontros, Dogville, documentários e brasileiros
O mais bizarro:
- Voando Com Uma Asa Só
Ruins prá burro:
- Em Nome de Deus
- Ikka
- Promessa de Vida
- Medo X
- Olhar Apaixonado

LUIZ CARLOS OLIVEIRA JR.
1) Elefante, de Gus Van Sant: Filme-lição do festival. Perturbador e belo. Relação câmera-objeto revestida de significado crucial. A já conhecida tipologia das high-schools (ou dos filmes de high-school) somou-se a situações observadas com ar documental e o resultado foi uma linguagem tão híbrida quanto fenomenal, com os sentidos falando alto e com a desordenação dos fatos impedindo relações causais simplistas. Van Sant parece ter encontrado a única forma possível: um filme irretocável.
2) Encontros e Desencontros, de Sofia Coppola: A cena do karaokê, mesmo que isoladamente, já justificaria atenção especial a esse filme. Mas ela não está sozinha: há o abraço e o sorriso no final, além das cenas nas ruas de Tóquio e das magistrais atuações. Um encontro e a nostalgia precoce, a sensação de perda por antecipação, porque existe a consciência de que aquilo só tem lugar ali. Mas há beleza e consolo na efemeridade. Filme maduro de Sofia Coppola, menos estilizado e mais apaixonado pela "massa do mundo". Singelo e emocionante. Muito emocionante.
3) Shara, de Naomi Kawase: Responsável por algumas das imagens mais marcantes do festival. Claro e escuro, nascimento e morte, trauma e superação. Definitivamente um filme sobre a vida.
4) Prazeres Desconhecidos, de Jia Zhang-ke: Uma geração dividida entre convulsão e apatia. Poses, repetições, deambulações. Excepcional aproveitamento do espaço (o espaço como personagem, pode-se dizer). Cinema político que cita Tarantino.
5)Coisas Secretas, de Jean-Claude Brisseau: Para ser aplaudido desde o primeiro plano. Oscilando entre a grandiloqüência e a trivialidade, o filme mexe bastante com a pulsação do espectador. Erotismo como há muito não se via. Em meio à montoeira de estetizações frias, não raro estéreis, apresentadas pelo cinema contemporâneo (vide Greenaway, vide Vinterberg), é gratificante ver um filme cujas imagens transpiram e fazem transpirar.

RUY GARDNIER
1-5 Elefante de Gus Van Sant. Único filme bressoniano feito desde o último filme de Bresson, L’Argent. Não há medo, não há problema, não há política nem sociedade capazes de expurgar o mal. O mal não é assinalável a causalidades específicas (ausência paterna, influência de videogames, humilhação dos colegas) e, mais profundamente, ele só é mal porque alguém assim o designa. Elefante vislumbra um mundo inocente, em que todos são anjos. Alguns caídos, outros não. Em todo caso, mesmo diante da desgraça mais extrema, as nuvens brancas passam, misturam-se com a fumaça do fogo, e o mundo continua. Um lance de dados jamais abolirá o acaso, assim como o mundo é ainda maior do que todo tipo de pesquisa que possa haver sobre ele. Para o pior e para o melhor. Afirmar a força desse mundo, mesmo num dos momentos de maior aflição (um massacre randômico, sem objetivos dignos desse nome), não é coisa a que o cinema se dedique diariamente. E o mais inacreditável: cria, através de mecanismos simples e inéditos até hoje no cinema, um procedimento de imagens e sons que pensam, e nos instalam numa ambiência audiovisual que mede a cada momento as relações que estabelece com seus personagens. "O travelling é uma questão de moral" foi uma frase feita sobre o cinema de Sam Fuller, recuperada para comentar Hiroshima Mon Amour, mas poderia tranqüilamente ter sido inspirada em Elefante. Triunfo de uma mise-en-scène a serviço de pensar o mundo. Pode-se pedir algo mais a um filme?
6) Shara de Naomi Kawase. Um travelling para a frente (figura de estilo do Festival por excelência) filma dois meninos correndo e um pequeno bairro residencial adorável. Eles se perseguem até que o terrível se instala: o desaparecimento de um deles. Em Shara, o cinema é ao mesmo tempo uma maneira de se relacionar com fantasmas e de expurgá-los, através de um festival que celebra a vida, da chuva regeneradora ou do parto que fecha definitivamente o ciclo da vida. Cinema como terapia de vida (crítica e clínica, já dizia Deleuze), reativando intelectualmente nossos chakhras que estão com a energia baixa.
7) O Signo do Caos de Rogério Sganzerla. Poderia o único gênio vivo do cinema brasileiro acrescentar a sua carreira algo definitivo? Qualquer dúvida se desfaz na hora em que O Signo do Caos termina e o espectador fica sem pai nem mãe tentando entender o que aconteceu quando a granada estourou. Relação de amor e ódio absoluta com o cinema e com o país, mergulho profundo e sem respirador numa seara que ninguém se atreve a explorar – e, em todo caso, sem a mesma visceralidade. Cinema kamikaze, que destrói o que existe para fazer florescer no futuro a vida onde ela merece.
