Gente
da Sicilia,
A ópera do cinema intransitivo contra as almas desgostosas Gente da Sicília é por vários motivos o filme político do ano. Não só pelo passado militante dos diretores (uma militância da imagem), não só pela temática do filme, mas sobretudo porque o mais novo filme de Straub e Huillet fez uma celeuma nos jornais cariocas: numa mítica sessão-mobral de imprensa, críticos despreparados (dosa quais um, além de despreparado, é uma besta) "decidiram" que Gente da Sicília não merecia ser visto pelas pessoas. Resultado: salas às moscas e um grande filme que poderia causar grandes discussões caso houvesse vida inteligente na imprensa carioca foi desperdiçado. Mas isso é para ser tratado em outro lugar. Falemos do filme. Uma imagem aparece, numa forte fotografia claro-escuro. É um homem que, de costas, volta à Sicília. Ele conversa com um homem que carrega um enorme cesto de laranjas. Esse homem se espanta porque o homem de costas quer comer à manhã. Ora, nenhum siciliano come pela manhã: deve tratar-se de um forasteiro. É desses diálogos mais ou menos gratuitos que se constitui Gente da Sicília, adaptação do belíssimo romance de Elio Vittorini Conversas na Sicília. Nesses diálogos, nada de decisivo se garante. Nenhuma fala é fundamental. Não é a frase, nem a palavra o que dá sentido a tudo que é dito na tela; é a própria voz, o próprio ato da conversação que é fundamental no filme de Straub/Huillet. É do próprio gesto, das pausas e das interrupções que se constitui toda a complexidade de Gente da Sicília. Silvestro é um homem voltando à Sicília, voltando a sua aldeia natal para conversar com sua mãe, com os homens no trem, com o afiador de facas. É pela fala com as pessoas e pelo olhar que ele pode redescobrir a Sicília e redescobrir-se siciliano. Essas falas têm pouco de significativo: as conversas giram em torno de comida, de localidades, da ombridade do pai, de cheiro, de socialismo. Nenhuma dessas conversas esgota o asunto. Elas não são conversas sobre algum assunto. Elas são simplesmente conversas, intransitivamente. Em seu percurso, Silvestro encontra-se com um vendedor de laranjas, com um homem no trem (que no livro de Vittorini é o "Grão-Lombardo"), com sua mãe e, finalmente, com um afiador de facas. Entre essas conversas, ele pode olhar. E o olho desse homem é comovente. Com uma fotografia esplêndida de William Lubtchansky, o trabalho de imagem do casal Straub dedica-se, como sempre, à luta contra a imagem, à depuração absoluta do plano cinematográfico, à desfetichização da técnica cinematográfica. Num dado momento, Silvestro contempla a paisagem pela janela do trem. O acompanhamento sonoro dessa imagem é radical: silêncio absoluto, deixando entreouvir apenas o ruído da banda sonora (um dos mais poéticos artifícios brechtianos já realixados). Em outro momento, bem diverso, é o corpo dos homens e das mulheres que já não faz a menor importância: filma-se uma mesa com um prato e, dentro do prato, um melão. Aparece uma natureza morta, o cinema é tornado pintura sem precisar da afetação de um Greenaway. O trabalho da imagem em Straub e Huillet sempre traz as saídas mais simples, mais "fáceis de fazer" para os problemas mais complicados. Quando Silvestro chega à casa de sua mãe, segue-se um plano em panorâmica que vai à esquerda até uma árvore e depois volta até a direita para um povoado ao longe. O outro plano é exatamente igual no que diz respeito aos movimentos de câmara e na paisagem. Mas muda tudo: a luz se faz mais clara, a luminosidade quase mata o plano, e quando a câmara chega até a árvore, ela não mais aparece obscura: uma maravihosa luz bate nela. Passou-se da manhãzinha ao dia. Mais tarde, essa mesma panorâmica voltará à tela, com menos luminosidade. Será o fim do dia. Há de se destacar o trabalho que Straub e Huillet realizam na imagem cinematográfica. Num filme realizado apenas de conversas, jamais dois personagens partilham o mesmo plano quando falam. A gramática cinematográfica profundamente inovadora de Gente da Sicília coloca os personagens sempre diante um do outro, mas como nunca podemos ver o interlocutor dos diálogos, os personagens aparecem sempre falando para o vazio, quando não estão declaradamente contra a tela, como no começo do filme. A primeira imagem do filme mostra um homem, de costas, dizendo "Não há queijo como o nosso". A imagem seguinte mostra um homem e uma mulher, sentados, olhando para o longe. Não se deve encarar isso como experimentalismo puro e simples. Ao contrário, é uma estratégia rigorosa de reconstrução do espaço cinematográfico retirando-lhe toda possível relação de identificação personagem/espectador. Para Straub e Huillet, a sensibilidade cinematográfica deve renascer em outras bases: não sobre a relação do espectador com um determinado personagem em detrimento de outro (a relação entre bem e mal em quase todo o cinema), mas sobre o poder do 'entre' um e outro, o poder que existe exatamente nas relações que se desenvolvem a partir de uma situação dada. Sobre as conversas. Abaixo a mistificação. O cinema de Straub não é complexo nem intelectualizado. Ele é inteligente, ponto. E ele pede uma relação inteligente entre espectador e filme. Tudo o que Gente da Sicília (e a obra de Straub como um todo) recusa é a passividade do espetáculo cinematográfico, a afasia do espectador. Nesse sentido, Gente da Sicília é tudo menos entretenimento. O filme de Straub e Huillet faz tudo para não entreter o espectador: faz tudo para movimentá-lo, movimentar sua inteligência. (E aí, não é à toa que a crítica como um todo não tenha gostado, porque quem não tem inteligência fica entediado). Essa é a política radical dos filmes de Straub: o desejo profundo de não se reconciliar com o espectador, de não se reconciliar com a imagem do clichê que os filmes comuns nos oferecem diariamente. As conversas de Gente da Sicília são todas baseadas num simples mecanismo cinematográfico, o campo/contracampo1. Mas a reconstrução desse mecanismo, maior aposta estética do filme, opera magnificamente. Jamais parece que os personagens estão falando um com o outro, jamais parece inclusive que eles estão falando para o outro entender: eles estão simplesmente falando, eles estão fazendo simplesmente uma "conversa". Essa reconstrução, essa depuração da imagem cinematográfica permite a Straub e Huillet uma liberdade que há muitos anos não se vê no cinema. Mesmo contando uma história, no sentido lato da expressão, eles podem fazer absolutamente tudo o que querem com a câmara. São grandes cineastas. Eles podem fazer uma natureza morta, eles podem tirar o som de um pedaço do filme (artifício sempre usado por Abbas Kiarostami também), mas o que eles fazem é sempre muito mais. Cada imagem saída das lentes de Lubtchansky / Straub / Huillet vale por si mesma como beleza, e vale por si mesma pelo que mostra. Estamos tratando de um cinema que não julga, de um cinema sem pressupostos (e sempre se julga baseado em pressupostos), que tenta se estabelecer como cinema pela sua própria feitura, e não pelos pressupostos do cinema institucional (roteiro, atos, seqüências, plot points, herói, protagonista). É um cinema livre, experimentador por natureza. Gente da Sicília é um sopro de criatividade. Que se diga o uso da voz. A voz em Gente da Sicília é declamada, mas não é só isso. É feito com ela tudo para que ela não possa se reconciliar com o naturalismo cotidiano. Em determinados momentos do filme a voz faz uma pausa, uma pausa esquisita, dentro mesmo de uma frase. Essa pausa e a volta à fala logo depois da fala não encontram registro no mundo da vida, nas nossas falas comuns. Elas pertencem somente e tão-somente ao mundo da arte, ao mundo da ficção. Só nesse mundo elas podem ser música (e nisso há de se destacar o enorme poder musical da língua italiana, sempre cantada). A força do cinema, nos dizem Straub e Huillet, não está no conteúdo da conversa, nem no conteúdo das imagens, nem no conteúdo das entonações, nem em qualquer outro conteúdo. O importante no cinema é que há conversas, há imagens, há entonações. Não o conteúdo de alguma coisa, mais o conteúdo. Intransitivo. Gente da Sicília é aquele momento de felicidade em que, depois de um grande sofrimento em que o mundo nos falta, descobrimos que há mundo. Não que o mundo é assim ou assado, mas simplesmente que ele existe. E que, existindo, ele pode receber todas as determinações possíveis, e que é possível agir, e não padecer. Nesse momento, há liberdade2. A última seqüência do filme é a conversa de Silvestro com um afiador de facas. O afiador reclama que já não há facas ou espadas a serem afiadas, que nesse mundo isso se acabou. Ele fala de facas, mas essa fala nos remete direto ao fato de que nesse mundo nada mais é encantado, nenhuma vida é digna de ser vivida. Com a chegada do forasteiro, todavia, e com suas conversas, o afiador vai aos poucos mudando o discurso, até que num momento dispara: "O mundo é lindo". Os dois, então, passam a enumerar todas as belezas do mundo, mulheres bonitas, esperteza, memória, fantasia, luz, sombra, frio, calor, doença, cura, pão e vinho, etc. "É muito grave ofender o mundo", diz o amolador, e é essa linha do diálogo que os Straub tomam como subtítulo do filme. Depois desse momento de felicidade terrena, sabemos que o filme deve se acabar. A felicidade e o politico, o tema transparece, se fazem a dois. Em um, o mundo não presta (não há mais facas ou espadas), A dois, tudo é possível: a palavra já é possível como conversa, o mundo já é possível como habitação. E só a partir desse momento há política, há arte e há liberdade. Do mesmo jeito, para haver cinema, é preciso de dois. Sem duas imagens, não se faz cinema. Mas só com duas, só com um campo e seu contracampo, já dá para fazer todo o cinema do mundo. porque o cinema não é exatamente nenhuma das duas imagens, mas o 'entre' a primeira imagem e a segunda, ele é a figura que evanesce entre um e outro para tornar-se perene, ele é o instante que se apaga. É nesse instante que se faz política, que se faz conversa e que se faz cinema. O cinema é, por sua própria natureza, política e conversa. E Gente da Sicília é tudo isso. Ruy Gardnier. |
1. Exemplo fuleiro de campo / contracampo: campo: um jovenzinho olha para a jovenzinha e diz "te amo, meu amor". A câmara corta para a mulher, que diz "eu te amo também". Esse corte para uma seqüência lógica é o contracampo. 2. A descrição fenomenológica do processo de construção dessa liberdade é tema de um dos filmes mais belos de Godard, Duas ou Três Coisas Que Eu Sei Dela. |