8) Prazeres Desconhecidos de Jia Zhang-ke. Revisto em 2003, só aumenta em vitalidade e vontade de perscrutar o mundo através dos olhares de dois jovens inquietos que contrastam com uma China ainda acordando do sonho revolucionário e fornecendo a seus habitantes menos um mundo promissor do que a promessa de muito tempo ocioso para ser ocupado tentando sobreviver.
9) O Prisioneiro da Grade de Ferro de Paulo Sacramento. Seria a imbricação entre os técnicos (diretor, fotógrafo) e os presos a principal fonte de emoção desse filme poderoso ética e esteticamente? Diríamos que, mais do que fornecer uma opção ética e original à (est)ética documental de Coutinho (terreno em que nossos documentaristas "éticos" chafurdam, cf. À Margem da Imagem), o filme de Paulo Sacramento estabelece um dispositivo em que funde o documentário de contestação com o autodocumentário, e assim consegue criar um amálgama entre sujeito e objeto inéditos no cinema documentário brasileiro (quiçá mundial). Não fosse por isso, a cena noturna dentro da cela já bastaria para fazer de O Prisioneiro da Grade de Ferro um item de antologia.
10) Pinceladas de Fogo de Im Kwon-taek. Filme-respiração, Pinceladas de Fogo é imprevisível, incapturável e bonito até não mais poder. Uma revoada de pássaros que é uma pintura, uma pintura que é uma revoada de pássaros, e tudo isso é muito filme. O artista é menos o suicidado da sociedade (neste caso, ao menos) do que um corpo que se movimenta rápido demais para ser compreendido por aqueles que vivem com ele. Uma tal rapidez, naturalmente, é subversiva (alheia aos códigos do estado) e anti-social (alheia aos códigos morais). Mas sem o artista não há beleza. Pinceladas de Fogo estabelece o paradoxo mais do que tenta compreendê-lo.
11) Encontros e Desencontros de Sofia Coppola. A vida é uma série de sucessões de acontecimentos que se colam muito pouco, não fazem muito sentido, mas a qual nos apegamos um pouco sem saber por quê. Whatever. Nesse whatever reside talvez a maior força do segundo filme de Sofia Coppola, um "e daí" sofrido (o amor conjugal não trará a felicidade a Scarlett Johansson nem a Bill Murray, mas tampouco a união dos dois) mas o reconhecimento de que não tem como ser muito diferente. Se a maneira como entendemos pessoalmente o mundo é a tradução de uma espécie de língua originária que a natureza fala, definitivamente o sentido se perdeu na tradução. Tanto melhor: podemos achar o sentido nós mesmos.
Ainda: Intervenção Divina de Elia Suleiman, Filme de Amor de Julio Bressane, The Brown Bunny de Vincent Gallo, demonlover de Olivier Assayas, (e, numa menor medida) Bom Dia, Noite, de Marco Bellocchio, Coisas Secretas de Jean-Claude Brisseau, Meu Nome É Ciúme de ???, Ana e os Outros de Celina Murga)
top 5 sono intencional
01) Confidence de James Foley (desistência após seqüência inicial)
02) A Vingança de Andrzej Wajda (após segunda seqüência)
03) As Maletas de Tulse Luper, Episódio 1 de Peter Greenaway (dá pra falar de seqüência? indução ao sono depois de perceber o jogo e não querer entrar. só não é top 1 porque eu acordei faltando uns 30min pra acabar)
04) Cruzeiro do Sul de Pablo Reyero (lá depois que a cocaína é roubada e um travesti com vastos cabelos aparece; acordei faltando uns 20min pra acabar e percebi que fiz bem em dormir)
05) Bethlehem Diary de Antonia Caccia (não foi um bom sono porque eu estava preocupado com dormir demais e perder o – ótimo – curta do Elia Suleiman que fechava a sessão)
momentos fortes:
- Scarlett Johansson e Bill Murray conversando sobre casamento, deitados na cama de hotel em Encontros e Desencontros; a cena do caraokê, Murray cantando (?) "More Than This", Scarlett Johansson cantando "Brass In The Pocket";
- Elefante inteiro;
- O parto, a corrida do começo, a cena do festival, a chuva em Shara;
- Sonic Youth em demonlover, Charles Mingus em Signo do Caos, Angela Maria em Filme de Amor;
- O balão do Arafat circulando por Jerusakém, a cena Matrix final em Intervenção Divina;
- A visita à casa da mãe de Daisy em Brown Bunny;
- Prazeres Desconhecidos quase todo, "Ren Xiao Yao", a canção...
- a parte "Polanski" de Coisas Secretas, o seio de Sandrine Seyvecou aparecendo na estação de metrô;
toda a seqüência noturna de Prisioneiro da Grade de Ferro;
- o final de Romance Popular de Mario Monicelli;
- A Dama de Xangai, o começo da sessão abortada de Mr. Arkadin (crime maior do Festival do Rio), A Fonte da Juventude.
Ainda a se notar: a ausência de surpresas na parte dedicada a elas, "Expectativa", assim como um enfraquecimento do espírito aventureiro/cinéfilo no Festival. Trouxeram o certo, e erraram em quase todas as apostas. Não gostaria de fazer uma lista dos piores, mas se houvesse uma seria encabeçada pelos dinamarqueuropeses Dogville e Dogma do Amor.